terça-feira, 28 de agosto de 2012

Crónicas micaelenses - 3


Ponderado o inêxito do dia anterior, a sexta-feira dediquei-a conhecer as paisagens costeiras entre Ponta Delgada e Ribeira Grande. Evitando as zonas montanhosas, ocultadas pelos bancos de neblina, inclui na rota as Furnas.
A seguir a Lagoa, Vila Franca do Campo, onde me detive particularmente no porto da Caloura, em Água de Pau. Tirando partido da configuração das rochas e da guia da rampa portuária, foi construída uma piscina de mar. Sentados no muro do largo, uma plateia de homens observava e comentava. Sem legendas, não consegui perceber o que diziam. O restaurante anunciava tuna, boca-negra e peixe espada, mas era ainda manifestamente muito cedo para me sentar à mesa. Fiz mal.




Nas Furnas, parei nas margens da Lagoa, antes de entrar na localidade. Havia famílias a iniciar a refeição - o cheiro das carnes e couves cozidas sobrepunha-se no parque de merendas ao do sulfuroso expelido da terra - enquanto outras esperavam a hora prevista para retirar a panela das entranhas da terra.
Hoje é dia de Raul Brandão que viu esta paisagem com espanto, admiração e receio confessado. " Desço as Pedras do Galego e abre-se diante de mim, entre contrafortes temerosos, o esplêndido vale das Furnas. É uma bacia rodeada de montes - o Pico do Bode, a Lagoa Seca, o Pico de Ferro, o Pico do Cavaleiro. No fundo da cratera casinhas escondidas na verdura e um grande contraste entre os contrafortes cor de lousa e alguns campinhos de milho muito tenro por onde apetece passar a mão acariciando-os; entre a bacia cheia de árvores e de água, com o vulcão canalizado e reduzido a alguns penachos de fumo que saem de muros redondos de resguardo, e as grandes serras que ele vomitou e produziu. Agora está ali só para nos dar alguma inquietação - para a volúpia ser maior... Sobre a crosta que calcamos, e que terá alguns metros de espessura, o inferno naturalmente continua: basta escavar na terra com a ponta da bengala para abrir uma chaminé. Este calor e esta humidade constantes explicam os jactos impetuosos de verdura em massas de prodígio. O que noutros sitos leva séculos a desenvolver-se faz-se aqui em alguns anos - mas o que noutros sítios dura séculos acaba aqui num instante, farto de deitar raízes, de atirar pernadas pelos ares, de se desentranhar em folhas e flores”.


Paro na localidade, procurando onde comer. Já passa das 15 horas, pelo que me decido por um estabelecimento de esquina onde se anunciam hamburguers. Em lugar da bifana que encomendo, surge, meia hora mais tarde, algo que mais parece cartão prensado, seco e de cor duvidosa, que nem à força de sucessivas camadas de mostarda é possível tragar.
Seguem-se no meu périplo da tarde, a localidade de Povoação, Água da Retorta e Faial da Terra. As estradas, muito cuidadas, rompem túneis de verdura. Aqui e ali, abrem sobre plataformas verdes onde se acumulam vacas à espera da ordenha. Por vezes, também, é o mar largo que deixam entrever. A descida até Faial da Terra é singular, nesta vertigem de paisagens que proporciona. A povoação, como as anteriores surgida à ilharga de uma levada, desemboca no mar mas não se debruçou sobre ele: não tem praia nem porto.











Amigo Raul Brandão, como descreveste tu esta viagem há 90 anos?
"A estrada sobe em lancetes entre árvores que lançam raízes nos alicerces da Serra do Trigo. Plátanos enormes, eucaliptos, acácias. Um vale selvático ao lado, e defronte um monte e um contraforte a pique. Isto tem o ar de floresta, onde só se encontra de quando em quando uma serração de madeira, que enche todo o caminho de cheiro a resina. E à medida que o automóvel segue, redemoinham os fundos e as matas, modificam-se os vales, deslocam-se os  montes cheios de verdura, que passam por mim e desaparecem. Nem tenho tempo de ver os frescos novelões  que revestem os taludes nem aquela garganta apertada que abre para os fundos. Mal posso fixar um grupo de homens que deita abaixo uma árvore, uma mulher que passa com o taleigo para a fornada, o movimento pitoresco do caminho... Paredões alargam-se e estreitam-se no mesmo instante. Subimos sempre... De repente, por um rasgão descubro o mar azul entre escarpas verdes. Logo a estrada começa a descer e logo reaparecem as culturas, os campos de milho, as eiras douradas com a palha debulhada".







Pensei jantar em Ribeira Grande. Peço conselho via IPad e o "Alabote" é o indicado. Ocupa um edifício recente, de arquitectura cuidada, fronteiro ao mar. O serviço é simpático e os preços aceitáveis. Mas o cozinheiro maltrata os peixes e os mariscos, cujo sabor esconde por entre camadas intermináveis de cebola, tomate e pimento.
A noite espera-me, em Ponta Delgada. Mas a curiosidade do leitor ficará por agora insaciada. Estas crónicas aceitam ter um limite. 
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segunda-feira, 27 de agosto de 2012

À janela de Carl Dreyer

Carl Theodor Dreyer, Gertrud. 1964

domingo, 26 de agosto de 2012

À janela de Juliette Binoche

Juliette Binoche, Azul. 1993

sábado, 25 de agosto de 2012

Crónicas micaelenses - 2


Tal como se anunciava na noite anterior, a chuva continuou, persistente, pela manhã dentro. Foi sob uma  cortina cerrada de água que entrei na Universidade, onde Guimarães foi vedeta durante boa parte da manhã.
Uma pequena aberta permitiu todavia percorrer a pé o caminho curto de regresso até ao hotel para adequar o vestuário a uma condição menos formal. Pelas 12 horas dirigi-me de novo à zona portuária, onde me deparei com um grupo ocupado em tarefas de preparação de canas da Índia para a pesca ao anzol. Esta modalidade de artes de pesca impera no arquipélago. Creio, aliás, que a pesca de arrasto está  interdita na zona económica exclusiva dos Açores.

"Nunca vi tantos e tão lindos peixes. Em todo o arquipélago se pesca o rocaz vermelho, sarapintado de escuro com grandes barbatanas delicadas como asas, a magnífica abrótea, de duas qualidades, a negra da costa e a outra mais esverdeada, o albafar, a albacora, o budião, o bonito, o besugo, a bicuda, a boca- negra, o carapau, a cavala, o congro, a dourada, a enxova, o enxaréu, o goraz,  a garoupa, o íris, a mugem, a moreia, o peixe-rei, o pargo, a serra, a sardinha, o sargo, a trombeta, etc."
Pedindo desculpa a Brandão, recusei o apelo implícito nesta enumeração da oferta piscícola acoriana. Perante o insucesso da abrótea frita e dos "chicharros novos" (designação local dos "jaquinzinhos") do jantar da véspera, a opção do almoço, no "Nacional", foi um conservador bife de vaca, frito com uma mancheia de dentes de alhos esmagados. Mas a lembrança de antigos festins de peixe grelhado na Lagoa, conduziu-me em seguida a esta vila. O pequeno porto sofre obras de reforço do pontão, com um novo cordão de basalto. 

Entrei no "Borda d'Água", um restaurante instalado na antiga loja da Fabrica de Cerâmica Vieira, para marcar mesa para Sábado. As nuvens baixas recuaram o bastante para criar a ilusão de uma tarde soalheira. Tomei a nova via rápida em direcção a Ribeira Grande.
A vila pareceu-me decidida a enfrentar a crise da vida urbana de que anotara já significativos sinais em Ponta Delgada (voltarei a este tema). A nova estrada colocou-a a pouco mais de 15 minutos da capital de S. Miguel. Duas ou três obras públicas em curso podem estar a absorver mão de obra. A presença de famílias abastadas de emigrados em veraneio era visível. Na Matriz faziam-se preparativos para os festejos próximos do Sagrado Coração.



A intenção de regresso era tomar a estrada antiga pela Lagoa do Fogo. Tentativa frustrada e opção errada. A neblina chuvosa tomara por completo conta da serra da Água do Pau, adensando-se mais e mais, à medida que eu ganhava os mais de 900 metros de altitude das lombas do vulcão. A subida tornou-se penosa e porventura perigosa, mas não havia alternativa senão prosseguir lentamente e esperar que a descida devolvesse a visibilidade à condução.
Para a história do jantar oficial sentado mas sem lugares marcados, realizado no Teatro Micaelense, antecedido de uma apresentação de folclore da ilha, fica o encontro ocasional com o grupo romeno que assessorava uma presidente de região, um bela e distante mulher que poderia ter um parentesco gitano próximo com Penélope Cruz. 
Diferentemente porém desta ultima, fez questão de me  ignorar gelidamente todo o tempo que partilhamos das nossas vidas.

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Crónicas micaelenses - 1


Na narrativa da viagem do airbus da Sata entre o Porto e Ponta Delgada sobressaem dois incidentes sem história. Uma breve, embora intensa, escaramuça com um dos elos perdidos do Gordon que passara pelas ilhas do grupo Oriental açoriano dois dias antes e as duas tentativas falhadas de aterragem em Ponta Delgada. À segunda, o comandante decidiu rumar a Santa Maria e aí aguardar pelo restabelecimento da visibilidade no aeroporto de destino. Alguns passageiros mais perturbados respiraram de alivio. O comandante manteve a calma na cabine.
Para mim, passageiro com algum “calo” açoriano, foi a primeira experiência do género. Os dias seguintes confirmariam a persistência de neblinas não apenas nas zonas mais outeiradas da ilha mas também na orla marítima. Mas demonstrariam o apropósito do velho ditado micaelense que refere a possibilidade de ter as quatro estações do ano num só dia.
Tinha decidido, desta vez, alugar um carro, o que fiz pela internet (por onde também comprei o bilhete e marquei o hotel) para poder aproveitar os momentos livres e visitar pontos da ilha que vira apenas de helicóptero. E o carro lá esperava por mim.
Não pude deixar de evocar a viagem às "Ilhas Desconhecidas", de que Raul Brandão nos deixou um relato inesquecível. O escritor saiu de Cascais a 8 de Junho de 1924 e regressou da visita aos dois arquipélagos a 29 de Agosto. Embarcado no S. Miguel, um barco moderno, ele próprio evocava então a forma precedente de fazer a travessia do Atlântico. "A vida a bordo dos vapores perdeu todo o interesse da antiga navegação à vela: é a vida a bordo do Hotel Francfort com porteiro e tudo. Foi-se o encanto dos velhos navios com as vergas rangendo ao vento e o gajeiro sobe-que-sobe àquele mastro real. O que vale é a agitação tremenda que não cessa, a água em vagalhões cada vez mais cinzentos e maiores, que as velhas de penantes e plumas, sentadas de bombordo a estibordo, e que se atrevem com o oceano Atlântico, fazem o possível por amesquinhar".
Após rápida passagem pelo hotel, numa ponta da cidade, procuro estacionamento na zona central de Ponta Delgada. Encontro um lugar na zona portuária. 

Percorro devagar os pontões, espreitando as embarcações e ouvindo as conversas das tripulações. Confiro os nomes, tentando interpretar as razões das escolhas, e os aparelhos, procurando adivinhar para que pescado se destinam. Fascinam-me sempre estes ambientes portuários: as cores e os cheiros, os desenhos e as pessoas, os instrumentos e o movimento.




A cidade em fundo, vigiando o seu porto artificial, espera. Brandão, que lhe dedicou poucas palavras, descreveu-a como "uma pequena cidade, irregular e alegre, estendida à beira-mar, com as colinas verdes ao fundo". E pôs em destaque as suas "ruas asseadas, um largo, uma linda igreja e jardins maravilhosos". Com o céu de chumbo envolvendo o mar e seccionando a montanha, adivinho que Ponta Delgada vai soltar hoje os seus fantasmas.
Envolto no capote outrora usado na ilha, imagino ver passar de viola ao ombro, distraído e apressado, Vitorino Nemésio, meu professor nos idos de 1969/70. Vai cantar aos pés de Marga, essa Jácome Correia por quem se enamorou no "limite de idade". Momento pois para recitar de cor o poema que o terceirense irredutível dedicou à sua aristocrática sanmicaelense.


Um Dia é Pouco ao Pé de Margarida

A nossa intimidade a três ou quatro é constrangida.
Tenho medo no ângor e uma urtiga no pé.
Um dia é pouco ao pé de Margarida:
A ausência é menos sozinha,
A muita companhia dá bandos longe. Até
A vida
É
Se tua, já menos minha:
Se própria de meu, repartida,
Por muitos na atenção, nem tua é.
Só nossa solidão dual e penetrada
Evita o perigo do nada
A que, por condição, setas, as nossas pernas
Apontam na cavidade inexorável,
Fim de molécula qualquer.
Mas, entretanto, Margarida amável
Será flor, ou mulher?
A fome desperta, pois não como desde o pequeno almoço. Procuro o Alcides e descubro que, desde a ultima vez que estive em Ponta Delgada, sofreu uma remodelação profunda. É agora um restaurante mais turístico, mas o serviço não melhorou e a cozinha perdeu qualidade. Esta seria a primeira de outras decepções gastronómicas micaelenses.

De uma das praças adjacentes chegam os ecos de musica pop. O primeiro grupo actuava junto ao edifício da Câmara numa iniciativa singularmente intitulada “Noites de prestígio”. Tinha cerca de três dezenas de espectadores. A praça seguinte estava mais composta. Aí, produzida pela empresa de animação municipal, a festa "popular", além do grupo que tocava no coreto, era composta de barracas onde se vendiam bebidas e bancas de jogos de matraquilhos dispersos pelo empedrado central. Pareceu-me tratar-se, o jogo de matraquilos, de um passatempo muito querido dos pontadelgadenses em noites de Verão.