sábado, 13 de dezembro de 2008

Um lago que me trouxesse as nuvens todas do céu

QUANDO EU ERA MUITO NOVO

Quando eu era muito novo sentia que me faltava um
lago, superfície que reflectisse o mundo
por inteiro. O meu pai levou-me à lagoa de
Óbidos e tentou mesmo as salinas de Rio Maior "vê
um grande lago salgado" mas só via as quadrículas de terra que
impediam a extensão da água
(era pedir de mais à minha imaginação a troco de meia
dúzia de acções que depressa vendi)
eu queria um lago que pudesse comparar aos versos que trazia
na cabeça (e também no coração)

um lago que espelhasse floresta e montanha (e a lagoa
de Óbidos, se não forem todos os anos ligá-la ao mar
é um charco de onde nunca vi erguer-se um
bando de patos selvagens; mas gosto, e muito, das dunas e dos
pinhais por lá perto; têm musgos de mil verdes
que chamam por ti, com a paixão de um bramido do mar)

um lago que me trouxesse as nuvens todas do céu

e quando a luz rebatesse a ondeante vaga
saberia que nenhuma imagem pode ser igual a nenhum outro
verso
o lago, eu queria; não era uma chapa de sal nem bacia de
peixes mortos, era descer na região mais sombria

lago que procurava
em sofrimento e medo
por detrás do vidro, o lago
haveria de surgir sem geografia, sem tempo
quando a barca que pousa na margem
me deu o azar e o erro
de nela embarcar em verso e
de partir a remar.

João Miguel Fernandes Jorge, Termo de Óbidos, Lisboa, Relógio d'Água, 2006

2 comentários:

João Ramos Franco disse...

João Miguel Fernandes Jorge, Bombarral, 1943. E eu tão perto, Caldas da Rainha, 1942. Para mim, “a falha”, não cruzamos e conhecemos.
João Ramos Franco

Anónimo disse...

Se cada dia cai

Se cada dia cai, dentro de cada noite,
há um poço
onde a claridade está presa.

há que sentar-se na beira
do poço da sombra
e pescar luz caída
com paciência.

Pablo Neruda (Últimos Poemas)