sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Guernica. Navidad? (2)

Na livraria do Prado, encontrei um livro intitulado Lección de Abismo. Nueve Aproximaciones a Picasso (Madrid, A. Machado Libros, col. La Balsa de la Medusa, 2008). O autor, Jean Clair, um polémico crítico de pintura,  foi director do Museu Picasso, em Paris. A obra agora editada em castelhano, foi originalmente publicada em 2005, pela Gallimard.
Aí pude ler um texto denominado "Natividad al revés" (Nascimento ao contrário), páginas 199-200. Transcrevo:

Tem-se reflectido muito sobre a presença, no célebre quadro de 1937, de dois animais entre os humanos, o boi e o cavalo. Que fazem aqui, no meio do desastre? Que sentido têm? Figuras tutelares ou bestas malignas? No bestiário que simboliza as forças da guerra e da paz, da águia à pomba,  a que grupo pertencem? Qual é franquista e qual é republicano? Divindades protectoras ou demónios sanguinários? Emblemas antagónicos de um princípio viril e de uma feminilidade ferida? É o cavalo, uma vez mais, um substituto da mulher sacrificada que se vê nas corridas, oferecendo as costas ao assalto do touro? Pouparemos o leitor às múltiplas, contraditórias e fastidiosas interpretações que foram feitas, desde 1937, do touro e do cavalo da Guernica. Partamos, de forma mais simples, do facto de que são animais domésticos, bestas familiares. Participam no ritual dominical da corrida de touros. Também fazem habitualmente parte da vida quotidiana dos homens no mundo aprazível e laborioso das quintas. Animais protectores e reprodutores que fornecem a força e a carne, acompanham o homem ao longo da sua existência. Assim, à cabeceira do Menino, os únicos animais admitidos ao mistério da sua concepção são o boi e a mula. E que são a mula e  o boi senão a versão reduzida no mundo animal do cavalo e do touro? Reduções à escala de um presépio, em si próprio redução de uma casa.
Além disso, o presépio é originalmente o comedouro destinado ao gado: vacas, bois e touros, cavalos, mulas... Por extensão, a palavra acaba por designar o comedouro em que se coloca o Menino, sobre a palha. Assim, a pequena construção precária, o estábulo, no qual o Filho do Homem tomou o lugar do boi, do animal de trabalho, antes de ocupar o lugar do touro no altar da Eucaristia, o animal do sacrifício destinado a remir a humanidade. Se me acompanham neste caminho, a Guernica seria uma Natividade invertida. Nascida do primeiro bombardeamento de povoações civis que o mundo conheceu, do primeiro massacre industrial executado deliberadamente no século XX, é uma representação desse novo mundo da emulação técnica e indefinida em que o nosso se converteu. É semelhante ao mundo invertido, ao mundo "ao contrário" de finais da Idade Média, cujos tratados ilustrados por farsas e parábolas, mostravam por exemplo, a mula cortando em dois o seu magarefe...
Portanto, já não se trata do nascimento, mas da morte do Menino Jesus. A morte do Menino salvador que a sua Mãe segura espantada nos braços.
[...] A imagem funde, de forma dantesca, o tema da Madona e o Menino com o da Pietà. A mãe leva no regaço o seu filho, morto antes de ter cumprido o seu destino de jovem Deus salvador. Perto deles, um homem jaz por terra, morto, e da sua mão soltou-se a flor que transportava, talvez São José.

2 comentários:

Anónimo disse...

Peço "emprestadas" as palavras a Manuel Taraio:
“os quadros são uma história e têm muitas histórias lá dentro. São o fruto da vida de um pintor e têm a ver com situações já vividas”

João Ramos Franco disse...

O olhar a peça de arte sem colocar artista junto aos factos socias que o envolvem quando a faz, penso que é um erro.
João Ramos Franco