quarta-feira, 30 de março de 2011

José de Alencar

Conheci José de Alencar, Vice-Presidente do Brasil, numa visita que fez a Portugal em 2005. Encontro breve, protocolar, mas de que me ficou uma imagem de excelente relação com o Presidente Lula da Silva e de solidez da sua percepção dos desafios brasileiros.
Percebia-se algum desconforto físico, no homem que há muito lutava contra o cancro que acabou por o vencer agora, quase com 80 anos. Tal como Lula, crescera por si, na vida e na politica. Talvez isso os tivesse unido simbolicamente. A trajectória profissional tinha sido porém bem distinta, Alencar era um industrial bem sucedido da área do têxtil, fundador da Companhia de Tecidos Norte de Minas, uma unidade empresarial com 11 fábricas que vende no Brasil e exporta para os Estados Unidos e para os países do Mercosul e da União Europeia. Mas este mineiro não nasceu em berço de ouro. Décimo primeiro filho de uma família de quinze irmãos, começou a trabalhar bem cedo como empregado de balcão. Acabaria Presidente da Confederação da Indústria do Estado das Minas Gerais nos anos 80 e nos anos 90 Senador do Estado Federal, eleito pelo PMDB. Em 2002 fez a primeira campanha de Lula, como seu vice-presidente. Foi uma dupla vencedora em todos os sentidos.

À janela de Edgar Degas

Edgar Degas, At the Milliners. 1882.

terça-feira, 29 de março de 2011

Défice

Imprecações de um monárquico sobre o custo de vida no Minho há cem anos:

Queres tu saber, meu irmão jacobino, quanto ganha um trabalhador braçal da lavoura do interior do Minho? 120 réis diários com comida, ou 260 réis a seco. A mulher, essa por mais produtora que seja, não consegue ganhar mais do que 80 a 180 réis, respectivamente. E queres ver agora, em todo o seu horror, o quadro da miséria? Admitamos a hipótese de que o campónio obtenha trabalho todo o ano, na média optimista de 22 dias por mês – descontados os domingos, os dias santos e aqueles, muitos, em que a chuva paralisa os trabalhos agrícolas. O que ele traz para o lar, no fim do mês, são réis 2$640. Ora o milho custa presentemente, no mínimo 700 réis cada alqueire, e está calculado que uma criatura precisa de uma quarta de milho reduzida a pão para se alimentar durante oito dias com a parcimónia do aldeão minhoto.
Tomando por tipo uma família de dois adultos e quatro crianças, esta não consumirá menos de um alqueire de milho por semana, e, assim, temos:
Um alqueire multiplicado por 4 semanas, a 700 réis, dá o produto de 2$800; 22 dias multiplicado por 120 réis dá o produto de 2$640; deficit mensal: 160 réis!
E o resto? Onde o vai buscar o mísero? Nem ele vive só de pão, nem anda nu...

Carlos Malheiro Dias, Entre Precipícios... Lisboa, Empresa Lusitana Editora, s/d [1912]. p. 298.

segunda-feira, 28 de março de 2011

Claude Lévi-Strauss e os gatos

Les Chats de Baudelaire

Les amoureux fervents et les savants austères
Aiment également, dans leur mûre saison,
Les chats puissants et doux, orgueil de la maison,
Qui comme eux sont frileux et comme eux sédentaires


Amis de la science et de la volupté
Ils cherchent le silence et l'horreur des ténèbres;
L'Erèbe les eût pris pour ses coursiers funèbres,
S'ils pouvaient au servage incliner leur fierté.


Ils prennent en songeant les nobles attitudes
Des grands sphinx allongés au fond des solitudes,
Qui semblent s'endormir dans un rêve sans fin;


Leurs reins féconds sont plein d'étincelles magiques
Et des parcelles d'or, ainsi qu'un sable fin,
Etoilent vaguement leurs prunelles mystiques.

Sobre este soneto, Lévi-Strauss e o linguista Roman Jakobson publicaram em 1962 um famoso ensaio de crítica literária.
Claude Lévi-Strauss, Roman Jakobson, "Les Chats de Charles Baudelaire", L'Homme, II, Jan. Abril 1962, p 5-21 (O ensaio pode ser descarregado aqui em francês e aqui em inglês)

Vide, a propósito:
Raymon Bellour, "L'ethnologue, le linguiste et les chats", Magazine Littéraire. Hors-Série nº 5. Lévi- Strauss: L'Ethnologie ou la Passion des Autres, 2003. p. 76-78.

Como ilustração:

Gatos desenhados por Claude Lévi-Strauss

domingo, 27 de março de 2011

À janela de Lucian Freud

Lucian Freud, Large Interior. Paddington. 1968

Eu sei que é impopular, mas subscrevo

Um Dia de Vergonha na Assembleia


Ontem foi um dia de vergonha para o Parlamento e para o sistema político. Numa estranha coligação táctica, PSD, PP, Bloco e PCP juntaram-se para revogar uma das políticas emblemáticas do Governo, o modelo de avaliação dos professores. Num ápice, a pulsão destrutiva da maioria parlamentar sobrepôs-se a anos de estudos, de discussões, de negociações, de manifestações e de greves. Não se sabe muito bem se a mola real desta coligação foi o desejo de cativar a força eleitoral da classe docente, mas adivinha-se, isso sim, que vai alimentar a ideia de que as políticas públicas estão reféns dos interesses conjunturais e das estratégias partidárias. E se nesta triste história de facilitismo os partidos dos extremos do sistema político se mantiveram fiéis às suas teses, a memória do PSD neste processo exigiria outra atitude. Em primeiro lugar porque o PSD sempre se distanciou das tentativas de revogar a avaliação; em segundo, porque, mesmo querendo mudar, o partido tinha de saber esperar pela próxima legislatura. Dizem os seus responsáveis que a votação de ontem estava agendada, que nada teve a ver com o novo contexto criado com a demissão do Governo. Talvez, mas ao nada fazer para suspender a votação, o PSD e os seus parceiros de manobra acordaram numa revogação à socapa, talvez esperando colher a satisfação dos professores e o alheamento dos restantes cidadãos. Não é isso que acontecerá, nem é isso que deve acontecer. Matar um modelo de avaliação e pedir hipocritamente ao Governo que negoceie com os sindicatos um substituto num prazo de seis meses é hipócrita, irresponsável e indecente. Como o gesto digno de José Pacheco Pereira teve o condão de revelar.

Editorial de O Público, edição de hoje.

sábado, 26 de março de 2011

O tempo

Didier Éribon - A perspectiva de ficar para trás, ou mesmo esquecido, não o revolta?
Claude Lévi-Strauss - Seria uma infantilidade. Séculos de história e de ideias demonstram que esse é o destino comum.
D. E. - Mas ter realizado tanto trabalho...
C. L.-S. - Porque é que trabalhei tanto? Quando trabalho vivo momentos de angústia, mas quando não trabalho sinto um desgosto sombrio e a minha consciência atormenta-me. A vida de trabalho não é mais alegre que a outra, mas ao menos não se sente o tempo a passar.

Claude Lévi-Strauss, Didier Eribon, De Près et de Loin. Paris, Éditions Odile Jacob, 1988. p. 136.
Claude L.-S- e D. Eribon

sexta-feira, 25 de março de 2011

Disse ele

Insustentável.

quinta-feira, 24 de março de 2011

Reinterpretações bordalianas

Ontem no Mude, 7 trabalhos de 7 artistas convidados pela Faianças Artísticas Bordalo Pinheiro, das Caldas da Rainha, para homenagear Rafael Bordalo Pinheiro.
Bela Silva, Gosto tanto de ti
Catarina Pestana, A banca
Elsa Rebelo, Menina Saxe
Fernando Brísio, Elefantes
Henrique Cayatte, Lisboa
Joana Vasconcelos, Dueto
Susanne Themliz, Cactus



quarta-feira, 23 de março de 2011

À janela de Xavier Miserachs

Barcelona, 1962
Cadaqués, 1965
Semana Santa, Tarifa, 1961
Carta a la nobia, Los Catillejos, 1960
Estación de Sant Paul, 1982
Barcelona, 1992

Xavier Miserachs, 2ª ed. Introdução de Oriol Maspons. Biblioteca Photobolsillo. Madrid, La Fabrica, 2007.
Xaver Miserachs: 1 Segon i 25 centèsimes. Catálogo da Exposição organizada pela Fundação "La Caixa". Barcelona, 1992.

terça-feira, 22 de março de 2011

Soares

Num "apelo angustiado"ao actual Presidente, aquele Conselheiro de Estado e antigo Presidente, pede-lhe que intervenha. Não é um voto messiânico, é uma proposta exigente. O Presidente não é o portador de uma magistratura interpretativa, declaratória ou mesmo notarial. Ele é o mediador e, em ultima análise, o garante. Os partidos conduzem um jogo que visa apenas saber quem é que vai dirigir a formação do novo Governo que, se nada for feito em contrário, instaurará um regime de efectivo condicionamento e subalternização do Parlamento.

Camilo Castelo Branco: "Raciocinar é rir"

Conheço-me. Dei o primeiro passo na senda da sabedoria, segundo Cícero: se ipsum nosce. Cavei com utilidade no preceito: Nosce te ipsum. Sabia felizmente um pouco latim para me entender mais depressa.
A minha raiva ao planeta em que estou é acerba; mas fica muito aquém da misantropia. Em rapaz fiz de Heráclito, quando não conhecia melhor do que hoje este grego que aforou as lágrimas com honras de escola de filosofia. De tal filósofo, coisa que sirva só temos o boato de que declamava e chorava em público. Hoje em dia um homem com esta sensibilidade era levado ao comissário de polícia.
Por mim e pelos meus vizinhos também eu chorei.
Eis que desce a geada de muito invernos a nevar-me, o frio a filtrar, a temperatura dos líquidos a descer, o sangue a coagular-se, e logo o cristalizar das lágrimas no coração como as concreções vítreas duma caverna.
Principiei a rir, às vezes.
Rir é contraírem-se o diafragma e os músculos faciais. Operação materialíssima, muscular, carnal, e que nenhum animal exercita.
Claro que o rir é atributo de ser racional.
A par e passo que a razão se alumia e fecunda, as contracções musculares amiúdam-se. Raciocinar é rir. O acume da sabedoria humana é ver os reversos das tragédias sociais; lá está por força a comédia. A ignorância que esteriliza, e mirra, e encalvece é a que só deixa ver uma face da medalha.
Eu não cheguei ainda aos pináculos da sabedoria.
Vou subindo.
Subir é ir um homem desdando os nós que atam a dor estranha à sua: é ir tirando às coisas tristes a sua essência lacrimável, por feição que o sunt lacrimae rerum de Virgílio não se perceba.

Camilo Castelo Branco, Introdução de A Mulher Fatal [1870], in Camilo Castelo Branco. Obra Selecta. Organização, selecção e  notas de Jacinto do Prado Coelho. vol. II. Rio de Janeiro, Editora José Aguilar, 1960. p.  17-18.

segunda-feira, 21 de março de 2011

À janela de Edouard Boubat (2)

Espanha, 1982
Paris, 1948
Ile de France, 1978

Les Fenêtres de Boubat. Textes de Michel Butor et Dominique Preschez. Préface de Gabriel Bauret. Paris. Editons Argraphie, 1993.


domingo, 20 de março de 2011

Competências constitucionais

Artigo 134.º da Constituição
(Competência do Presidente da República para prática de actos próprios)
Compete ao Presidente da República, na prática de actos próprios:
e) Pronunciar-se sobre todas as emergências graves para a vida da República.

Artigo 145.º da Constituição
(Competência do Conselho de Estado)
Compete ao Conselho de Estado:
e) Pronunciar-se nos demais casos previstos na Constituição e, em geral, aconselhar o Presidente da República no exercício das suas funções, quando este lho solicitar.

sábado, 19 de março de 2011

sexta-feira, 18 de março de 2011

"De pulseira"

Há uma altura em que constatamos: a nossa liberdade é condicionada. Hoje foi para mim esse dia.

quinta-feira, 17 de março de 2011

À janela de Charles Demuth

Charles Demuth, The Primrose, 1916.

quarta-feira, 16 de março de 2011

Contrastes

Ontem na A1: saída de Lisboa pelas 15h30, com cerca de 18 graus. Paragem em Aveiras para tomar café e arejar o interior do carro. Temperatura a descer entre Santarém e saída para Torres Novas. Céu escurecido e tempestade de granizo seguida de neve na zona de Fátima. Carros parados na berma e dificuldade de os parabrisas suportarem o peso da neve acumulada. Sol de novo e calor em Leiria.

terça-feira, 15 de março de 2011

De viagem ao Minho, há cem anos. 4 - S. Torcato escreve direito por linhas tortas

Creio já ter dito que para a idolatria grosseira do minhoto, S. Torcato é um dos Hintzes de mais escandaloso favor nos paços de Jehovah; de sorte que podendo tudo, chega a alcançar despachos indecentes. Com taes sucessos, calcula-se o que a devoção haverá feito da moral, vezes sem conta; pedem-lhe tudo, que mate sogras ricas a genros, que cure fistulas e amor, que vingue a sova d'aquelle partindo a perna do outro, que meta juizo na cabeça d'um parvo, maluquices no sestro d'um sizudo, e tudo isto por gorgetas de nada, de guiza a ficar contente a fé, sem sangrar demasiado a sovinice. De milagre em milagre ahi vem crescendo a fama do santinho por clientellas cada vez mais sugestionáveis, de sorte á gerência da casa ter de alargar o balcão das graças celestes, tornando o pulso livre do santo em manancial de futuros melhoramentos.
Hoje, S. Torcato mete romarias de vinte e trinta mil pessoas, com enxugue de quarenta e cincoenta pipas de vinho; as suas rendas de esmolas orçam por seis e sete contos, quatro ou cinco dos quaes, pingadeira de caixa e de bacia; e a sua fama celeste ascende sempre, porque é um santo de carne, mais habilitado portanto que os Bom Jesus de castanho e as N. N. S. S. de cerdeira.
Vai em trinta annos que tendo crescido basta a fortuna pessoal de S. Torcato, resolveu a gerência, receosa da cupidez descentralisadora dos governos, dar pretextos de despeza ao sanctuario, refazendo este com magnificência atinente aos opíparos serviços prestados pelo santo á superstição bestial da pobre gente. Para a materialisação em pedra d'um tal sonho, deu-se o projecto da basílica por concurso, preferindo-se a traça de certo architecto allemão, que lá me disseram ser padre, e Deus o tenha feito melhor padre que architecto!
Não é dizer que o novo templo suba desgracioso ou falto de grandeza, n'esta simplória terra do Minho onde a Magestade de Deus mora como qualquer lavrador, n'um cazarão de muros nús, senão cuidar que tanto dinheiro sepulto e tão prodigiosa aptidão manual do canteiro indígena, estejam sendo esbanjados na execução d'um joujou simplesmente bonito e sem typo, d'essa architectura de thesoura que tira do romão, da Renascença e do gothico, bocados que ligam por um processo de salada, dando esse catitismo chamado em architectura "moderno", um dos fricassés recosinhados pela chateza dos commis voyageurs francezes de Bellas Artes, sobre a ignorância confusa do "antigo". Na vestiaria vendem-se estampas do alçado das torres, frontaria e planta da basílica, por onde em conjuncto vêr a que tende essa massa de pedras lavradas que lentamente sobe na colina. A igreja forma uma cruz de braços alongados, com sua espécie de zimbório ou clara-boia grande na intersecção de tronco e braços, e uma só nave, d'aboboda hemi-cylindrica ou ligeiramente abatida, tendo encostadas aos muros, sobre peanhas ou sócios altos, de meia altura dos muros, columnas corinthias de capiteis muito lavrados, sobre que virão apoiar-se os grandes arcos ou nervuras da abobada, espaçadas, paralelas, como as cintas de ferro d'um túnel. Por agora só estão construídos, metade (em altura) da frontaria da basílica e duas torres que ladeiam esta, o pavimento e arcos do coro, os muros exteriores do corpo da igreja e braços do cruzeiro, faltando o resto — a abobada inclusive, e a abside ou topo da cruz, que ha-de occupar o lugar da primitiva ermida, inda de pé. No concernente a detalhes, observarei que mesmo dentro da mixorfada architectonica, a frontaria, sobre mal composta é bastante mesquinha e um pouco nua, dada a riqueza e profusão das lavrantarias interiores.
Entra-se por um pórtico de moldura sóbria, que nada diz, e acima do qual se recorta e perfura uma rozacea de diâmetro acanhado em relação á grande superfície nua da muralha.Entre rozacea e pórtico, dois anjos colossaes, d'alto relevo, estendem por cima sua tarjeta com dísticos latinos, acima da qual sita em relevo uma medalhão da thiara e chaves papalinas. Em toda a largura da fachada, muito para além da rozacea, atravessa uma galeria de nichos, separados por columnellos e fechando nos extremos por outros nichos maiores com estatuetas. Esta galeria faz de longe o efeito d'um friso bordado, e circuita também extremamente as paredes lateraes. As torres crescem a cada banda da fachada, eguaes, tendo na correnteza d’esta, janellas trigeminadas, largas e altas, e lá em cima, diz o projecto, kiosques e varandins d'esculptura para os sinos, e agulhas ou lanternas fasciadas e abertas, pela reminiscência, suponho, do gothico florido ou flamboyante. Todo este conjuncto choca, verdade seja, de banalidade preciosa e de mau gosto, quando para harmonisar e engrandecer o retábulo d’essa frontaria com pretensões de sumptuosa, um pórtico d'entrada bastava, mais complexo d’estylo e mais solemne, ajuntando as emendas a seguir: 1.ª supressão do alto relevo d’anjos, que é uma esculptura aleijada, seguindo as litografias dos convites d'enterro; 2.ª alongar a galeria de nichos té ella ter pelo menos o dobro da altura que ora tem; 3.ª substituição da rozacea pequena, por outra immensa, aberta toda em rendas ligeiras, flamando como um sol e preenchendo a nudez de muro entre a galeria de nichos e o portal. Internamente, a bazilica impressiona melhor do que por fora, pois apesar do aspecto pezado, a profusão dos altos relevos decorativos dá um donaire d'elegancia, mercê da amorosa paciência que o canteiro portuguez põe nos trabalhos de pedra que lhe entregam. Aos entendidos recomendo as fachas d’alto relevo que vestem no cruzeiro alguns pannos oblongos de muralha; representam varas de cepa, enroladas de gavinha e inteiramente cobertas d'uvas e de parras. Toda a bazilica é granito de grão fino, d'um aristocrático tom de cinza claro, e menos duro que o outro, de sorte que facilmente se alisa e pule como o melhor calcareo branco de Payalvo. 
As obras, começadas ha trinta annos, vão lentamente á mercê das posses do mealheiro; activaram-se um pouco ha três ou quatro, e trabalham lá vinte maravilhosos desbastadores da pedra árida, vinte escravos artistas da tradição gloriosa de lavrantes que os monumentos de D. João II, D. Manuel e D. João V perpetuaram no meio dia e norte do reino, e em todo o Minho se alugam por 430 e 500 réis, de sol a sol! D'est'arte, se a igreja nova de S. Torcato é um monumento destinado a explorar o culto do maravilhoso perante a superstição de pobres diabos selvagens que ainda supõem inteligências secretas entre uma imagem de pau e o “regulador supremo do universo”, por outro, a escola de lavrantes e canteiros que alli mantém uma província tão laboriosa e ao mesmo tempo tão atrazada, quasi faz desejar para a bacia da igreja os tortulhos de libras a que tem juz essa pobre múmia de sola, tão temida e tão cómica, a cujos pés se teem rojado e rojarão milhares de gerações. Pois fomentando no Minho, a golpes de crendice embora, essa mesma cultura do minhoto, o pobre S. Torcato é bem uma força celeste. Escreve direito por linhas tortas.


Fialho de Almeida, Estâncias de Arte e de Saudade. Lisboa, Livraria Clássica, 1924. p. 92-97.

Nota: nesta transcrição foi respeitado o Acordo Ortográfico de 1911.

segunda-feira, 14 de março de 2011

Acelerações e travagens

Depois do exemplo do Bloco de Esquerda, com a sua moção de censura, todos acompanharam o processo - aceleração rápida seguida travagem a fundo -, Presidente, Governo, PSD/Passos Coelho. O passo seguinte tem riscos e estão todos a medi-los: dissolução da Assembleia, moção de confiança, moção de censura. Quem toma a iniciativa? Por momentos, o pântano.

O preço das palavras e o custo da oportunidade

Quanto custou ao País o discurso do Presidente?- perguntava alguém ontem em conversa preocupada.
É evidente que Cavaco se quis demarcar do Plano de Estabilidade e Crescimento apresentado pelo Governo. Mas era preciso mandar dizer que só tivera conhecimento do seu conteudo pelos jornais?

domingo, 13 de março de 2011

Rien n'est précaire comme vivre

J’ARRIVE OÙ JE SUIS ÉTRANGER

Rien n'est précaire comme vivre
Rien comme être n'est passager
C'est un peu fondre comme le givre
Et pour le vent être léger
J'arrive où je suis étranger

Un jour tu passes la frontière
D'où viens-tu mais où vas-tu donc
Demain qu'importe et qu'importe hier
Le coeur change avec le chardon
Tout est sans rime ni pardon

Passe ton doigt là sur ta tempe
Touche l'enfance de tes yeux
Mieux vaut laisser basses les lampes
La nuit plus longtemps nous va mieux
C'est le grand jour qui se fait vieux

Les arbres sont beaux en automne
Mais l'enfant qu'est-il devenu
Je me regarde et je m'étonne
De ce voyageur inconnu
De son visage et ses pieds nus

Peu a peu tu te fais silence
Mais pas assez vite pourtant
Pour ne sentir ta dissemblance
Et sur le toi-même d'antan
Tomber la poussière du temps

C'est long vieillir au bout du compte
Le sable en fuit entre nos doigts
C'est comme une eau froide qui monte
C'est comme une honte qui croît
Un cuir à crier qu'on corroie

C'est long d'être un homme une chose
C'est long de renoncer à tout
Et sens-tu les métamorphoses
Qui se font au-dedans de nous
Lentement plier nos genoux

O mer amère ô mer profonde
Quelle est l'heure de tes marées
Combien faut-il d'années-secondes
A l'homme pour l'homme abjurer
Pourquoi pourquoi ces simagrées

Rien n'est précaire comme vivre
Rien comme être n'est passager
C'est un peu fondre comme le givre
Et pour le vent être léger
J'arrive où je suis étranger

Louis Aragon

Cantado por Jean Ferrat


Está disponível na net uma tradução para português de Laiz Luz Oliveira (Brasil)

sábado, 12 de março de 2011

À janela de Gerrit Dou e Henri Le Sidaner

Entrámos num fim de semana carregado. Ofereço-nos por isso duas obras inspiradoras e uma pergunta: qual o traço de união das duas pinturas?
Gerrit Dou, Young Woman with a lighted Candle at a Window. ca.1658/1665
Henri Le Sidaner, The Hut on the Forest Edge, Étaples. 1893

Ainda a propósito de Guimarães Rosa, escritor da língua

Por portas travessas, fui referindo atrás uma velha ideia minha: o compromisso do poeta não é com os leitores, mas tão-somente com a língua. Ora a língua é a única herança que nos coube em sorte, e não é pequena, como se sabe. No meu caso, tal herança, em mais de um sentido é materna. É com esses vocábulos que interrogo a memória, num desejo insensato de preservar certos instantes; e como todos já sabem, a minha memória está cheia de rumores de águas, também destas águas; está cheia do branco dos muros, também destes muros; está cheia da poeira dos caminhos, também destes caminhos. Porque durante toda a minha infância, todas as vozes, todos os cheiros, todos os sabores pertenciam a estas terras, terras com nomes palpáveis: Póvoa, Atalaia, Castelo Branco, Fundão, Alpedrinha, Monfortinho, Castelo Novo, Covilhã, nomes "porosos" como lhes chamei um dia, nomes que se deixam atravessar pelas maternas águas da memória.

Eugénio de Andrade, "Palavras no Fundão", in À Sombra da Memória. 2ª edição. Vila Nova de Famalicão, Quasi, 2008. p. 108.

sexta-feira, 11 de março de 2011

Longo Curso

Iniciei a leitura (salteada) do livro de Estudos em Homenagem a José Medeiros Ferreira coordenado por Pedro Aires de Oliveira e Maria Inácia Rezola.
Como se compreenderá, principiei pelos textos que mais directamente se reportam à actividade do próprio homenageado, a começar pelo excelente ensaio biográfico de Pedro Aires de Oliveira (“José Medeiros Ferreira: um percurso cívico e académico”), passando pelo testemunho de António Reis (“Carta a um amigo”) e os ensaios historiográficos de Victor Pereira (“O exílio português na Suíça, 1962-1974”), de Luís Farinha (“Medeiros Ferreira e o III Congresso da Oposição Democrática, 1973: teses com futuro”).
Esta minha abordagem selectiva pode dar uma imagem errada do livro que foi inteligentemente concebido como uma obra académica destinada a celebrar uma carreira académica. Os coordenadores escolheram autores cujos trajectos pessoais e profissionais apresentam pontos de contacto activo com José Medeiros Ferreira e garantiram que os temas abordados exibem igualmente cruzamentos significativos com problemáticas que interessaram o professor e o investigador homenageado.
A intervenção cívica de José Medeiros Ferreira ocupa pois um lugar relativamente secundário neste livro, o que se justifica e certamente corresponde à vontade do próprio, mas saliente-se que não foi iludida. Afinal, a carreira universitária de José Medeiros Ferreira não teria sido possível sem a instauração da democracia em Portugal e para ela o historiador contribuiu não apenas como observador e comentador, mas como activista em diversos cargos e funções. Mais. Se José Medeiros Ferreira pode ser apontado como um dos mais sólidos historiadores da nossa contemporaneidade e um académico que muito contribuiu pela docência e pela investigação para a consagração dos estudos contemporâneos na Universidade portuguesa pós-Abril, a tais condições não será estranha a circunstância de ele ter sido um participante qualificado na própria história contemporânea portuguesa.
Conheci Medeiros Ferreira pouco depois do 25 de Abril, quando acompanhei César Oliveira na redacção do semanário Poder Popular e por cuja sede, na Rua Garret, em Lisboa (intermediada por José Manuel Galvão Teles) passavam a trocar informações e opiniões sobre o “processo em curso” diversos intelectuais regressados do exílio, ainda sem opções partidárias plenamente definidas.
Mas o seu nome constituía para mim uma das referencias mais fortes dos dirigentes estudantes da geração imediatamente anterior. E sobre esse aspecto gostaria de deixar aqui um modesto testemunho.
Na Faculdade de Letras de Lisboa, onde entrei em 1967, e onde, em 1968/69 partilhei o projecto de reerguer a antiga Pró-associação, a figura do jovem açoriano, expulso da Universidade em 1965, era apontada como exemplo de uma inteligência brilhante e de uma força corajosa. Li por essa altura um documento distribuído clandestinamente na Universidade – soube agora que trazido da Suíça por António Reis, de quem também fui colega nesses tempos da Faculdade e companheiro de movimentações estudantis – dirigido ao Exército e apelando à mudança.
Já na década de 70, alguém me fez chegar alguns números da revista Polémica, editada em Genebra, com a colaboração de diversos emigrados políticos na Suíça, entre os quais Medeiros Ferreira. Gostaria de sublinhar a importância desta revista, que julgo ter vislumbrado de imediato. Nela percebi uma primeira tentativa de mobilizar a análise história e social para a compreensão da sociedade portuguesa, das suas tensões e bloqueios, como condição para desenhar a própria acção política. Para quem há muito se distanciara das propostas politicas feitas de slogans e visões teleológicas da história, os textos da Polémica constituíram um incentivo e uma esperança. Sem percebermos o que combatemos, a vontade pode não passar de voluntarismo e a acção corre o risco de ser cega.

quarta-feira, 9 de março de 2011

Os sinais do Presidente

Pela primeira vez, a posse do Presidente preencheu todo o dia da sua agenda, com a particularidade de o período antes da tomada de posse, agora excepcionalmente prolongado, ter sido robustecido com actos políticos significativos. Depois de uma campanha eleitoral desmobilizadora e de uma vitória pouco expressiva, o Presidente pretendeu fazer da tomada de posse um momento de recuperação da sua imagem e  do seu prestígio. O discurso do dia, marcado por críticas contundentes ao Governo e apelo ao "sobressalto cívico" completou esta operação de relançamento do Presidente.
A terminologia, como sempre, diz muito sobre o sentido que de Belém, um Presidente, hoje mais fraco, quer transmitir ao País. O encontro com dirigentes associativos é denominado no site oficial da Presidência por encontro com "jovens líderes" (como se o aspecto representativo que sobreleva nos cargos eleitos do movimento associativo fosse preterido pela capacidade de liderança que obviamente é de outra natureza). A deslocação à Assembleia da República, entidade perante a qual o Presidente toma posse, é denominada no site oficial da Presidência por delocação ao "Palácio de S. Bento". No roteiro do acto de tomada de posse, figura apenas a "leitura da declaração de compromisso, juramento e assinatura do Auto de Posse" e a "alocução do Presidente da República", tendo sido omitida a alocução do Presidente da Assembleia da República.

terça-feira, 8 de março de 2011

Ontem em Urgezes

Ontem às 21 horas, colóquio intitulado "Mulher no momento actual e igualdade de género", organizado pelo Núcleo FNA 46 (Fraternidade de Nun'Alvares - escutismo), na simpática antiga Igreja matriz de Urgezes (Guimarães).
Mesa paritária, assembleia maioritariamente feminina, debate protagonizado quase em exclusivo por homens. O uso da palavra, em público, continua a ser território masculino.

"Somente renovando a língua é que se pode renovar o mundo”

Para Guimarães Rosa, a linguagem é um poderoso instrumento de acção na medida em que, ao expressar ideias – “a língua serve para expressar ideias”, diz ele em sua entrevista a Lorenz – pode atuar sobre os indivíduos, levando-os à reflexão. Mas como este poder da linguagem se enfraquece sempre que suas formas se acham desgastadas e condicionadas a uma visão do mundo específica, é preciso renová-la constantemente, e o ato de renovação se reveste de um sentido ético que o próprio Rosa explicita ao referir-se, com bela imagem, ao “compromisso do coração” que, conforme acredita, todo escritor deve ter. A linguagem corrente está desgastada pelo uso e, por conseguinte, “expressa apenas clichés e não ideias”; assim, é missão do escritor explorar a originalidade da expressão linguística, de modo a que ela possa recuperar o seu poder, tornando-se novamente apta a atuar sobre os indivíduos. É por esta razão que declara a Lorenz que a poesia “se origina de realidades linguísticas” e, em seguida, conclui que todo verdadeiro escritor é também um revolucionário, porque, ao restaurar o poder de ação da linguagem, está ao mesmo tempo espalhando sementes de possíveis transformações.

Eduardo F. Coutinho, “Guimarães Rosa: Alquimista da Palavra”. João Guimarães Rosa,  Ficção Completa, 1º Vol. 2ª edição, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 2009. p. XVI.

segunda-feira, 7 de março de 2011

"Na panela do pobre tudo é tempero"

Rezei, de verdade, para que pudesse esquecer-me, por completo, de que algum dia já tivessem existido septos, limitações, tabiques, preconceitos, a respeito de normas, modas, tendências, escolas literárias, doutrinas, conceitos, atualidades e tradições - no tempo e no espaço. Isso, porque: na panela do pobre tudo é tempero. E, conforme aquele sábio salmão grego de André Maurois: um rio sem margens é o ideal do peixe.
Aí, experimentei o meu estilo, como é que estaria. Me agradou. De certo que eu amava a lingua. Apenas, não a amo como a mãe severa, mas como a bela amante e companheira. O que eu gostaria de poder fazer (não o que fiz, João Condé!) seria aplicar, no caso, a minha interpretação de uns versos de Paul Eluard ..."o peixe avança nágua como um dedo numa luva" ... Um ideal: precisão, micromilimétrica.


João Guimarães Rosa, Carta a João Condé. Ficção Completa. 1º Vol. 2ª edição, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 2009. p. 9-10.

domingo, 6 de março de 2011

Na transição da A29 para a A25 (4)

Reportagem ontem ao fim da tarde,
Como se pode ver, a concessionária colocou 5 postes para nidificação ao lado da auto-estrada.
As cegonhas ocuparam os novos postos.
E reconstruiram os antigos ninhos. A colónia aumentou.



A proximidade do "repórter", mais do que os carros, assustou as aves. 
Uma carrinha da Ascendi veio em seu socorro, "perseguindo" o intruso.

sábado, 5 de março de 2011

Recomeço

Regresso às aulas, à ESAD, às exigências próprias da vida docente, à minha própria história.

No regresso das Caldas, paragem no Porto para visita breve às livrarias.
Há um livro de homenagem ao professor Medeiros Ferreira que merece a melhor atenção

sexta-feira, 4 de março de 2011

Género

Manhã e almoço dedicados à cerâmica caldense. Os autores: Armando Correia, Ferreira da Silva. O património: Fábrica Bordalo Pinheiro, Museu de Cerâmica, Cencal, ESAD. Se for possível conjugar todos os projectos que surgiram nas últimas três décadas, as Caldas poderá continuar a ser um centro de cerâmica de referencia.

À tarde reunião na Câmara de Alpiarça. No regresso tardio, jantar rápido no "Quinzena", já em Santarém. O restaurante lembra as funções antigas destas cidades do Ribatejo e Oeste, com a sua coroa de tabernas na zona de contacto com o mundo rural.
O "Quinzena" tinha sido tomado de assalto por grupos de adolescentes. Juntaram-se para jantar antes de partir para a sua primeira noite de Carnaval. Rapazes numas mesas e raparigas noutras. A socialização adolescente prefere hoje, como no passado, a solidariedade de género à complementaridade de sexos.

quinta-feira, 3 de março de 2011

Portugal em apuros


Jantar no Porto Palácio, organizado pela APGEI, para ouvir o Dr. Jorge Sampaio. Portugal está em apuros diz o antigo Presidente,  e retoma a sua tese de que as dificuldades estruturais de economia e do Estado exigem esforços de convergências entre partidos.
Amanhã os comentadores de serviço – na sua maioria, aliás, hostis a Sampaio – vão considerar estas afirmações puramente tácticas e ver nelas um desejo fortuito de intervenção no clima de euforia que o PS vive depois da passagem de Sócrates no exame de Berlim. 
Nada mais errado. Há muito que Sampaio pensa e diz o que disse. O que há aqui de novo é a tese da necessidade de robustecimento do Estado. 
De um certo modo, pode ler-se nesta intervenção curta e incisiva de Jorge Sampaio uma marcação do terreno do discurso presidencial do próximo dia 9.

quarta-feira, 2 de março de 2011

terça-feira, 1 de março de 2011

Espanha? Portugal?

A incapacidade europeia de liderar uma mudança de atitude face aos Estados árabes do Mediterrâneo é confrangedora. Se não for a Espanha (e porque não também Portugal?) a tomar a iniciativa, os países do Norte – que hoje dominam por completo o pensamento estratégico europeu – continuarão paralisados e mais uma oportunidade de encetar um novo tipo de relações com os povos árabes dessa região ficará perdida.