segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Como colocar um espelho frente à natureza

HAMLET
Dizei a fala, peço-vos, tal como a enunciei, escorreita na língua; porque se a mastigardes como fazem muitos dos vossos actores, mais vale que um arauto me berre os versos. Nem com a mão vos ponde a cortar assim o ar; antes docilmente o fazei; pois na própria torrente, tempestade, e, como direi, moinho dessa vossa paixão, é bom ter e suscitar uma temperança que lhe dê suavidade. Ah, ofende-me cá dentro ouvir o estardalhaço de um fulano de peruca e pó a despedaçar uma paixão, esmifrando-a em verdadeiros farrapos, para ferir os ouvidos da geral, que na sua maior parte só aprecia escarcéu e incompreensíveis pantominas. Por mim mandava açoitar quem exagerasse nesses grotescos de mafoma. Fazem-se mais Herodes que Herodes. Peço-te que evites isso.
1º ACTOR
Posso assegurar vossa senhoria.
HAMLET
Nem demasiado dócil sejais, antes deixai que a própria discrição vos conduza. Ajustai o acto à palavra, e palavra ao acto, com a precaução precisa de não exceder o recato natural. Pois tudo o que é excessivo se afasta da finalidade de representar, cujo intuito foi, e é, de início até hoje, algo como colocar um espelho frente à natureza, mostrando a cara à virtude, a imagem ao que é desprezível, e a forma e impressão que são as suas à época e ar do tempo. Ora isto, em excesso ou a destempo, embora faça rir os inábeis, não deixa de ser deplorado por quem é judicioso, de quem a censura mais deverá pesar-vos do que um teatro cheio de gente. Actores que vi em cena - e ouvi ser elogiados por alguns, e muito - que, sem querer eu blasfemar, não tendo discurso de cristão, nem porte de cristão ou pagão, ou mesmo de homem que fosse, de tal modo se emproavam e gritavam que julguei que um jornaleiro da natureza os houvesse feito, e não muito bem feito, tão abominável era esse seu modo de imitar a humanidade.
1º ACTOR
Espero termos praticamente reformado isso entre nós.
HAMLET
Reformai-o de todo. E que quem faz de bobo não fale mais do que para ele foi escrito; uns há que se põem a rir, para fazer uma mancheia de espectadores estéreis rir-se também, embora haja entretanto um ponto crucial da peça a considerar. É ignóbil isso, e revela ambição altamente lamentável no bobo que o fizer. Ide aprontar-vos.

William Shakespeare, Hamlet, Acto III, Cena II. Lisboa, Edições Cotovia, 2007. p. 86-87.

domingo, 30 de agosto de 2009

A-gosto 2009

O ceramista catalão Claudi Casanovas (referência à sua obra aqui) orientou um workshop no Cencal (Centro de Formação Profissional para a Indústria Cerâmica), com a colaboração de Maria de Jesus Sheriff, "Cerâmicas A-Gosto 2009". O resultado foi uma intervenção nas margens da Lagoa de Óbidos, no chamado braço da Barosa. Recorreu-se a matéria prima disponível no local, canas e argilas. A instalação utiliza pois o adobe e constitui uma espécie de variantes sobre a escada como equivalente de passagem e metáfora do corpo. Trata-se de uma experiência e que assume o seu carácter efémero. Os movimentos dos ventos, das marés e das aves já derrubaram e transfiguram algumas das esculturas. Aqui fica o registo do que se podia ver na manhã de hoje.












De longe e não de perto

Estou de acordo, o homem é um animal essencialmente criador, predestinado a aspirar a um fim na vida conscientemente e a dedicar-se à arte da engenharia, ou seja, a abrir para si mesmo um caminho, eterna e ininterruptamente seja para onde for. Mas talvez lhe apeteça às vezes desviar-se para qualquer lado, precisamente porque é obrigado a abrir esse caminho, e também porque, por mais tolo que seja quem age directamente, talvez lhe aconteça de vez em quando pensar que esse caminho vai sempre seja para onde for, e que o principal não consiste em que direcção segue, mas no próprio facto de seguir, e em que a criança de boa moral não despreze a arte da engenharia e não se dedique à folga nociva que, como se sabe, é a mãe de todos os males. O homem gosta de criar e construir caminhos, é indiscutível. Mas porque gosta também apaixonadamente da destruição e do caos? Vá, digam lá! Porém, acerca disto gostaria eu próprio de dizer duas palavrinhas especiais. Não será possível que o homem goste da destruição e do caos (porque indiscutivelmente às vezes gosta, nada a fazer) porque tem um medo instintivo de alcançar o objectivo e concluir a construção do edifício? Talvez só de longe goste do edifício e não de perto. Talvez apenas goste de construí-lo e não de viver nele, oferecendo-o depois, aux animaux domestiques, ou seja, às formigas, aos carneiros, etc., etc.

Fiódor Dostoiévski, Cadernos do Subterrâneo, Lisboa, Assírio & Alvim, 2007. p. 53-54.

Ciberdependência

O chefe de redacção do Le Monde atribuiu a uma das suas jovens jornalistas, Elise Barthet uma inusitada missão: efectuar o seu trabalho normal, durante uma semana, sem recurso à internet. A saga "A minha vida sem internet" começou. O primeiro episódio pode ser lido aqui

À janela de Billie Holiday


I'll be seeing you

sábado, 29 de agosto de 2009

Diário

De manhã, na lagoa de Óbidos, primeira lição de vela com o Pedro. Concretização enfim de um desafio que sem convição aceitara em Abril. A paisagem deslumbrante, a massa líquida modulada pela brisa e pelas correntes que ainda resiste, apesar do desgaste tremendo do tempo e da acção desregrada do homem. Aprender rudimentos de terminologia e aspectos básicos das manobras mais importantes antes de duas horas de treino. Cruzámos a Lagoa às voltas com duas velas e um leme. Saí derreado da experiência. Mas fez sentido.
À tarde, cerimónia de despedida de Edward Kennedy na BBC/World. Os testemunhos emocionados dos filhos Edward Jr e Patrick, a expressão da saudade serena de Reggie no momento em que estendia o pano branco sobre o féretro, o belíssimo discurso de Obama. A vida de um homem é também o momento da sua morte, a forma como ainda é sentido no dia da despedida por aqueles que o quiseram ver morrer.

Programas e decisão (2)

Se os programas eleitorais são quase irrelevantes para a decisão do eleitorado, não o são os "factos políticos" criados em seu redor e respectivas mediatizações. De facto, durante semanas, o PS fez da ausência de programa do PSD tema de campanha. Erradamente, como se viu. Intensificou a atenção sobre o programa do adversário, originando uma concentração mediática sobre a sua apresentação. Pina Moura aproveitou para sair do relativo anonimato a que parecia condenado depois do insucesso da estratégia da Prisa. Ficámos a saber que não foi consultado para a elaboração do programa eleitoral do PS.

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Programas e decisão (1)

Ao contrário do que alguma retórica pretende, os programas eleitorais são quase irrelevantes para a decisão do eleitorado. O que está em causa nestas eleições é a confiança neste Governo (e neste PS) para continuar a governar e o quadro de coligações recomendado para o caso de se regressar à normalidade do nosso sistema político eleitoral (que dificulta a formação de maiorias absolutas e ameaça permanentemente as maiorias relativas).

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Kennedy e a "nova esquerda"

Edward sobreviveu aos dois irmãos e esse facto parecia que ia marcar definitivamente a sua vida, como um estigma. Teve um início de carreira que mal inspirava um ténue benefício da dúvida. Nos anos 80, acabou por se impôr como uma figura sólida que aliava o nome, Kennedy, a uma corrente estruturada do progressismo americano, mobilizando à sua volta o sindicalismo democrata e os promissores jovens políticos liberais saídos da Universidade. Norman Birnbaum, actualmente professor de Ciência Politica, caracteriza bem este papel de Edward Kenney, aliás só possível depois que a esquerda europeia, e em seguida a esquerda americana, concluiram que era mais eficaz fazer intervenção politica com os partidos convencionais socialistas e sociais democratas, procurando rejuvenescê-los e reformá-los, que perseguir de fora a construção do “verdadeiro partido socialista”. No seu artigo, que pode ser lido no El Pais de hoje, Birnbaum recorda que muitas das decisões politicas do Senador “estavam impregnadas do legado do catolicismo social estadunidense que tinha sido a Igreja dos trabalhadores emigrantes. A sua atenção diária aos pormenores da vida politica vinculava esse aspecto às vidas quotidianas de milhões de cidadãos normais”.

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Civilização

Vamos hoje ao Prado! – escrevia Júlio César Machado em 1865. Um provérbio diz “Quem não viu Sevilha não viu maravilha”; outro poderia dizer de Madrid: “Quem não foi ao Prado não tem passeado”.
É ao cair da tarde, é ao despedir do sol, é a hora serena e poética em que já se pressente a noite com a sua indolência, os seus segredos, e o seu misterioso coquetismo, que o estrangeiro indo a este sítio encantado pode fazer ideia da fisionomia da população de Madrid!
Parece que o Prado foi noutro tempo um parque disposto sem graça nem simetria, até que por influência do conde de Aranha se renovou tão feiticeiro lugar, que já havia sido testemunha de mil aventuras amorosas e politicas, duelos e assassinatos; tornou-se o terreno plano, abriram-se ruas regulares, levantaram oito fontes monumentais e transformaram-no desta forma num lindíssimo passeio.

Júlio César Machado, Em Espanha. Cenas de Viagem. Lisboa, 1865. P 151-152.

Em 2009, o escritor Antonio Muñoz Molina celebra
uma manhã de Agosto em Madrid, sentado ao fresco dos gigantescos plátanos e magnólias do Passeio do Prado que é uma das ilhas mais indiscutíveis de civilização que podemos encontrar numa cidade europeia e por onde passo tantas vezes a caminho de algumas das instituições mais civilizadas que conheço: o Museu do Prado, a Real Academia, o Thyssen, o Botânico, o Rainha Sofia, as livrarias de livros antigos das costa de Moyano, sem esquecer o acrescento mais recente, a extraordinária sede da Fundação La Caixa, com o seu jardim vertical e os seus velhos muros de tijolo como que suspensos no ar, uma nave industrial de há cem anos erguida sem peso na cidade do presente.
Antonio Muñoz Molina, “Ciudades sin civilización”, El Pais, Babelia, 22 de Agosto de 2009.


"Vêm com poesia mas é só fachada?"

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Uniões de facto

Deve o regime jurídico das uniões de facto aproximar-se do do casamento? O Presidente tem dúvidas, dúvidas em cuja formulação, aliás, transparece mesmo preferência por outro modelo jurídico. Um modelo que flexibilize em vez de condicionar, que mantenha as uniões de facto como uma "opção de liberdade". Por isso devolveu o diploma à Assembleia. Razões fortes, sem dúvida.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

De Tavira para Faro

Mostra o Público de hoje como os partidos se recusam a renovar a classe dirigente que detêm em monopólio. Quase ninguém resistiu, nas Câmaras, a fazer o último mandato (com as consequências imprevisíveis que daí advirão). E nos poucos municípios em que os Presidentes se não recandidatam, os candidatos são os seus anteriores vice-presidentes.
Entretanto, Macário Correia prenuncia o que se vai passar daqui a quatro anos, quando, por força da lei, os Presidentes com três mandatos sucessivos cumpridos à frente da mesma câmara, se não possam aí recandidatar. Fazem como ele: trocam Tavira por Faro. Ou Bombarral por Óbidos, Óbidos por Leiria, Caldas por Alcobaça, Rio Maior por Santarém, etc. Uma dança de cadeiras à custa da democracia representativa.

domingo, 23 de agosto de 2009

As duas tácticas

É uma tendência habitual nas situações em que o partido que está no Governo vai defender perante o eleitorado a sua maioria. Atacado à direita e à esquerda, critica os críticos. Temendo o esquecimento, põe em evidência a obra feita.
“Disparar em todas as direcções” é uma táctica pouco remuneradora, excepto quanto à satisfação emocional de franjas sectárias. O auto-elogio preenche discursos mas é duvidoso que obtenha uma sólida eficácia.
Resta uma outra táctica: falar consistentemente sobre o que aí vem. Encarar os eleitores como pessoas inteligentes e falar com eles de olhos nos olhos. Abandonar os sound bytes e a abertura do telejornal. Dizer o que nos propomos fazer e com quem. Com quem. Com quem.
Haverá discernimento e ânimo para esta terceira via?

sábado, 22 de agosto de 2009

Turismo em Espanha, 1864

Era um Sábado de Aleluia quando Júlio César Machado (1835-1890) partiu de Lisboa em direcção a Madrid. Acompanhava-o Manuel de Mascarenhas, Conde Óbidos, seu amigo. Levava por guia um Itinerario da Hespanha e Portugal que lhe tinha sido oferecido.
Os dois amigos apanharam o comboio da noite, chegaram a Badajoz de madrugada, onde ficaram um dia e uma noite. Partiram no dia seguinte para Madrid de mala-posta. O trajecto Badajoz-Madrid durou um dia e uma noite a percorrer.
No primeiro dia em Madrid, Júlio César Machado, após um banho retemperador, foi à Academia de Medicina fazer uma entrega de livros. À noite deslocou-se ao Teatro do Oriente para ver uma ópera, a “Sapho” de Paccini, com a celebrada artista Borghi-Mamo que conhecera em Lisboa. Tendo terminado o espectáculo às 11, os dois amigos foram passar o resto da noite no Baile das Capellanes, na antiga casa da Misericórdia.
No dia seguinte, Júlio César teve a sua agenda preenchida com uma visita matinal ao seu amigo e diplomata José Emígio da Silva Cabral e uma ida ao teatro, à noite (ver a peça “La Venganza Catalalana” de Guttierrez, com Mathilde Diez, primeira actriz de Espanha.
O dia seguinte, ocupou-o o nosso turista com uma visita ao fim da manhã ao escritor D. Manuel del Palácio, para quem levava uma carta de recomendação, após o que se dirigiu ao Museu de Madrid (hoje Museo del Prado).
O domingo, 2 de Abril de 1864, era dia de tourada em Madrid. Foi esse o programa também dos dois portugueses. Actuaram os espadas Francisco Arjona Guillen (Cúchares), António Sanchez (el Tato) e António Carmona (el Gordito).
O Paseo del Prado foi o principal objecto de atenção dos nossos turistas no dia a seguir. A noite foi ocupada com uma ida ao teatro da Zarzuela. A terça-feira foi preenchida com a vista ao Escurial. Tomaram o comboio de manhã e regressaram à noite.
Saíram de Madrid, de comboio, em direcção à Biscaia, onde se detiveram por algum tempo, e daí a Paris.
Julio César Machado. Em Espanha. Cenas de Viagem. Lisboa, Livraria A. M. Pereira, 1865.

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Assessores do Presidente

Podem os colaboradores do Presidente participar na vida partidária? Penso que o não devem fazer, pelo menos os colaboradores que exercem responsabilidades mais elevadas, como é o caso dos assessores. O sistema impõe que a candidatura presidencial seja subscrita por 7500 eleitores e os Presidentes têm declaradas extintas as maiorias que os elegeram no próprio dia da eleição. O envolvimento dos quadros da presidência em actividades partidárias, como a elaboração do programa eleitoral, está em contradição com o princípio da imparcialidade e isenção do órgão Presidente relativamente à vida partidária.

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

O regresso das “fontes de Belém”

Fórmula típica de um certo jornalismo politico que o “Expresso” popularizou, regressou agora em força, depois de anos de (justificado) ostracismo. Sampaio chegou a dizer “fonte de Belém sou eu, desminto tudo o que me seja atribuído sem que eu o tenha autorizado ou validado”, reiterando que o Presidente não se esconde atrás de uma espécie de anonimato irresponsável para dar recados ou fazer alertas.
Na ausência de um porta-voz da Presidência – que, no meu entender, devia ser o Chefe da Casa Civil - todas as comunicações com origem em Belém devem ser identificadas. É isso que prestigia e defende o órgão unipessoal que é o Presidente da República. Todos os Presidentes têm glosado o poder da palavra, como elemento essencial da força moral que lhe assiste. Essa palavra é por definição um elemento constituinte do espaço público em que se desenvolve a função presidencial. Não pode ser desperdiçada através do recurso a fontes inimputáveis.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Os disparates

Como aqui assinalei, o diferendo entre o Presidente e a Assembleia da República, a propósito do Estatuto dos Açores, constituiu um caso sem precedentes. O Presidente entendeu, prerrogativa que só à função presidencial assiste, que estava em risco o relacionamento institucional (designadamente entre Presidente e Partidos) e dirigiu uma mensagem dura ao País. Não quis entregar ao Tribunal Constitucional a arbitragem do conflito, certamente por entender que este tipo de diferendo não era susceptível de obter solução por tal via.
Compreende-se mal que o Partido Socialista, que tinha tido todos os restantes partidos ao seu lado na votação inicial do Estatuto, e o Governo, que tinha passado incólume no primeiro embate, se tenham deixado isolar progressivamente nesta questão. Menos se entende esta sucessão de incidentes, que após a declaração de inconstitucionalidade de alguns artigos do Estatuto, têm alimentado com o Presidente. Refiro-me à não recondução do Prof. João Lobo Antunes no Conselho Superior de Ética e, agora, à critica a assessores do Presidente que terão colaborado com o PSD. Não creio que o Partido Socialista e o Governo saiam beneficiados deste tipo de tensão com o Presidente.

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Pancho Guedes em Maputo

A uma quase arquitecta perdida em Maputo:
Justificar-se-ia, creio, a elaboração de um roteiro, a que eu próprio gostaria de ter podido dedicar algum tempo, dessas marcas de Pancho Guedes na cidade.
Aqui vão as informações de que disponho para os edifícios "Leão que Ri" e "Padaria do Saipal", que, salvo erro, são referidos no seu comentário.
Num texto de 2004, escreveu o próprio Pancho:
"o leão que ri está situado na esquina da avenida princesa patrícia e rua heróis de nevala, crreira de tiro, lourenço marques". 
"o leão sobrevive, gasto e sujo - refúgio de indigentes, marginais e crianças. o leão que ri é agora simultaneamente horrível a maravilhoso".
Sobre o Saipal, apenas lhe posso referir o que figura na exposição do CCB, na ficha da autoria do próprio Guedes:
"A padaria Saipal era a sede e a fábrica da Cooperativa de Padeiros de Lourenço Marques. (...) Desenhei o edifício com base nas plantas de máquinas fornecidas pelos fabricantes alemães de fornos e outro equipamento. Infelizmente as máquinas não sabiam fazer pão à portuguesa e recusaram-se a ser adaptadas. Os padeiros começaram a desentender-se e a Saipal em breve abriu falência".
Ainda existirão restos do edifício, no bairro de Maxaquene?
Veja se esta indicação que colhi no blogue Estrada Poierenta lhe pode ser útil:
"Um edificio memorável assassinado pela ignorancia governamental está atrás do cemiterio SF Xavier, a antiga padaria SAIPAL, mesmo perto do hangar dos TPU(ex-SMV)".

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Rendez-vous. Entre inimigos.

A interrogação central é em volta do amor. Sempre foi. Para Quentin, o que fica depois da morte. Para Paulot, uma obsessão sexual. Para Scrutzler, uma inquietação do espírito. Para Nina, talvez o teatro, ela que vê em Julieta o papel da sua vida. 
A melhor resposta neste filme admirável: uma relação entre inimigos.
Nina, Julieta, é evidentemente Juliette Binoche. Juliette Binoche tinha então 21 anos! Téchiné fez um filme para ela, com ela, por ela. Como o compreendo!
Revi-o na passada quarta-feira.

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Zip-zip

Num texto sobre mudanças em Portugal 1960-1990, escrevi em 1998:

"Estas mudanças que cruzam a população, o aglomerado e o território traduzem-se também em mudanças de tipo civilizacional. Nos finais da década de 60 e primeiros anos da de 70, os sinais ai estão, de costumes e práticas em ruptura com o tradicionalismo puritano e hostil ao estrangeiro: desde a mini-saia (então um “escândalo”), a par de um lugar mais igualitário para mulher, a difusão dos contraceptivos, a par de novos entendimentos do matrimónio, os centros comerciais, a par de novos hábitos de consumo, os bares abertos até de madrugada ou as sessões de cinema da meia-noite, a par de novas formas de convivência entre grupos, nomeadamente jovens, o popular programa televisivo “Zip-Zip” – um “talk show” que quebrou o monolotismo cinzento do que os portugueses podiam ver sobre si próprios –, a par de novas exigências culturais de massa."

Recuperei este texto motivado por uma observação do meu amigo José Medeiros Ferreira relativa ao cidadão Raul Solnado. Reduzir a figura de Solnado ao "Zip-Zip" é errado, mas também não devemos subvalorizar o programa que ele popularizou.

Um testemunho "autorizado"

A política é um activo da notoriedade social e sempre foi assim. A profissionalização dos políticos criou figurantes da cena cujo curriculum vitae se resume à carreira política, com as suas escalas e regras próprias. Como é sabido, não há hoje equivalente ao cursus honorum da República, vigorando antes regras criadas e geridas no interior dos partidos.
A crítica mais violenta que se pode fazer a este sistema vem de alguém que até hoje dele viveu e com ele conviveu. Diz Feliciano Barreiras Duarte, deputado preterido nas listas do PSD/Leiria, em favor de Maria da Conceição Jardim Pereira, vereadora da Câmara das Caldas desde 1985:
"Interpreto isto apenas como uma vitória do lado da vingança, do aparelhismo puro e duro e do ajuste de contas por parte de pessoas que precisam da política para sobreviver socialmente" (Jornal de Leiria, 6 de Agosto de 2009).

domingo, 9 de agosto de 2009

Ritornelo

Una lágrima o un beso.
Un silencio entrecortado en rumores.
Una mano de nieve.

Atardecer.

Cabellera en sombra.
Lento paralelismo de unos labios.
Una hoja que resbala en las pupilas.

Nada más.

Alfonso Calderon 
(21 de Novembro de 1930-09 de Agosto de 2009)

sábado, 8 de agosto de 2009

Pancho Guedes no CCB

Até dia 16 ainda pode ver uma das mais interessantes exposições de que tenho memória, a de um extraordinário arquitecto/pintor/escultor nascido em 1925 e que não cessa de nos surpreender.

Janelas de Pancho Guedes (de dia, de noite)

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Depois do PS, o PSD

A mesma falta de ousadia em enfrentar e dar voz à real diversidade do mundo que se reconhece e deve ser reconhecido pelos partidos, a mesma visão expedita no recrutamento de um ou outro nome das franjas que têm voz nos media, a mesma preocupação de garantir o lugar dominante às fidelidades garantidas - na lista dos deputados.

Guião para as Caldas (uma proposta)

Na segunda metade do século XIX, quando “mudar de ares”, no Verão, entrou nos hábitos das elites urbanas, Caldas da Rainha tornou-se um destino quase obrigatório. Além da família real, com residência dedicada na vila, nomes sonantes da política, dos negócios, da vida intelectual, ali permaneciam duas semanas entre finais de Julho e princípios de Setembro, em hotéis, pensões, casas alugadas. A imagem que das Caldas se construiu então, e perdurou pelo século XX, é em boa medida uma imagem literária, alimentada pelo encanto, pela ironia, pela nostalgia dos nossos escritores (a título de exemplo: Júlio César Machado, Pinheiro Chagas, Eduardo Coelho, Fialho de Almeida, Abel Botelho, Manuel de Sousa Pinto, Augusto de Castro, António Ferro, Luís Teixeira).
Vivia-se na povoação um tempo de euforia. Acreditava-se na possibilidade de transformar as Caldas numa das mais importantes estâncias termais da Europa. O caminho de ferro, inaugurado em 1887, colocava-a ao alcance de qualquer viajante, português ou estrangeiro, vindo do Norte ou de Lisboa. A vila dotava-se sucessivamente de equipamentos modernos: uma calçada para o mercado, no Rossio, doravante reservado a produtos mais nobres, uma nova Praça para venda dos restantes géneros, uma sala de espectáculos, uma praça de touros. E as velhas Termas, criadas no século XV, com a sua originalidade - um Hospital de internamento e corpo clínico permanente - eram igualmente submetidas a um processo global de remodelação: mais dois hospitais construídos de raiz, um para doenças gerais (Santo Isidoro) e outro para termalistas (D. Carlos I), um grande parque com áreas de lazer e desporto adequadas às novas exigências do público endinheirado e mundano.
Praticamente em simultâneo, ocorria uma revolução na manufactura mais emblemática das Caldas, desde o tempo da Rainha fundadora, D. Leonor: a cerâmica. Na segunda metade do século XIX, uma brilhante geração de ceramistas, entre os quais o destaque maior vai para Manuel Cipriano Gomes "Mafra", Francisco Gomes de Avelar, José Alves Cunha e José Francisco de Sousa, integrou-se na corrente "neo-palissy", povoando a sua louça de formas e decorações naturalistas, cobertas por impressivos vidrados, com destaque para o verde esmeralda e o amarelo mel. A cerâmica caldense obteve então grande projecção em Portugal e até no estrangeiro (Inglaterra, Países Baixos, Brasil, Estados Unidos). Em 1884, instalar-se-á nas Caldas um dos artistas mais populares e criativos na época, Rafael Bordalo Pinheiro, ali desenvolvendo ininterruptamente, até 1905, data da sua morte, uma espantosa colecção de novos modelos que percorreram todos os campos da produção cerâmica: da telha e tijolo à louça de mesa em faiança produzida industrialmente. Mas foi no azulejo e na louça decorativa que o génio de Rafael Bordalo Pinheiro atingiu uma capacidade plástica e inventiva de excepção.
Confiante, a vila, cuja população crescia rapidamente, renovou as fachadas dos seus prédios de habitação e de comércio, recorrendo ao jogo de cantarias, ao ferro forjado e ao azulejo, num cosmopolitismo onde avultam as influências da “arte nova”.
Na vida do núcleo urbano caldense, momentos como este, de profunda reforma urbanística associada às Termas, tinham paralelos históricos. Desde logo, o momento da fundação propriamente dita, na qual são mobilizados objectivos e meios de uma grande princesa renascentista, a Rainha D. Leonor, mulher e irmã de reis, que reorganizou o sistema de assistência da época e foi mecenas das artes e das letras. O plano do Hospital e da sua Igreja – ambos consagrados a Nossa Senhora do Pópulo, provavelmente por sugestão de um conselheiro da Rainha, cardeal em serviço na cúria romana e devoto de Santa Maria Del Populo – foi confiado a mestres do Mosteiro da Batalha. A Rainha administrou pessoalmente o estabelecimento e foi nesse quadro de “corte na vila” que, por exemplo, um auto de Gil Vicente foi na Igreja representado em 1504.
Uma segunda fundação ocorre em meados do século XVIII, também por iniciativa régia, de D. João V, monarca de tempos áureos. As estruturas termais, herdadas do século XV, estavam envelhecidas e degradadas e o Rei quis corresponder às sugestões dos seus conselheiros que acreditavam nas virtudes salvíficas das águas termais comprovadas pela Medicina e pela Química modernas. Assim, um novo Hospital foi erguido (é o que hoje existe, acrescentado de um piso no século XIX), a Câmara Municipal dotada de edifício próprio, no Rossio, e um sistema de abastecimento de águas à vila desenhado e realizado. Tudo isto sob a direcção dos engenheiros que meia dúzia de anos mais tarde iriam ser incumbidos da reconstrução da Lisboa devastada pelo terramoto (1755).
Em 1927, a vila das Caldas da Rainha foi elevada ao estatuto de cidade. Aproximava-se dos 8000 habitantes (em 1852, seriam 2000, números redondos, 2700 em 1878 e 4600 em 1900). Na altura eram raras as cidades que não fossem sedes de distrito, e, de Lisboa para Norte, era a primeira, numa distância de mais de uma centena de quilómetros. As elites locais procuraram fazer dessa conquista política uma alavanca para consolidarem as valências herdadas e projectarem novas. Entre as herdadas estavam as Termas, a polarização de uma região agrícola com produções de qualidade, e a cerâmica. As novas valências eram: um urbanismo equilibrado entre o novo e o antigo (sob a responsabilidade do arquitecto Paulino Montês), um envolvimento com a actividade artística (Malhoa, um Museu de raiz criado no contexto das comemorações nacionalistas dos Centenários, em 1940) e uma aposta no comércio e nos serviços, incluindo o turismo de praia, diversificando as actividades económicas.
Esta aposta estratégica foi razoavelmente sucedida, ancorada na circunstância de a cidade ter permanecido na rota do principal eixo viário do País, até aos anos 1960, e ter beneficiado do nascimento, estadia ou naturalização de um lote excepcional de intelectuais, como Costa Mota, Francisco Elias, Hansi Stael, Ferreira da Silva (ceramistas), António Duarte, João Fragoso, António Vitorino, Afonso Duarte Angélico, Martins Correia, Júlio Pomar, António Quadros, Artur Bual, José Aurélio (artistas plásticos), Raúl Proença, David Mourão Ferreira, Manuel Ferreira, Luís Teixeira, Mário Castrim, Santos Fernando, Luís Pacheco (escritores). Para um ambiente urbano arejado e desenvolto que se viveu nos anos 50 e 60 também terá contribuído a circunstância de os caldense terem sido surpreendidos, a partir de Julho de 1940 com a chegada de centenas de refugiados da II Guerra. "Inesperadamente – noticiava o semanário local - automóveis estrangeiros começaram a parar nas ruas da cidade, enquanto muitos outros, atulhados de bagagens, se dirigiam para o sul. (...) Os hotéis ficaram cheios de estrangeiros: austríacos, ingleses, franceses, americanos, belgas e holandeses.(...) Gente estranha, de todos os credos políticos e de todas as religiões (...)".
A década de 1960 trouxe consigo um elemento perturbador da posição caldense, quando o tráfego rodoviário Lisboa-Porto deixou de passar pela cidade, que só voltaria a recuperar vantagem em acessibilidades com a conclusão das ligações por auto-estrada a Lisboa, Leiria e Santarém, mais recentemente.
Pode dizer-se que as últimas três décadas do século XX foram o palco das hesitações e dificuldades de todas as cidades portuguesas, designadamente as do litoral. Nas Caldas,o  termalismo foi lento a modernizar-se e perdeu a liderança nacional, face à concorrência de outros centros com uma gestão especializada. A pressão urbanística, embora sem a violência de outras paragens, não deixou de se fazer sentir, e o turismo de massa, associado às praias, também atingiu as Caldas. As elites locais tentaram por todos os meios evitar a periferização, perante a concorrência de outros centros regionais, mas nem sempre terão sido bem sucedidas ou avisadas nesse objectivo.
A cidade conservou, como pôde, o seu património termal, que não desistiu de ver dignificado e projectado para o futuro. Conservou a vivacidade do seu mercado de géneros diário em praça aberta, no cenário do antigo Rossio. Conservou um comércio tradicional que é um factor de animação económica e social. Conservou a sua histórica disponibilidade para a valorização das artes, acrescentando ao Museu de José Malhoa novas colecções e instituições museológicas. Procura projectar a sua experiência histórica numa Escola de Artes e Design de cujo curriculum de prémios nacionais e estrangeiros justamente se orgulha. É uma cidade aberta que conserva vivas as marcas, por vezes contraditórias, da urbanidade moderna.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Guia para as Caldas (uma proposta)

Caro visitante: está disponível para percorrer a cidade, descobrir os sinais do tempo, dialogar com aqueles que a construíram no passado e que a fazem hoje, eventualmente participar na identificação das opções e desafios que se colocam ao seu futuro?
Prepare-se então para deambular pelas suas ruas, entrar nas suas lojas, voltear no seu mercado matinal, descobrir o seu Parque, espreitar as suas Termas, soltar a curiosidade nos seus museus, apreender as modalidades da sua cerâmica, saborear os seus comeres, observar as suas aldeias da meia encosta, sentir a maresia forte da Foz do Arelho.
As ruas das Caldas contam várias histórias: a história do urbanismo, do século XVI até ao século XX, a história do azulejo, das suas técnicas e dos seus reflexos; a história da edificação e da arquitectura (com interessantes apontamentos, sobretudo “arte nova”).
Levam o visitante junto dos elementos patrimoniais mais significativos e permitem que “se perca” no seu pequeno centro histórico, com as suas ruas estreitas e as suas capelas antigas.
As lojas das Caldas ainda contêm surpresas, numa era de globalização. Nas Caldas há uma rua cujo nome oficial é praticamente desconhecido, de há tanto se chamar Rua das Montras.
A Praça da República, ou simplesmente a Praça, tem duas faces: manhã bem cedo enche-se de vendas de frutas, legumes, flores, cestos, azeitonas, frutos secos, ovos, pão, queijo e bolos regionais, alguma cerâmica brejeira. É um mercado de ar livre que diariamente se faz e desfaz. Por volta das 13 horas começa a recolha dos elementos de exposição e dos restos. Após a limpeza, de tarde e à noite, Praça é outra, ponto de encontro ou de passeio.
Construído na década de 90 do século XIX, o Parque das Caldas foi um dos primeiros equipamentos da modernização termal da época. Tem uma dimensão invulgar e uma arborização acolhedora. No seu lago reflectem-se os chamados Pavilhões do Parque, exemplar de uma arquitectura talvez exótica, mas a que se colou, nomeadamente na perspectiva do seu reflexo nas águas paradas do Lago fronteiro, uma das imagens mais divulgadas da cidade.
O Parque surge na continuidade do Hospital Termal, que há muito ambiciona reservar o Largo que os separa ao trânsito pedonal. 
Caro visitante, se se queixa de doença do foro reumatismal ou do foro respiratório, estas são provavelmente as Termas que lhe convêm e talvez seja aconselhável proceder a inscrição. Se não for esse o caso, ponha os objectos de ouro e prata em bom recato (o enxofre ataca os metais) e enfrente decididamente o odor inconfundível das águas sulfúreas. Recolha-se por momentos na piscina da Rainha e inspire-se nas palavras que D. João V lhe quis dirigir ("Tu, que a esta casa te acolhes, imita-os – os fundadores – quanto puderes e não te arrependerás"). Em seguida, visite a Igreja de Nossa Senhora do Pópulo, datada de 1500, “bela e pequena jóia da nossa arte tardo-gótica”, como foi classificada por um historiador de arte. Tudo nela suscita a atenção: dos aspectos construtivos da abóbada ao revestimento azulejar, da pia baptismal à porta da sacristia, do tríptico colocado no arco triunfal até à torre sineira.
A instituição dispõe de um Museu, centro expositivo e interpretativo onde pode seguir, através da pintura, da escultura, da paramentaria, de instrumentos e aparelhos médicos e hospitalares os passos principais da história das Termas e da própria cidade cuja criação impulsionaram.
Os Museus das Caldas dispõem de boas colecções de pintura e escultura portuguesas do século XIX e XX. Refiro-me ao Museu de José Malhoa e aos museus Municipais de António Duarte, João Fragoso e Barata Feyo. Mas devo prevenir que alguma escultura contemporânea, designadamente a que provém da actividade dos Simpósios de Escultura em Pedra promovidos pela Câmara Municipal de dois em dois anos, se encontra em espaço público dispersa pela cidade. A Câmara também prepara a criação de um Atelier com uma colecção de obras do artista plástico e ceramista Ferreira da Silva. Alguns dos seus trabalhos cerâmicos podem ser admirados em espaços públicos da cidade.
A cerâmica caldense também pode ser vista em Museu. O Museu de Cerâmica está instalado num palacete revivalista construído nos finais do século XIX que, só por si, pede visita. Apesar dos condicionamentos do espaço, a colecção exposta é (sempre) surpreendente. Há uma fábrica que dispõe de Museu próprio: a Bordalo Pinheiro, fundada em 1908, herdeira do nome e dos modelos do maior ceramista português. Outras mais recentes, apostadas em novos produtos e formas, como a Molde, também merecem uma visita, tal como o Centro de Formação Profissional para a Indústria Cerâmica, que desde meados da década de 1980 tem acompanhado os vários caminhos da renovação industrial. No mesmo passo se poderá inserir a Escola Superior de Artes e Design, uma escola em cuja origem a cerâmica marca presença. É um edifício premiado.
A oferta cultural é assegurada nas Caldas por um grupo teatral residente, o Teatro da Rainha, por um Centro Cultural municipal com uma programação diversificada, e por diversas associações culturais. O visitante pode estar certo de que terá sempre uma proposta interessante à sua espera.
A cidade dispõe no campo da gastronomia de uma oferta sólida. As suas pastelarias são recomendáveis nos doces tradicionais: trouxas e cavacas. Pode-se encontrar comida internacional de excelente confecção, nomeadamente italiana. Há restaurantes de comida regional nas Caldas, na Foz do Arelho e em diversas aldeias. Neste caso, é possível combinar uma excursão gastronómica com a observação da paisagem agrícola e patrimonial, pois algumas das sedes de freguesia do concelho foram até ao século XIX vilas dos coutos da abadia cisterciense de Alcobaça.
Mas se o visitante for daqueles que não pode passar sem o mar, então a Foz do Arelho é o lugar certo, com a presença forte do Atlântico, e, se a neblina o não impedir, o horizonte povoado da península, outrora ilha, de Peniche e das Berlengas. Não o devo porém deixar sair da Foz sem lhe propor que suba lentamente a encosta da Lagoa onde hoje se encontram as magníficas instalações da Fundação Inatel. Aí, sentado na varanda, onde Francisco Grandela outrora sonhava com uma nova Veneza, é o momento de o seu coração serenar enquanto o sol se põe no horizonte.
Pode ficar aí mesmo, no Inatel. Mas a cidade dispõe de dois hotéis de três estrelas e três boas residenciais, e ainda de um turismo de habitação, em pleno centro histórico, além de turismos rurais nas imediações e na Foz do Arelho.
Há sempre, claro, Óbidos, com o seu ambiente intimista, onde uma verdadeira movida enche os seus cafés e bares aos fins de semana (e toda a semana durante o Verão). A noite começa lá. E pode lá acabar, claro. Mas também pode acabar na Foz do Arelho, onde as discotecas se tornaram já verdadeiros lugares de culto.

Guias e roteiros (2)

A produção de Guias e Roteiros auxiliares de viajantes e turistas cresceu muito nas duas primeiras décadas do século XX. Ao facto não é estranho o aparecimento e expansão do automóvel. Já existia uma rede ferroviária que todavia não se estendera a todo o país. A circulação rodoviária exigiu a elaboração de guias de estradas, com a competente indicação das distâncias, dos locais de abastecimento de combustível e dos restaurantes, pensões e hotéis. A fotografia que também se popularizou pela mesma época encontrou aplicação num produto específico de propaganda das localidades e dos seus pontos de atracção, as suas marcas pitorescas: o bilhete postal ilustrado. Muitas das fotografias dos postais eram também utilizadas nos guias e roteiros com que as vilas e cidades turísticas editaram entre 1900 e 1920.
A República, chamando pela primeira vez, em 1911, o turismo à categoria de departamento administrativo na dependência do Ministério do Interior, reconheceu ao sector valor económico e importância politica. Pouco depois, seria a vez das Câmaras Municipais se organizarem para responder às necessidades e incentivarem o turismo nos respectivos concelhos. A produção de guias e roteiros recebeu por aí um novo impulso.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Idade

Sharon Stone, 51 anos, deixou-se fotografar para a Paris-Match.
Pergunta do jornalista: 
A perfeição do seu corpo com 51 anos, sendo em si própria uma provocação, penso eu, faz parte da relação que mantém com a objectiva fotográfica e do modo como fabrica a sua imagem?
Resposta de S. Stone:
Há uma idade a partir da qual estamos proibidos de fazer certas coisas, mostrar o corpo? Metade da vida não é o fim da vida! Se alguém ficar chocado com as minhas fotografias, é em resultado do seu próprio olhar sobre a idade e carber-lhe-á interrogar-se sobre a razão pela qual se resignou. O significado destas fotos para mim nada tem de especial, pois a minha vida não se alterou aos 50 anos, eu não mudei. Não percebo onde está a provocação. Se eu tivesse achado isso, talvez não as tivesse feito, pois não tenho a alma de uma provocadora. Mas quem é que decidiu em que idade se começa ou se termina? Porque é que temos de renunciar? Não tenho gosto de viver em função do olhar dos outros. Nestas fotos, vejo-me à imagem dos modelos de Renoir. Acho que é bem mais chocante ver adolescentes despidas nas páginas das revistas, o que e corrente, do que ver uma mulher de 50 anos. Não lhe parece?

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Roteiros e guias (1)

Comecei há alguns anos a adquirir roteiros e guias de Portugal. Do pequeno conjunto de obras que consegui reunir, fazem parte as descrições gerais do país e das suas regiões que acompanharam representações nacionais em exposições internacionais, repertórios do património imóvel organizados para fins turísticos, guias com indicações sobre locais a visitar ou atracções a não perder, roteiros para viajantes, etc. O objectivo que presidiu a esta colecção foi o de tentar perceber como é que Portugal se apresentou a si próprio e ao mundo, com que conceitos se pensou como território digno de nota, que temas da paisagem e da história considerou indispensáveis para definir a sua identidade local e regional.
A colecção não abrange literatura de viagens, apesar das afinidades entre os dois tipos, que não se confunde com o dos guias e roteiros. Estes são produzidos de dentro para fora e a sua finalidade é proporcionar um conjunto de informações e indicações básicas sobre um dado território. Também não integra os trabalhos elaborados por espiões ou com fins sectoriais, como os que resultem da aplicação de inquéritos ou outro tipo de inventários locais.
Uma das primeiras peças da minha pequena colecção é uma obra intitulada Cintra Pintoresca (Sintra Pitoresca, escreveríamos hoje). Há uma extensa e variada produção do último quartel do século XIX sobre o pitoresco. Provavelmente o termo é uma adaptação do italiano pintoresco, que significa digno de ser pintado. O pitoresco abarca tudo aquilo que define e individualiza uma paisagem cultural. A revista Ilustração Portuguesa, o primeiro periódico português a publicar sistematicamente foto-reportagens, fazia do pitoresco um dos alvos preferidos dos trabalhos de fotografia. Tanto podia referir-se a um traje como a um monumento, tanto a uma casa típica como a um trecho de paisagem.
Ramalho Ortigão referiu-se às Caldas como o centro e uma região pitoresca. Ele aliás escreveu um guia de caldas, ou seja de terras de águas (termas) e foi um viajante ilustre tanto em Portugal como na Europa. Quando o Governo deliberou criar uma comissão de reforma das termas caldenses, em finais do século XIX, além de médicos de grandes hospitais, previu a inclusão de um touriste de reconhecida competência. Ainda não se tinha aportuguesado a palavra turista. O tal touriste era Ramalho.

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Livre arbítrio

A forma substancial toda, que erecta
é da matéria e é com ela unida,
especial virtude em si colecta
a qual já sem obrar não é sentida,
nem se demonstra mais que por efeito,
como, por verde fronde, em planta a vida.
Assim, lá onde o intelecto é leito
das primeiras notícias, não se sabe,
nem dos primos desejos tal afeito,
que é só em vós, como a abelha se babe
a fazer mel; e em tal primo querer
nem louvor nem censura então lá cabe.
Por este todo o mais vá acolher,
Tem inata virtude que aconselha.
E o limiar do assenso deve ter.
Esse é o princípio lá onde aparelha
razão de merecer em vós, segundo
que amores bons e maus tria e espelha.
E os que discorrem indo ao fundo,
dão conta dessa inata liberdade;
do que moralidade dão ao mundo.
Onde ponhamos a necessidade
vem todo o amor que dentro em vós se acende,
já de retê-lo é em vós a faculdade.


Vasco Graça Moura,
A Divina Comédia de Dante Alighieri. Lisboa, Bertrand, 1997. p. 457.

domingo, 2 de agosto de 2009

sábado, 1 de agosto de 2009

Noites de Verão na Foz do Arelho

O texto em baixo, exumado do fundo de um baú com mais de 4 décadas, pretendia ser um roteiro jornalístico da noite da Foz do Arelho. Foi elaborado na perspectiva de um adolescente de 16 anos que passava duas semanas das suas férias de Verão na Colónia de Férias Marechal Carmona (FNAT, hoje INATEL).
Os pontos de referência eram, além da própria Colónia de Férias, o Hotel Facho, o restaurante Félix, o Parque de Campismo, a aldeia da Foz com a sua praça e o café Caravela. Descontando as lacunas de informação imputáveis à idade e experiência do autor, cada um destes pontos de referência é sumariamente caracterizado: a pequena burguesia forasteira da FNAT (que a si própria se denomina de "colonos"); o cosmopolitismo dos frequentadores do Facho (franceses, ingleses, alemães); os grupos "aventureiros" de campistas; as caldeiradas do Félix à espera das quais os clientes se impacientam; os jovens locais que à noite dançam na praça ao som do acordeão e de dia se encontram no Caravela, os grupos de fadistas improvisados e contadores de anedotas que se formam à noite junto ao cais da lagoa, a figura de um "playboy". Por entre as descrições, nem sempre muito realistas, alguns apontamentos que identificam um ambiente e uma época: os cantores do momento (Simone de Oliveira, Rita Pavone, Marisol), os "azes" do ciclismo (Peixoto Alves, Mário Silva, João Roque), or jornais da tarde, a televisão (ou ausencia dela), as bateiras e a pesca ao candeio, o pick-up e o twist, o MG, o acordeão, a esquizofrenia de uma aldeia no Inverno/vila no Verão, os rapazes de cabelos compridos, blue jeans e sapatos de tacão de madeira, os jogos de sociedade e de salão (na Colónia, no Facho, no Caravela).
O leitor de hoje será, espero, tolerante com o estilo um pouco pretencioso, aqui e ali de gosto pouco apurado, deste juvenil escriba, candidato a jornalista. Leitor ávido de Baptista Bastos e Mário Ventura que no Diário Popular desse ano de 1965 publicaram uma série de reportagens sobre a noite algarvia, julgou-se com fôlego para fazer da Gazeta um émulo daquele vespertino. Da sua tentativa esforçada, o que chegou até nós terá somente o mérito de poder suscitar outras memórias, porventura mais coloridas.
E se, num plano literário, o adolescente desajeitado não constitui exemplo, este texto parece ainda hoje despertar uma sâ nostalgia de um tempo em que na Gazeta das Caldas "impunemente" se afirmava: "Diabos, não há quem não seja poeta nas noites da Foz do Arelho".



Memórias

1. As tabernas do Carvalhal
Conhecia o restaurante, aliás uma singularidade nacional, mas não o seu proprietário. Um dia, porém, eis que uma sobrinha dele, então com 13 anos, me enviou um mail com um estranho pedido: uma descrição da casa rural portuguesa de 50 anos antes. A justificação percebia-a pouco depois: Visanee Stamtee, a jovem sobrinha de Humberto Silva, era tailandesa e a habitação comum que tinha na memória, conforme postal que me enviou, era bem diferente da nossa.
Pois bem, Humberto Silva abriu um restaurante em Lisboa, vendeu o que tinha nas Caldas. Mas agora, temporariamente retirado da actividade, regressou à sua terra natal, o Carvalhal. Há cerca de um mês, enviou-me um mail onde confessava que “confrontado com muito tempo livre”, decidira “registar algo do meu interesse pessoal e que ao mesmo tempo abordasse a história da minha terra”. O tema escolhido só podia ser o da restauração, mas não havendo memória de restaurantes “no Carvalhal, virei-me para as tabernas, e, para ser um pouco mais interessante, as da década de 50 do século passado”. Em seguida, contava que tinha procurado inspiração no meu livro Continuação. “Queria agradecer-lhe pela inspiração que me contagiou – dizia-me no seu mail. Escrevi de uma forma simples mas honesta sobre o Carvalhal daquela época”. E rematava: “Agora que acabei, envio-lhe uma cópia. Espero tenha oportunidade de ler, e que seja do seu agrado, ficarei ansioso por receber um comentário ou observação da sua parte”
Aqui vai então o meu comentário breve. As suas memorias das tabernas do Carvalhal lêem-se de um fôlego. São memórias ricas de história, povoadas de gente autêntica, de vida, recheadas de episódios e personagens da nossa vida rural de há meio século, hoje desaparecida. Obrigado por se dedicar a reconstituir e lembrar esse mundo. Foi nele que nasci, é nele que estão as raízes de muita gente hoje dispersa pelo mundo inteiro. Espero que o seu trabalho de escrita possa ser mais conhecido e divulgado.
2
Foz do Arelho, sessão de homenagem a Francisco de Almeida Grandela, no ano do centenário da escola primária que ele mandou construir e ofereceu à população do lugar e ao Estado. Presença do Presidente Mário Soares que aproveitou a ocasião para desfiar memórias da sua adolescência e juventude na Foz. Memórias que passaram pela evocação de Daisy Grandela e Luís Grandela, filhos de Francisco. Mas o episódio mais interessante reservou-o Mário Soares para a história do professor Moreira, professor primário que na escola Grandela, nos anos negros da 2ª Guerra ligava o seu rádio para ouvir a BBC, e ali recebia a visita do jovem Soares e mais dois ou três amigos que a ele se juntavam nesse acto clandestino e perigoso de ouvir notícias da frente democrática em guerra com o nazismo.
3
O meu tempo da Foz é distinto e dele já deixei memórias tanto em Continuação como na Cidade Imaginária. Desta vez foram memorias de outrem que vieram ao meu encontro. A Senhora D.ª Amália, neta da senhora que nos alugava a sua casita pintada de azul, já no fim da povoação, perto da colónia de férias do Colégio Moderno, procurou-me quando percorríamos o caminho entre a Junta de Freguesia e a Escola Grandela. Também aqui há meio século de permeio. Recordámos o burrito da avó da então Amália, as brincadeiras de criança, e interrogamo-nos silenciosamente sobre as outras memorias que não podemos partilhar. Os caminhos da emigração esperavam a menina que vinha passar a tarde comigo e com a minha irmã. Essa é outra história dos destinos do nosso mundo rural de há meio século. Coincidente, neste aspecto com os passos de Humberto Silva, também ele emigrante.