quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Boas Festas

Árvores, rios

Alberto Carneiro, As árvores como os rios correm sempre para o mar.
Madeiras de castanho e buxo, 2008

Improvável, mas não impossível

Quat'z yeux de Júlio Pomar (2004).
Fotografia de Gérard Castelo Lopes (A Razão das Coisas, Serralves, 2008)

terça-feira, 30 de dezembro de 2008

O ano dos professores

Escreve José Medeiros Ferreira:

O ano de 2008 foi o ano dos professores em Portugal. As suas tarefas aumentam todos os dias.
Dão aulas, organizam a sua escola, abrem-na ao meio, dialogam com os pais, guardam as crianças durante o horário laboral em crescendo, tentam disciplinar os jovens numa sociedade opulenta de casos de vigarice económica e de violência. Além disso, têm de perceber a psicologia do aluno e até distinguir, num ápice, se uma pistola apontada à cabeça, na aula, é verdadeira ou falsa. Reparem que nem falo do estatuto da carreira ou da avaliação.
Estes foram porém os temas que encheram as ruas e esvaziaram as escolas em 2008. Este ano foi o ano em que o Estado se distanciou dos professores da escola pública e a Igreja Católica se aproximou deles. Assim começam as novas eras.


"Bilhete Postal", Correio da Manhã, 28 de Dezembro, 2008

A hora da política (VI)

O Presidente não se limitou a criticar o novo dispositivo jurídico-constitucional agora adoptado para o estatuto dos Açores. O Presidente não se limitou a discordar da solução política que a Assembleia da República impôs no diferendo entre os dois órgãos da República.
O Presidente considerou afectados o relacionamento entre os órgãos, o que se compreende, e discordou do novo texto legal, o que se justifica. Mas foi muito mais longe.
Considerou o incidente um sério revés para a qualidade da democracia e afirmou que estava em causa o interesse nacional.
Ora estes são exactamente os critérios políticos decisivos da acção presidencial: a qualidade da democracia e o interesse nacional. Ao Presidente cabe interpretar e garantir uma e outro.
O Presidente afastou-se desta República.
A declaração política do Presidente não poderá deixar de ter mais consequências do que a generalidade dos comentadores admitiu ontem.
A começar pelas consequências sobre opções do Professor Cavaco e Silva.

O musgo é lento como a sombra

Poema (I) para a noite invariável

Posso estar aqui
eu posso estar aqui perfeitamente pobre
um círio me acendi espora aguda
o vento ritmo negro assassinou-o

posso estar aqui
- o musgo é lento como a sombra - 
e sei de cor a voz cega das canções
(viola de silêncio acorda-me)

que eu posso estar aqui perfeitamente pedra
insone
e um longo segredo impessoal
bordando a minha solidão

Luiza Neto Jorge

Quinze Poetas Portugueses do Século XX. Selecção e prefácio de Gastão Cruz. Lisboa, Assirio & Alvim, 2004. p. 439.

Ocarinista

Jorge Vieira (1922-1998), Tocadora de Ocarina (colecção de Armando Alves)
Barro cozido e engobado.

segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

A hora da política (V)

O Presidente resolveu, e bem, autonomizar e antecipar a exigível explicação sobre o seu entendimento acerca do estatuto dos Açores. Limpou assim a mensagem de Ano Novo de um tema que era susceptível de "matar" todos os outros.
Raramente uma Mensagem presidencial de Ano Novo foi aguardada com tanta expectativa. É a última vez que o Presidente se dirige aos seus concidadãos com inteira liberdade, pois a próxima cai em cima do fim de um ciclo eleitoral e do início de um outro, precisamente o das eleições presidenciais. Sendo 2009 um ano marcado pelo debate das alternativas, importará ao Presidente deixar uma palavra sobre a forma como deseja que esse debate seja encarado. Poderá ainda deixar claro que não aceita ser condicionado nas opções que lhe compete fazer sobre o seu próprio futuro político.
Sobre a crise e as suas implicações políticas pouco se tem ouvido o Presidente. Retivemos no entanto o seu apelo ao critério de verdade que pediu fosse respeitado pelas instituições e agentes políticos. É agora chegado o momento de o Presidente deixar ao país, e sobre esta matéria, a sua própria palavra de orientação.

Na fábrica de Cabrita Reis

À terceira tentativa consegui. Da primeira, na noite da inauguração, estava tanta gente que não se percebia nada. À segunda, bati com o nariz na porta. Mas hoje pude observar detidamente a instalação que Pedro Cabrita Reis contruíu na Igreja de S. Tiago, em Óbidos, como evocação de Rafael Bordalo Pinheiro e da Fábrica de Faianças Bordalo Pinheiro.
Em primeiro lugar, há que dizer que PCR foi eficaz na escolha dos materiais e na reconstrução do ambiente fabril. Captou e devolveu em ironia o riso de Bordalo e irmanou-se com ele no excesso, nalguma turbulência criativa, na admissão de um lugar para o imponderável, o inesperado. A cerâmica é isso, não? Cabrita Reis fez bom uso (inteligente e criterioso) dos processos e produtos da cerâmica fabril de inspiração bordaliana.
Quanto ao entendimento do espaço, PCR não me "convenceu". Os materiais que dispôs na sala despojada da Igreja manifestam mais indiferença que procura de uma relação, mesmo que conflitual. Os ritmos das plataformas, marcados pelas lâmpadas de néon, são insuficientes para riscarem o espaço sagrado do templo. Este problema não parece ter sido encarado, pelo menos aprofundado.





domingo, 28 de dezembro de 2008

Bordalo em Óbidos

Rever os Bordalos em Óbidos, com José Nuno e Maria do Mar.


sábado, 27 de dezembro de 2008

José Nuno da Câmara Pereira


Conversa longa, molhada pela chuva, entre Alcobaça e Óbidos, com José Nuno da Câmara Pereira. Dois anos de trabalhos em atraso. À tarde: o que fizemos. À noite: os projectos em curso. Aqui ficam, para memória futura, duas fotografias de trabalhos seus, em fase de pesquisa, na Terceira. Que subtraí ao seu bornal.

Tinha esquecido a arte dos tercetos

Tinha deixado a torpe arte dos versos
e de novo procuro esse exercício
de soluços

Devo agora rever a noite que te oculta
como pude esquecer que de tal modo
teria de exprimir

tudo o que já esquecera e sopra sobre
mim
como numa planície o crespúsculo

Tinha esquecido a arte dos tercetos
e toda a
outra
mas fechaste-te nela e eu descubro
no seu esse veneno esse discurso

Devo pois ver de novo como muda
como os sinais da voz a noite que perdura
tu deitas-te eu ensino à minha vida
esse extinto exercício

Gastão Cruz, Os nomes desses corpos. Com um desenho de Augusto Gomes. Porto, Inova, 1979

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

As colecções de Mário Lino e o Museu do Ciclismo

Apaixonado pelo ciclismo, ao qual esteve ligado profissionalmente, e de que é ainda hoje um entusiasta na modalidade do cicloturismo, Mário Lino reuniu uma representativa colecção de objectos relativos à história da velocipedia portuguesa. Desde, pelo menos, 1986 que Mário Lino promove exposições para apresentação de sectores da sua colecção. Em 1990, publicou um obra intitulada Contributo Velocipédico onde relatava o resultado da sua dedicação à ciclofilia e do seu esforço pela inclusão no calendário do cicloturismo português de uma prova conhecida pela designação de Caldas-Badajoz.
A importância desse acervo e das memórias que lhes estão associadas foi reconhecida por diversos protagonistas da modalidade, antigos praticantes e dirigentes. A Câmara Municipal das Caldas da Rainha recebeu esse espólio, destinando-lhe um espaço nobre do seu património urbano, inicialmente destinado a acolher a colecção de cerâmica adquirida a Artur Maldonado Freitas. O espaço recebeu a designação de Museu do Ciclismo.
A actividade de Mário Lino como coleccionador não se cingiu porém ao ciclismo enquanto modalidade desportiva ou de lazer, tendo-se dirigido noutros sentidos.
Em 1996 publicou uma brochura intitulada Figuras e Factos da História do Desporto Caldense, e, no ano seguinte, uma outra dedicada às duas salas de cinema caldenses, ambas então já desparecidas, o Salão Ibéria e o Cine-Teatro Pinheiro Chagas. Em 2005 publicou outra brochura, desta vez reconstituindo o percurso vitorioso de José Tanganho na volta a Portugal a cavalo, em 1925 (José Tanganho na volta a Portugal). Em 2008 envolveu-se nas comemorações da guerra peninsular e em discutidas reconstituições históricas alusivas às invasões francesas, na Redinha (Pombal) e nas Caldas, celebrações que deram origem a dois dvds e uma brochura (Caldas da Rainha: na rota do mito napoleónico). Mas o ciclismo não foi esquecido, tendo entretanto participado, em 2006, numa homenagem ao antigo campeão nacional Alves Barbosa, com a edição de uma brochura (Uma história pintada de amarelo). Antes disso tinha organizado uma exposição dedicada à história do ciclismo militar.
No edifício do Museu do Ciclismo, está actualmente instalada uma exposição temporária intitulada "Memórias do Tempo: dos finais da Monarquia à Primeira República", onde Mário Lino apresenta três colecções de documentos, jornais e objectos diversos relativos a três temas: D. Carlos e os últimos tempos da Monarquia, o Ciclo-Clube Caldense e a Primeira República (do 5 de Outubro até à Grande Guerra). Uma pequena brochura acompanha esta mostra. Visitei-a hoje, dia 26, com prazer. Tive o próprio Mário Lino como guia, explicando-me a origem das peças e o significado que lhe atribui.
Sou um admirador do coleccionismo e não me canso de salientar o quanto deve a investigação histórica à determinação, ao esforço de coleccionadores que têm salvo do esquecimento ou da destruição patrimónios de altíssimo valor. Nos casos, como o de Mário Lino, em que o investimento cultural sobreleva o financeiro, o apreço é ainda maior.
Mas um Museu não é apenas um espaço de apresentação de colecções. Deve ter uma estratégia e uma direcção científicas e claros objectivos culturais. A Câmara, se criou formalmente o Museu do Ciclismo, descurou totalmente os outros aspectos e não se percebe o que tenciona fazer a este respeito.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

Na árvore do Natal

Fui buscar auxílio à literatura e ao ensaio para homenagear todos aqueles que me ajudaram a fazer este blog, agradecendo a todos as palavras (mais agri ou mais doces) com que corrigiram ou acrescentaram as minhas.
É chegada a vez da música e do canto. Suspendam, amigos, uns minutos da vossa vida, para ouvir Cassandra Wilson em Harvest Moon, debaixo dos ramos da árvore do Natal.

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Na árvore do Natal (10)

A um (a) comentador (a) - uns (umas), comentadores (as) - que por motivos legítimos não quis (eram) revelar (me) o (s) nome (s), uma lembrança do Natal. Talvez haja uma segunda oportunidade.

Natural da água

A fonte: ninho da água. Dali ela se constitui, emplumando-se ao modo de ser ave. Primeiro se pintainha, levantando o bico faminto à chuva que desce.
A água nasce de ser plantada? Ou de pedra que se converte, lavando o tempo em suas mesmas lágrimas? Ninguém sabe, ninguém nunca viu. O parto da água não tem testemunha: aparecemos sempre depois.
Quem procure a fonte que escute primeiro seu chilreio fresco. Só depois rasteire os olhos entre a pedra e a erva. Deixe aí seu olhar pousado até que a alma, naquela dobrazinha onde ela se distrai de nós, se sinta molhada e mais que alagada: alaguada. Verá então como a água a si mesma se enche, abrindo as margens, soltando as suas asas. Começa a viagem do rio sucessivo.
O rio, caligrafia da água. Do alto, parece um sulco de metal transfluente. Limpo e solene. Mais perto se vê que, nas margens, se empoleira, contagiando-se de terra. O rio ora beija, ora morde a margem.
Entre carícia e rasgão, se fazem seus incertos rumores de amante. Dentro dele se transportam ondulantes gazelas. Nesse tropel, o leito tornava-se savana azul. África liquefazendo sua carne fresca. O continente se oceanifica.
Mas a água só despida será completa. Assim, da terra ela se distingue. A terra exige coberta, requer construção. Enquanto a água em sua própria pele se aconchega. Em tal nidez, nunca nenhum sulco se abriu, nenhuma ruga se desenhou. Os homens magoam o solo, cobrem de golpes o chão. Mas até agora nenhum foi capaz de ferir o rio e deixar cicatriz nele escrita.
O rio da minha infância: sotaque da terra, pronúncia da própria vida. Esse rio transcorre não no mundo mas em mim. Como se eu fora natural da água e não de lugar terreno. Às vezes flui manso, diluindo os amargos recantos, consolando as arestas da minha idade. Outras, fundo e espesso, quase imitando o fogo. Então, em sua corrente me ensombro. E me duvido: afogar é morrer na água ou no fogo?
Afinal, a fúria é breve. O rio simplesmente me lavava da morte, sacudindo destroços de mim que se espreguiçavam na torrente.
A coragem do rio é o seu caminhar suicida para o mar. A bondade da água é o seu incansável retorno ao regaço da vida.

Mia Couto, Cronicando. Crónicas. 7ª edição. Lisboa, Caminho, 2003. p. 77-78

Na árvore do Natal (9)

Aos comentadores mais assíduos deste blog, uma lembrança de Natal. Esta é para Maria Manuela Gama Vieira.

Escolhi o tema lunar para evocar a sensibilidade poética de Maria Manuela e pedi a um dos meus escritores predilectos, Jorge Luis Borges (1899-1986), ajuda nesta tarefa. Borges acedeu de imediato, lembrando que em 1925 tinha escrito uma obra intitulada Lua Defronte [da qual faz parte o belíssimo poema "Fervorosa antecipação": Nem a intimidade da tua fronte clara como uma festa,/nem o hábito do teu corpo, ainda de menina e misterioso e tácito,/ nem a sucessão da tua vida assumindo palavras ou silêncios/ serão favor tão misterioso/ como olhar o teu sono envolvido na vigília dos meus braços: Virgem milagrosamente outra vez, pela virtude absolutória do sono,/ serena e resplandecente como a alegria que a memória escolhe,/ dar-me-ás essa margem da tua vida que tu própria não tens./ Entregue à serenidade, divisarei essa praia última do teu ser/ e ver-te-ei acaso pela primeira vez/ como Deus te verá, já dissipada a ficção do Tempo,/ sem o amor, sem mim.]

O lugar da lua na arte poética de Jorge Luis Borges (a lua como espelho) está sintetizado no seguinte poema dedicado à uruguaia María Kodama, sua secretária e companheira desde 1975, e incluido no livro A Moeda de Ferro (1976).

A lua

Há tanta solidão naquele ouro,
A lua destas noites não é igual
À do primeiro Adão. Os longos séculos
Da humana vigília cumularam-na
De antigo pranto. Olha-a. É o teu espelho.

No livro Sete Noites, editado em 1980, JLB publicou um conjunto de conferências proferidas três anos antes em Buenos Aires. Uma delas é dedicada à poesia. Desenvolve aí a tese de Benedetto Croce, comummente esquecida, de que a "se a literatura é expressão, a literatura é feita de palavras e a linguagem é um facto estético", em contraponto à errónea concepção de que "a linguagem corresponde à realidade". Borges exemplificou assim a sua afirmação:

Pensemos numa coisa amarela, resplandecente, cambiante; esta coisa às vezes está no céu e é circular; outras vezes tem a forma de um arco, outras cresce e decresce. Alguém - mas nunca saberemos o nome desse alguém - nosso antepassado, nosso comum antepassado, deu a essa coisa o nome de lua, diferente em diferentes línguas e diversamente feliz. Eu diria que o termo grego selene é demasiado complexo para a lua, que o termo inglês moon tem algo de pausado, algo que obriga a voz à lentidão que convém à lua, que se parece com a lua, porque é quase circular, quase que começa com a mesma letra com que termina. Quanto à palavra luna, essa bonita palavra que herdámos do latim, essa bonita palavra que é comum ao italiano, consta de duas sílabas, de duas peças, o que porventura será demasiado. Temos lua, em português, que parece menos feliz; e lune, em francês, que tem um certo ar misterioso.
Já que estamos a falar em castelhano, escolhemos a palavra luna. Pensemos que alguém, alguma vez, inventou a palavra luna. Sem dúvida, a primeira palavra seria muito diferente. Porque não determo-nos no primeiro homem que disse a palavra luna com este som ou com outro?
Há uma metáfora que tive a ocasião de citar mais de uma vez (perdoem-me a monotonia, mas a minha memória é uma velha memória de setenta e tal anos), aquela metáfora persa que diz que a lua é o espelho do tempo. Na frase "espelho do tempo" está a fragilidade da lua e a eternidade também. Está essa contradição da lua, tão quase translúcida, tão quase nada, mas cuja medida é a eternidade.
Em alemão, a palavra lua é masculina. Assim Nietzsche pôde dizer que a lua é um monge que fita invejosamente a terra, ou um gato, kater, que pisa tapetes de estrelas. Os géneros gramaticais também têm influência na poesia. Dizer "lua" ou dizer "espelho do tempo" são dois factos estéticos, com a diferença de que a segunda é uma obra de segundo grau, porque "espelho do tempo" é composto de duas unidades e "lua" nos dá talvez mais eficazmente a palavra, o conceito de lua. Cada palavra é uma obra poética.

Finalmente, A Cifra, obra editada em 1981, insere "Dezassete Haiku", de que aqui transcrevo os ultimos oito fragmentos:

Esta é a mão
que por vezes tocava
o teu cabelo

Sob o alpendre
o espelho não imita
mais do que a lua

Sob essa lua
a sombra que se alarga
é uma só

É um império
essa luz que se apaga
ou um pirilampo?

A lua nova.
Ela também a vê
da outra porta.

Longe, um trinado.
o rouxinol não sabe
que te consola

A velha mão
insiste em traçar versos
pró esquecimento.

Jorge Luis Borges, Obras Completas, vol. III. Lisboa, Teorema, 1998. p. 141, 265, 351.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Na árvore do Natal (2). Aditamento

Esta lembrança do Natal é para o João Jales, primeiro dinamizador do blog dos antigos alunos do Externato Ramalho Ortigão. É difícil resumir em poucas palavras o papel que tem desempenhado na animação de uma espaço novo de celebração da memória intergeracional. No que respeita a este blog, não só instigou a sua criação como lhe oferece incentivo, divulgação e, quando é o caso, crítica.
O texto seleccionado é de Pinheiro Chagas (1842-1895), um nome que fez parte das nossas caldenses referências juvenis, e reporta-se a Júlio César Machado (1835-1890), um escritor nascido em A-dos-Ruivos que dedicou à região servida pela linha do Oeste muitos e interessantes textos. Proponho o seguinte exercício: substituir folhetim por blog e século XIX por XXI.

O século em que vivemos inventou o folhetim. Os admiradores do passado vêem nisso uma prova da frivolidade desta geração; creio pelo contrário que não se deve ver neste facto senão a consequência necessária do derramamento da luz intelectual e da participação de todas as classes nos prazeres delicados que eram dantes privilégio de um limitado número.
A opinião pública sobre assuntos literários circunscrevia-se dantes na pequena roda dos salões aristocráticos e dos cenáculos dos homens de letras. Aí se discutiam e apreciavam as tragédias novas, os novos livros, o mérito dos actores e tudo quanto dizia respeito à vida elegante e ao movimento literário. Aí se erigia o trono dos conversadores notáveis que não aspiravam a outra glória e que tinham razão porque essa lhes bastava para os imortalizar. Chamfort e Rivarol não têm outros títulos que lhes dêm jus à reputação que ainda hoje lhe circunda o nome com esplendida auréola. Funda-se nesse talento especial uma boa parte da fama de Voltaire, e quase toda a fama de Piron. Depois veio a transformação dos costumes; a humanidade precipitou-se sequiosa destes gozos elevados, derramou-se a leitura, multiplicaram-se os teatros, desenvolveu-se o gosto, alargou-se imensamente a esfera da opinião pública. Os jornais entenderam e entenderam bem que deviam transportar para as suas colunas os salões do século passado; o folhetim substituiu a conversação. Janin e Gautier sucederam a Rivarol e Chamfort.
Ninguém melhor do que Julio César Machado compreendeu esta índole especial do folhetim, ninguem soube melhor do que ele fazer do folhetim uma conversação escrita. Nos dourados salões da velha aristocracia seria ele o conversador que chamaria todas as atenções, que provocaria um sorriso nos lábios do homem de Estado, as gargalhadas francas dos juvenis cortesãos, a predilecção das senhoras. Ninguém como ele saberia contar uma história, descrever uma situação cómica, excitar uma doce malancolia e apanhar com mais facilidade a feição alegre de um caso qualquer. Seria contagiosa a sua jovialidade, simpática a sua tristeza.
São as mesmas qualidades que tornam tão apreciáveis os seus folhetins, tão atraentes os seus ligeiros contos. É essa a glória que lhe cabe, nem ele aspira a outra. Esta geração de políticos, de negociantes, de homens enfastiados desfranze a testa vincada pelas preocupações prosaicas para o escutar com interesse, para se sorrir, para gastar longas horas a ouvi-lo, sem reparar em tal; mas não se esquece, depois de se ter entretido bastante, de se ter rido, de se ter comovido, de encolher os ombros e de dizer em tom magistral: "Que de frivolidades!"
Oh! Rivarol! Oh! Chamfort não era isso mesmo o que diziam os marquezes, os financeiros e os conselheiros dos parlamentos depois dos serões em que os deslumbráveis com o vosso cintilante espírito?
Os pedantes seguem-se ... e assemelham-se.

M. Pinheiro Chagas, Ensaios Críticos. Porto, Livraria Elysio, 1890. p. 93-95.

Na árvore do Natal (8)

Aos comentadores mais assíduos deste blog, uma lembrança de Natal. Esta é para João Ramos Franco, que comigo partilha memórias e esquinas de uma cidade triste. O texto que escolhi é do escritor turco Orhan Pamuk, nascido em 1952, de uma obra precisamente dedicada à sua cidade natal, Istambul.

[...] Não esqueçam porém que todas estas ideias são expressas aqui por um escritor de cinquenta e um anos que tenta, tanto tempo depois, lembrar-se das coisas por que a sua alma passou e fazer delas um relato com sentido e agradável. Entre os meus dezasseis e os meus dezoito anos, não era apenas a mim que eu considerava num estado bastante grave de sufocação, mas também ao ambiente e à cultura, aos comentários oficiais e oficiosos a propósito dos acontecimentos políticos, às primeiras páginas dos jornais, à vontade da cidade e dos seus habitantes em se apresentarem como não eram na realidade, ou antes, à sua recusa total em se compreenderem a si própios, e aos slogans dos cartazes publicitários que ecoavam dolorosamente na minha cabeça. Desprezava a superficialidade que envolvia a cidade e a mim próprio. Talvez o meu problema residisse no facto de que, aos quinze anos, eu ainda não tinha conseguido responder às expectativas desse "mundo paralelo", que oferecia à minha infância toda a paleta da felicidade e uma verdadeira profundidade. Desejava então fazer pintura e viver como os pintores franceses que descobria nos livros, mas não podia recriar o seu universo em Istambul, e Istambul nada tinha de comum com o mundo deles. [...]
Entre os dezasseis e os dezoito anos, como partidário convicto da ocidentalização, desejava ver a cidade, e a mim próprio, europeizar-se, mas ao mesmo tempo tinha vontade de continuar a pertencer à minha Istambul muito amada, à Istambul do meu instinto, dos meus hábitos e das minhas recordações. A perda da faculdade de alimentar simultaneamente estas duas ideias de infância (uma criança dispõe da capacidade de, sem qualquer problema, imaginar no mesmo momento que se tornará quer vagabundo, quer um grande cientista) fazia progressivamente de mim, à medida que o tempo passava, uma pessoa triste. Pode dizer-se que eu tinha pesar pela minha cidade e por mim próprio, verificando que Istambul não era suficientemente moderna, que faltava ainda muito tempo para a cidade ultrapassar a pobreza e a miséria, e para se libertar do sentimento de derrota que pesava sobre ela. Pois bem, esta tristeza, de que toda a cidade se tinha impregnado com orgulho e resignação, começava a infiltrar-se também na minha alma. Mas tratar-se-ia da mesma tristeza, ou da "tristeza" de ter de capitular perante a tristeza da cidade?
Talvez que, de facto, a verdadeira razão não fosse a miséra da cidade, nem o peso destrutivo do sentimento de tristeza que ela causava. A necessidade de estar sozinho, cada vez mais frequente, de ir esconder-me num canto, como um animal que geme antes de morrer, não me vinha do exterior, mas do interior de mim próprio. Nesse caso, que coisa era essa cuja perda me deixava tão triste? De quem ou de quê me tinha eu apartado para sentir tanta pena?

Orham Pamuk, Istambul: Memórias de uma Cidade. Lisboa, Editorial Presença, 2008. p. 317-318.

domingo, 21 de dezembro de 2008

Na árvore do Natal (7)

Aos comentadores mais assíduos deste blog, uma lembrança de Natal. Esta é para a misteriosa personagem que se identifica pelas iniciais MT.
Desafiou-me um dia MT a publicar um extracto mais volumoso de uma crónica de António Lobo Antunes exautorando o "amor à homem pelas mulheres". Preferi retomar o tema, com a ajuda de outro autor: G. Steiner, aliás, já referido neste blog.
George Steiner, professor de Literatura em Inglaterra, nascido em Paris, em 1929, estudou nos Estados Unidos. É dele esta estimulante reflexão sobre as "maravilhas que validam a existência mortal" do homem.

O amor é, com intensidades várias, a maravilha imperativa do irracional. É inegociável, tal como a (condenada) demanda de Deus entre os Seus enfermos. Tremer, no mais fundo âmago do nosso espírito, nervos e ossos, à vista, à voz, ao mais pequeno toque do ser amado; imaginar, maquinar, mentir despudoradamente para conseguir alcançar, estar perto do homem ou da mulher amados; transformar a nossa existência (pessoal, pública, psicológica e material) num instante imprevisível por via e consequência do amor; suportar dor e depressões inomináveis devido à ausência do amado ou à debilitação do amor; identificar o divino com a emanação do amor, como faz o platonismo, que é o mesmo que dizer o modelo ocidental da transcendência - é desfrutar do sacramento mais inexplicável e banal da vida humana. É, dentro do potencial de cada um, tocar a maturidade do espírito. Fazer equivaler este universo da experiência ao libidinoso, como o faz Freud, explicá-lo em termos de vantagens biogenéticas e procriadoras, são reduções quase desprezíveis. O amor pode ser o elo involuntário, culminando na autodestruição, entre indivíduos nitidamente inadequados um para o outro. A sexualidade pode ser incidental, transitória ou completamente ausente. O mais feio, mais desgraçado, mais malvado entre nós pode ser o objecto de um Eros desinteressado e apaixonado. O desejo de morrer pelo amado ou pela amiga - l'amie, como diz o francês de modo tão exacto e luminoso -, as lúcidas insanidades do ciúme, são contraprodutivas nos termos de qualquer racionalização biológica  (darwiniana) ou social. A famosa máxima de Pascal, segundo a qual o coração tem razões que a razão desconhece, acaba por privilegiar a racionalidade. Não são as "razões" que enchem o coração. São necessidades de uma origem completamente diferente. Para além da razão, para além do bem e do mal, para além da sexualidade que, mesmo no auge do êxtase, é um acto perfeitamente menor e efémero. Esperei uma noite inteira debaixo de chuva torrencial para ter um vislumbre da amada a dobrar a esquina. Se calhar nem sequer era ela. Deus tenha piedade daqueles que nunca conheceram a alucinação de luz que preenche as trevas durante uma dessas vigílias.
Do poder supremo, irracional, rebelde a qualquer análise, e muitas vezes desastroso, do amor advém a ideia - será mais uma vez uma puerilidade? - de que "Deus" ainda não existe. De que só existirá, ou, mais precisamente, de que só se tornará manifesto à percepção humana quando houver um amor imenso e muito mais excessivo do que o ódio. Toda e qualquer crueldade, toda e qualquer injustiça inflingida sobre o homem ou sobre o animal justifica as conclusões do ateísmo na medida em que afasta Deus daquilo que seria efectivamente um primeira vinda. Mas, mesmo nas horas piores, sou incapaz de abdicar da convicção de que as duas maravilhas que validam a existência mortal são o amor e a invenção do tempo futuro.

George Steiner, Errata: Revisões de um Vida. Lisboa, Relógio d'Água, 2001. p. 202-204.

sábado, 20 de dezembro de 2008

Na árvore do Natal (6)

Aos comentadores mais assíduos deste blog, uma lembrança de Natal. Esta é para Paulo Prudêncio.
A escritora Eduarda Dionísio, autora do texto escolhido, foi dirigente do Sindicato dos Professores da Grande Lisboa, em 1978/79.

- Temos que agir dentro das próprias aulas - diz Ivone. Recusar os alunos se forem mais de 25, recusar as partes dos programas que nos repugnam, recusar de facto as horas extraordinárias, recusar as tarefas de secretaria, recusar o que ultrapasse o nosso horário de trabalho.
- Qual é o sindicato que te apoia? - pergunta Carlos. Não é este que temos com certeza. Estes sindicatos que avançam pedindo licença, esperando que os deixem passar, não chegando nunca à primeira fila e assistindo ao espectáculo só pelo som. Aceitam dispor-se num palanque para assistir à parada na ordem hierárquica que sedimentam. Aceitam sentar-se à mesa do banquete segundo as regras da Baronesa X: à direita da dona da casa e à esquerda, à esquerda do dono da casa e à direita, assim por diante, nos topos da mesa, ao meio. Estes sindicatos que pedem licença para incomodar.
- Não tínhamos nenhum antes do 25 de Abril - diz Alberto. E não foram vocês que o fabricaram. Onde estavas tu, Carlos? Que fazias? Rezavas missas, ouvias os pobres pecadores em comunhão, oprimias os pensamentos livres, destruías os sentimentos espontâneos que se formavam nas aldeias, nos campos, que atrofiavas, deitando-lhes vinagres como em estômagos, por funil, regando de fel a serenidade dos camponeses, borrifando-os de soda cáustica. Ah! é verdade, estavas nas colónias.
- A contestação não leva a nada - diz Raquel. O sindicato tem que ter força para negociar. Raquel vê as grandes salas, as grandes mesas, os blocos de apontamentos, os dossiers - dum lado o poder, com gravata; do outro, os sindicatos em mangas de camisa. Falam alternadamente, de acordo com uma ordem que ambos sabem, com uma distância e uma frieza  estabelecidas. Terão ou não os resultados pretendidos. À noite, os dirigentes farão o comunicado que talvez transmitam pela rádio à meia-noite.
- Negociar o quê? - diz Carlos. Carlos só sabe as palavras que se trocam entre os sindicatos e o poder e que nunca ninguém conhecerá, as promessas que se fazem sem cumprir, as cedências mal medidas, que se escondem - os comunicados fabricados com demora, monumentos de verdades e mentiras, frases com minutos, horas, ameaças, exclamações. Temos é que ser capazes de impor - diz Carlos.
- Temos que falar com as pessoas - diz Alberto. Há tantas pessoas que exercem o poder e que pensam como nós. Saber tocá-las, lembrar conhecimentos antigos, expor as razões que temos, não assustar. Tu, por exemplo, A., quando chegas, assustas as pessoas que nas secretarias fazem todas as planificações e preparam as ordens, os decretos, os ofícios, as circulares, as portarias. Assusta-las, inunda-las de água fria e então esbracejam, dizem que não, receiam, muram-se. Que falta de tacto, A.!
- Com que pessoas? Não te podes esquecer que são inimigos que tens à tua frente - diz Ivone. Podem ir almoçar a tua casa, podem ir contigo a manifestações a favor da reforma agrária e pela unidade sindical, mas naquele momento, Alberto, naquele momento são teus inimigos, são nossos inimigos, querem pura e simplesmente que o sistema capitalista do ensino que temos continue a funcionar, querem que nós sejamos funcionários duma grande empresa que oprime, que nos oprime, que oprime os trabalhadores, querem impor que não haja política na escola e o regresso ao que tínhamos antigamente que suportar.
- Tens que falar. Mas a maneira conta - diz Marília. Têm que ser agredidos. Temos que ser ferozes. És tu, A., que sabes falar-lhes com essa violência nas sílabas. Porque te calas, A.?
- Saberemos alguma vez conciliar o sindicalismo de negociação com o sindicalismo de contestação - pensa Manuel. Será possível conciliar? Será desejável? Em França é a CGT que negoceia, a CFDT contesta, pelo menos nas escolas. Manuel sente-se mal naquelas sessões morosas onde tem sido obrigado a estar: uma mesa; papéis brancos e escritos à máquina, outros impressos, em cima da mesa, sublinhados de várias cores, números à margem e letras, com círculos que não fecham em redor.

Eduarda Dionísio, Histórias, Memórias, Imagens e Mitos duma Geração Curiosa. Lisboa, Círculo de Leitores, 1981. p. 328-330

Transições


Deambulação por entre rios e fragas, planaltos e depressões, arquipélagos de cidades em busca dos seus centros, paisagens antigas por vezes renascidas. Sempre seguido pelo odor de árvores a que um belo sol de inverno empresta inesperadas vestes. Espera-me, servido por uma inesperada velha glória do Académico de Viseu, um irónico universo de assemblages de Pomar, sobre o qual a noite urbana caíu rápida, talvez de mais.
Se a lua, deslocada por forças adversas, me não acompanhou no regresso de Coimbra, uma flor botão, espécie de chave minúscula para segredos inviolados, veio, pequena e vermelha, acolher-se à minha mão. Sou agora o seu fiel depositário, enquanto não reaprendo artes de jardinagem.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Na árvore do Natal (5)

Aos comentadores mais assíduos deste blog, uma lembrança de Natal. Esta é para Isabel Xavier, contrapondo ao seu fascínio pelo mistério poético e pela pintura de histórias o seu (não menor, espero) apreço pelo riso. 
Extracto de um dos mais interessantes depoimentos sobre Rafael Bordalo Pinheiro por quem com ele privou.

Dispunha como ninguém do senso humorístico, e era o primeiro a rir com a própria obra.
Não forçava o assunto. Precisava primeiro encontrar o ser ou o aspecto caricatural. Antes mesmo de o reproduzir, só à ideia do que via ou imaginava, ei-lo a rir, com as suas gargalhadas incessantes.
Ao estrebuchar de um Carnaval, último ano em que a Avenida viu um simulacro de batalha de flores, resolvemos passar juntos as três noites de Entrudo.
E o que mais o divertiu foi ver o Manuel Gustavo a rir. Manuel Gustavo fora educado pelo avô e quando Rafael estava no Rio de Janeiro ficara também em Alcobaça. A educação severa do avô e a admiração de Manuel pelo génio do pai faziam com que não ousasse ostentar a sua graça diante de Bordalo, que tinha muita pena de não gozar o espírito do filho. Tomás Bordalo, irmão de Rafael, pai de Pedro e Dinis Bordalo Pinheiro, foi dar com ele, justamente nessa noite de Carnaval, escondido atrás de uma coluna do hall do Teatro D. Maria.
- Que estás a fazer?
- Estou a ver o Manuel a rir com uns amigos!...
[...]
De vez em quando, ao despedir-se à porta de casa, anunciava-nos:
- Amanhã vou às Caldas.
E desaparecia uns dias.
Por um luminoso dia de Janeiro, arrastou-me com ele às régias termas.
Outra personagem completamente diferente: blusa, com as pontas da lavalière às pintas azuis e brancas por fora da gola e boina - o oleiro.
Percorreu comigo a via sacra das Figuras do Bussaco, inesquecível romagem! Ao passar, levantou os panos que cobriam um busto de mulher admiravelmente bela - era a Visconti, antes de o cancro ter destruido a obra prima da sua beleza. Foi um relâmpago: tornou a velar o busto e foi talvez a única vez em que vi no rosto dele uma velatura de malancolia.
Logo adiante, um motivo de hilariedade esboçado no barro: nem mais nem menos que o Marquês de Franco, a quem Bordalo implacavelmente castigou por certa desatenção. Coisa de nada! Rafael mandara pedir ao Marquês de Franco que lhe cedesse, numa noite célebre, uma das duas cadeiras de S. Carlos. O Marquês respondera que uma era para ele e a outra para o seu sobretudo.
Bordalo caricaturou-o cruelmente! Começou por lhe desenhar a cadeira, guardada a corrente e cadeado; depois, apresentou-o de bouquet em punho ante as bailarinas, e acabou por o ver e mostrar aos raios x. Quando lhe aplicou os raios x às algibeiras da sobrecasaca, não se imagina o que a placa revelou: charutos - uns enormes, para ele, outros mais pequenos, para os amigos - pratos com sardinhas, guardanapos, talheres, ramos de flores, o diabo!
E para cúmulo o pelourinho de barro, que creio não se chegou a acabar. Mas era flagrante, era o Marquês de Franco, a sobrecasaca cintada, levantada pelas proeminências e pelas algibeiras atafulhadas.
E Bordalo ria, porque aquele homem, em quem se pressentia certa amargura, sobretudo depois de ter modelado o busto que ele mal desvelara, só tinha na sua oficina, quer trabalhasse com a pedra litográfica, quer com o barro, um único material: o riso. Quando alguma página apoteótica criava e as personagens eram ídolos do seu coração ou do seu cérebro, Bordalo imolava-se, a ele próprio ou ao gato, para que o público e ele tivessem sempre o seu quinhão de alacridade. Nas suas festas de família, no próprio aniversário, Bordalo punha uma coroa de louros na cabeça e ria da sua figura, ria do absurdo: a glória em Portugal, a sua glória.
[...]
Para nós, Portugueses, foi bom que rimos, pelo menos enquanto ele vivo foi.
[...]
Caminhando século XIX além, topa-se com ervaçal de ridículos; ao exprimirmos alto o nosso juízo, ouve-se um eco - a caricatura de Bordalo; continuando, vai-se dar ao poço motejador que não é senão a gargalhada do artista batendo na rocha da época, e que faz gorgolejar a água negra onde revolteiam tipos e costumes no fundo do poço que ri.

Joaquim Leitão, O Poço que Ri. Rafael Bordalo Pinheiro e o Seu Tempo. Lisboa, 1936. p. 53-62


Na árvore do Natal (4)

Aos comentadores mais assíduos deste blog, uma lembrança de Natal. Esta é para Nicolau Borges.
Parte final de um conto de Ray Bradbury.

O dragão

A muitas léguas, apressando-se com um grande uivo e um rugido - o dragão.
Em silêncio, os homens afivelaram as armaduras e montaram a cavalo. A meia-noite desolada era rasgada por um arfar monstruoso, à medida que o dragão bramia mais perto, cada vez mais perto, cada vez mais perto; o seu olho relampejante e amarelo luziu por sobre uma colina e depois, dobra a dobra do seu corpo escuro, visto a distância e por isso indistinto, galgou por cima da colina e mergulhou num vale, sumindo-se.
- Depressa!
Com as esporas, impeliram os cavalos para a frente, até uma pequena depressão do terreno.
- É por aqui que ele passa!
Seguraram nas lanças com os punhos ferrados e cegaram os cavalos, deixando cair-lhe a viseira sobre os olhos.
- Nosso Senhor!
- Sim, evoquemos o Seu santo nome.
No mesmo instante o dragão contornou o cerco. O seu olho de âmbar, monstruoso, caiu sobre eles, acendendo as armaduras de reflexos e coruscações vermelhas. Com um terrível uivo estridente e um ranger, precipitou-se para diante.
- Misericórdia, Senhor!
A lança embateu por debaixo do olho amarelo e sem pálpebras, ricocheteou, atirou o homem pelo ar. O dragão atingiu-o, fê-lo voltear para cima, projectou-o para o chão, esmagou-o sob o seu corpo. Ao passar, a cunha negra da sua espádua arremessou o outro cavaleiro, com o seu cavalo, a uma distância de cem pés, destroçando-o contra um penhasco, uivando, uivando, um grito de dragão, fogo a toda a volta, por baixo, um fogo como um sol alaranjado, cor-de-rosa, amarelo, com grandes plumas fofas de fumo cegante.

- Tu viste agora? - gritou uma voz. - Tal e qual como te disse!
- O mesmo! O mesmo! Um cavaleiro de aramadura, raios me partam! E atropelámos o tipo!
- Vais parar?
- Já uma vez parei; não encontrei nada. Não gosto nada de parar neste pantanal. Faz-me calafrios na espinha. Senti uma coisa esquisita, garanto-te.
- Mas nós embatemos contra qualquer coisa!
- Fartei-me de apitar; se não se mexeu foi porque não quis, teve muito tempo.
Uma descarga de vapor cortou a cerração.
- Vamos chegar a Stokely à tabela. Ponho mais carvão, hein, Fred?
Um outro assobio condensou gotas de geada do céu vazio.
O comboio da noite, todo fogo e fúria, disparou através do barranco, enfiou por uma subida e desapareceu mais adiante, sobre a campina fria, em direcção ao norte; deixou fumo preto e rolos de vapor a dissolver-se no ar atordoado, por alguns minutos ainda, após ter passado e desaparecido para sempre.

Ray Bradbury, "O Dragão", in Os melhores contos de Ficção Científica, de Júlio Verne aos Astronautas. Antologia. Selecção e tradução de Lima de Freitas. Lisboa, Livros do Brasil, s/d. p. 387-389.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Na árvore do Natal (3)

Aos comentadores mais assíduos deste blog, uma lembrança de Natal. Esta é para Margarida Araújo.

Dizem que o pintor David Wilkie, um dos mais distintos que a Inglaterra tem tido, vindo estudar Velasquez, achou nesta tela [Los Borrachos] tudo quanto podia tornar célebre o seu auctor, simplificando o objecto da sua viagem, não estudara mais do que este quadro.
No mesmo caso está o retrato da princeza D. Margarida, porque pintando o retrato da infanta, o grande artista imaginou representar ao mesmo tempo toda a scena, que n'essa ocasião tinha sob os olhos.
De pé em frente do cavallete está o pintor com as palhetas na mão, emquanto defronte uma creada apresenta de joelhos de beber à infanta, e os dous anões historicos Nicolau Pertusano e Maria Barbola brincam com um enorme cão. Um espelho situado ao lado denuncia como espectadores d'esta scena Philippe IV e a rainha recostados em um sophá no quarto contiguuo,
Se bem que muito diverso pela natureza do assumpto, tem este quadro merito egual ou superior ao da scena dos Borrachos. Como este elle é tambem surprehendente pela perfita imitação da natureza, e considera-se a perola de seu auctor, e é conhecido pelo quadro Meninas.

D. M. de M. G., Guia do Amador de Bellas-Artes. Porto, Typographia Commercial, 1871. p. 576-477

Na árvore do Natal (2)

Aos comentadores mais assíduos deste blog, uma lembrança de Natal. Esta é para João Jales.
Thomas Paine foi um escritor político norte americano que viveu entre 1737 e 1809.

Nenhuma geração é proprietária das que se seguirão
O Parlamento Inglês de 1688 fez uma determinada coisa que, para ele próprio e para os seus constituintes, tinha o direito de fazer, e que pareceu ser a coisa certa a fazer; mas, para além deste direito, que possuía por delegação, o Parlamento estabeleceu outro direito por usurpação, o de comprometer e controlar a posteridade até ao fim dos tempos. Assim, o caso divide-se em duas partes: o direito que possuía por delegação e o direito que estabeleceu por usurpação. O primeiro é admitido; mas em relação ao segundo, eu replico...
Nunca existiu, nunca existirá, e nunca poderá existir um Parlamento, ou qualquer classe de homens, ou qualquer geração de homens, em qualquer país, que possua o direito ou o poder de comprometer e controlar a posteridade até "ao fim dos tempos", ou de comandar para sempre a forma como o mundo será governado, ou quem o governará: e, consequentemente, todas as cláusulas , actos ou declarações através dos quais os seus criadores tentam fazer aquilo que não têm o direito nem o poder de fazer, nem o poder de executar, são por si mesmos destituídos de validade. Todas as eras e gerações têm de ser livres para agirem por si mesmas em todos os casos, tal como as eras e gerações que as precederam. A vaidade e presunção de governar para além da sepultura é a mais ridícula e insolente de todas as tiranias. O homem não é proprietário do homem: e nenhuma geração é proprietária das gerações que se seguirão. O Parlamento ou o povo de 1688, ou de qualquer outro período, não tinham mais direito de dispor do povo dos dias de hoje, ou de o comprometer ou controlar de qualquer forma, do que o Parlamento ou o povo dos dias de hoje tem de dispor, de comprometer ou controlar os que viverão daqui a cem ou mil anos. Todas as gerações são, e têm de ser, competentes para todos os desígnios que as ocasiões determinarem. São os vivos, não os mortos, que têm de ser ajustados. Quando o homem deixa de existir, o seu poder e as suas vontades morrem com ele; e como já não tem qualquer participação nos problemas deste mundo, deixa de ter autoridade para decidir quem serão os governantes, ou como o Governo será organizado ou administrado.

Thomas Paine, Direitos do Homem. Mem Martins, Publicações Europa-América, 1998. p. 14-15.

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Na árvore do Natal (1)

Aos comentadores mais assíduos deste blog, uma lembrança de Natal. Esta é para Teresa Perdigão. Relembra práticas de conservação de alimentos com que convivi na infância e adolescência e que se reportam à região de origem dos meus avós paternos, a Cova da Beira.

Azeitonas de mesa
O único vegetal digno de menção que ainda se conserva por salga é a azeitona, que sempre teve um importante papel na economia da região. Elemento fundamental no sistema alimentar, é consumida em fruto nas tradicionais variedades galega (preta), cordovil (clara e encorpada) ou bical (clara e oblonga), podendo ser ainda transformada em azeite - gordura com significativa utilização alimentar, na própria conservação dos alimentos, e na antiga iluminação. O seu consumo directo em fruto, como azeitona de mesa, exige um tratamento prévio para eliminar parte da sua acidez, que se efectua segundo dois processos associados à conservação, consoante se trate do consumo mais imediato, logo após a colheita - produzindo-se azeitona retalhada - ou, para ser conservada ao longo do ano - azeitona doce.
Para a conservação longa, segundo a descrição de José David, após a apanha das primeiras azeitonas (de Novembro a Dezembro) e a escolha das mais gradas, elas são primeiramente metidas na talha (ou pote de barro) em água nascente (água não tratada, de poço ou ribeiro), que se muda uma ou duas vezes - sempre em Lua Velha (uma semana, entre o Quarto Crescente e a Lua Cheia), tal como se faz para todas as operações do tratamento da azeitona. Em Abril, consoante a Lua, são então definitivamente mudadas para a calda em que se preservam nos potes. Este preparado consta de uma salmoura feita com o mesmo tipo de água na qual se dissolve sal grosso - cuja densidade se estima pelo nível de flutuação de um ovo cru nela mergulhado, "A salmoura está boa quando o ovo cru se aguentar à superfície" - à qual se junta como tempero, ramos de serpão.
As azeitonas conservam-se assim, cobertas pela calda (que ganha com o tempo uma película à superfície, a nata, que não se retira), sendo tiradas apenas para o consumo, utilizando-se sempre, para o efeito, uma colher-de-pau, para evitar que as restantes fiquem sapateiras, isto é, amoleçam, perdendo a sua polpa a consistência e o sabor próprios. Quando tal sucede, o recipiente onde se guardavam as azeitonas deixa de se utilizar para esse fim, pois crê-se que o mesmo fenómeno poderia repetir-se.
Relativamente às azeitonas retalhadas, José Esteves referiu que "há duas formas de fazer as azeitonas retalhadas, e só se retalham a cordovil e a bica". Conforme a sua descrição, que respeita os preceitos relativos à água e à Lua, as azeitonas são sempre retalhadas com três ou quatro golpes (transversais ou enviezados, ao sentido longitudinal), e são guardadas em talhas (ou potes de barro). Na primeira variante, depois de retalhadas as azeitonas, estas são mergulhadas em água quente, sem ser a ferver, num alguidar, e aí devem permanecer uma a duas horas, até a água arrefecer; retiradas da água, as azeitonas são envolvidas em borralho (cinza), e depois cobertas com água fria, a que se junta sal, e aí devem permanecer dois dias; ao fim dos dois dias, retiram-se as azeitonas da água com cinza e sal, lavam-se bem em água fria, e guardam-se na talha ou pote de barro, cobertas apenas com água fria, onde se podem conservar assim até uns três meses; para se consumirem, as azeitonas são retiradas com colher-de-pau, colocadas numa malga, e temperadas com sal grosso.
Na seguna forma de preparação, depois de retalhadas as azeitonas, estas são mergulhadas em bastante água fria, durante mais ou menos oito dias, mudando-se a água uma a duas vezes por dia; à última muda, as azeitonas devem ficar na respectiva talha, com água apenas a cobri-las; para serem consumidas usa-se o mesmo processo, as azeitonas são retiradas com colher-de-pau, colocadas numa malga, e temperadas com sal grosso.

Vasco A. Valadares Teixeira, Comidas e Práticas do Sistema Alimentar na Região do Fundão. Lisboa, Edições Colibri, 2005. p. 109-1111.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

À janela de Taraio (4)

Uma entrevista que a Gazeta das Caldas fez com Taraio há cerca de um mês. Fica aqui arquivada, disponível para leitura, bastando clicar na imagem.

A implosão...

... do sistema financeiro da globalização continua. Fracasso da regulação? Não, os Estados há muito que dela se tinham retirado. Fracasso da auto-regulação.

Sobre o escândalo Madoff, escreve o editorialista do Le Monde, hoje:
Os franceses BNP Paribas e Natixis, o espanhol Santander, o japonês Nomura, o suiço Union bancaire privé... Em todos os continentes, os banqueiros mais reputados deixaram-se ludibriar durante anos, décadas talvez, por alguém que é já tido como um dos maiores escroques de sempre de Wall Street: Bernard Madoff, gestor de um fundo de investimento que reconheceu ter feito perder aos seus clientes a ninharia de 50 mil milhões de dólares.
Se a crise do subprime tinha evidenciado o risco dos produtos financeiros demasiado sofisticados, o caso Madoff daria vontade de rir, se não colocasse em perigo as economias de inúmeras poupanças, longe de serem todas de milionários. Assenta num mecanismo de uma simplicidade infantil: a remuneração dos investidores mais antigos não é feita através dos lucros obtidos com as suas aplicações, mas com o dinheiro entregue pelos investidores mais recentes, atraídos pela promessa de ganhos miríficos. Enquanto os investidores iniciais não tentarem recuperar os seus depósitos, tudo vai bem. Mas quando eles se retirarem do jogo, a pirâmide cai por terra.
Que um homem de negócios abuse da confiança que inspirou não é novo. Que grandes nomes da finança mundial se comportem como simples particulares colombianos, vítimas nas últimas semanas de um cenário equiparável, é nitidamente mais inquietante. Prova que colocaram dinheiro dos seus clientes sem qualquer preocupação sobre o modo como os ganhos eram obtidos.

Melancolia cisterciense


No 2º semestre de 2003, o Mosteiro de Alcobaça, celebrando 850 anos sobre a sua fundação, promoveu uma exposição intitulada (e)vocações. Comissariada por Isabel Costeira, teve a presença de Virgínia Fróis, Vanessa Santos, Sérgio Vicente, Sara Matos, João Castro Silva e José Aurélio.
Podemos agora (re)ver parte do trabalho de José Aurélio no Armazém das Artes. Denominava-se Mise en scène, equilíbrios. O que está agora exposto são estruturas metálicas concebidas pelo escultor para acomodarem e darem movimento a obras dos barristas de Alcobaça que com o tempo foram reduzidos a fragmentos. O efeito desta reinstalação é fascinante. Interpela-nos tanto a beleza destes restos de trabalho artístico perdidos no tempo como a significação patrimonial com que José Aurélio os recuperou e interpretou.

Um livro é uma coisa para se ler

Tipografia Judícibus

Levantava a tábua do balcão e entrava
com visível respeito, pelo menos tão sentido
como se fôra na igreja nova. O cheiro das tintas
e o ruído ritmado da impressora. À força de pedais

as folhas saíam, o rolo subia e logo descia
sobre o prato circular e caíam os prospectos das
festas e dos filmes. A um canto, o senhor Humberto
compunha maiúscula e minúscula, letras são

letras e impressas guardam para nós a escrita
e ouvia o Leonel (dos irmãos já só me lembro do
Cândido) louvar a habilidade requerida para a

punção, a feitura da matriz e a moldagem do tipo
e o Jorge de Almeida estendia em redor do desenho
a ponta do lápis da sua arte

sulco agudo numa camada fina de cera
deposta numa cama de metal. E a cera removia
para deixar uma letra em relevo. A Atalanta, vestido

de seda preto acentuava o vermelho dos lábios, dava-
-me farrapos de papel guilhotinados. E o &
a letra preferida desses cartazes, guardava todos os

anos pela feira de agosto, os do circo: palhaços,
trapezistas, pouco mais; a mulher do barril tinha
um certo efeito sobre o tacto do olhar. O velho Evaristo
era o dono (eu era então muito pequeno)

quando me deu a caixa com os casulos do bicho da
seda, e levou-me à estrada do cemitério para me mostrar
a tenra folha da amoreira. Era outra a folha irregular do
livro para que possa ser aparada e escrita,

erradamente à mão.
As máquinas paravam num repente de silêncio
quando a folha de tamanho reduzido mostrava o desejo
de prender a atenção, letra negra quanto possível, a

barra, a cruz, distância travada de pez
anunciava à vila o lance áspero da morte. Passo muitas
vezes à porta da Tipografia Judícibus
já não há prensa nem folhetos nem o cartão de

visita a imprimir (quis um gótico, semelhante aos rótulos que
meu pai desenhava nos frascos da
farmácia, somente o subiaco, por sinal bem bonito,

consegui) nem ninguém
daqueles que me ajudaram a perceber
um livro é uma coisa para se ler & foi por aí que comecei.

João Miguel Fernandes Jorge, Termo de Óbidos. Lisboa, Relógio d'Água, 2006.