segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Um livro é uma coisa para se ler

Tipografia Judícibus

Levantava a tábua do balcão e entrava
com visível respeito, pelo menos tão sentido
como se fôra na igreja nova. O cheiro das tintas
e o ruído ritmado da impressora. À força de pedais

as folhas saíam, o rolo subia e logo descia
sobre o prato circular e caíam os prospectos das
festas e dos filmes. A um canto, o senhor Humberto
compunha maiúscula e minúscula, letras são

letras e impressas guardam para nós a escrita
e ouvia o Leonel (dos irmãos já só me lembro do
Cândido) louvar a habilidade requerida para a

punção, a feitura da matriz e a moldagem do tipo
e o Jorge de Almeida estendia em redor do desenho
a ponta do lápis da sua arte

sulco agudo numa camada fina de cera
deposta numa cama de metal. E a cera removia
para deixar uma letra em relevo. A Atalanta, vestido

de seda preto acentuava o vermelho dos lábios, dava-
-me farrapos de papel guilhotinados. E o &
a letra preferida desses cartazes, guardava todos os

anos pela feira de agosto, os do circo: palhaços,
trapezistas, pouco mais; a mulher do barril tinha
um certo efeito sobre o tacto do olhar. O velho Evaristo
era o dono (eu era então muito pequeno)

quando me deu a caixa com os casulos do bicho da
seda, e levou-me à estrada do cemitério para me mostrar
a tenra folha da amoreira. Era outra a folha irregular do
livro para que possa ser aparada e escrita,

erradamente à mão.
As máquinas paravam num repente de silêncio
quando a folha de tamanho reduzido mostrava o desejo
de prender a atenção, letra negra quanto possível, a

barra, a cruz, distância travada de pez
anunciava à vila o lance áspero da morte. Passo muitas
vezes à porta da Tipografia Judícibus
já não há prensa nem folhetos nem o cartão de

visita a imprimir (quis um gótico, semelhante aos rótulos que
meu pai desenhava nos frascos da
farmácia, somente o subiaco, por sinal bem bonito,

consegui) nem ninguém
daqueles que me ajudaram a perceber
um livro é uma coisa para se ler & foi por aí que comecei.

João Miguel Fernandes Jorge, Termo de Óbidos. Lisboa, Relógio d'Água, 2006.

3 comentários:

João B. Serra disse...

Magnífico poema, baseado em "impressivas" recordações da tipografia de Evaristo Judícibus, no Bombarral. O Jorge de Almeida referido é Jorge de Almeida Monteiro, genro de Evaristo, casado com Atalanta Judícibus (igualmente referida no poema). Jorge A. M. tem obra importante e pioneira na gravura e na escultura em metal. Foi também ceramista, tendo fundado uma fábrica no Bombarral (vide www.cidadeimaginaria.org).

Anónimo disse...

"No princípio era a Palavra, e a Palavra a par de Deus, e a Palavra era Deus.
Esta estava no princípio a par de Deus.
Por esta foram feitas todas as coisas, e sem ela se não fez coisa nenhuma do que feito foi.
Nela estava a vida, e a vida era a luz dos homens."
- Evangelho segundo S. João -
Assírio e Alvim, 2006

Afinal, sempre em busca do Mesmo...

-Isabel X -

Luis Eme disse...

e se for um livro que fala connosco...