quinta-feira, 30 de junho de 2011

À janela de Harold Gilman

Harold Gilman, Interior, 1917

quarta-feira, 29 de junho de 2011

"Como é que o vagar..."

Como é que o vagar nos vai movendo
o ritmo da palavra? que se fica,
parada embora, a regular o tempo
desse vagar que lhe está a vir acima.
Será a passagem lenta do silêncio
para um outro silêncio que suscita
a palavra que nele assenta. Ao meio
da zona nula de mar algum. Mas ilha
batida por aquele movimento
que está parando no seu vir acima.

Fernando Echevarría, Obra Inacabada. Prefácio de Maria João Reynaud. Porto, Edições Afrontamento, 2006. p. 623.

terça-feira, 28 de junho de 2011

À janela de Henri Manguin

Henri Manguin, Model Resting, 1905

segunda-feira, 27 de junho de 2011

Encontro com Acácio de Sousa

ADLEI
Caldas da Rainha
Nídia
Pedro Biscaia
Organização
Companheiros
Família

domingo, 26 de junho de 2011

Declarações de pose

A extinção dos Governos Civis estão para Passos Coelho como a redução das férias judiciais para José Socrates. Medidas anunciadas com estrondo nos discursos de tomada de posse, mas sem estudo nem preparação prévios. Puro voluntarismo e confusão entre agenda mediática e agenda política.

sábado, 25 de junho de 2011

Acácio de Sousa: um homem de qualidades

Em primeiro lugar, há que agradecer ao Acácio de Sousa a circunstância de nos ter juntado aqui. Olhando em volta, percebo que não há certamente muitos motivos para reunir este conjunto diversificado de pessoas. De facto o que aqui nos traz é uma solidariedade comum, uma cumplicidade - a admiração, o respeito, a amizade – por uma pessoa concreta, tornada deste forma um de nós, o Acácio de Sousa. Chegámos aqui por caminhos distintos. Sei de alguns, posso imaginar outros. Companheirismos vários: de interesses, de convivência, de percurso intelectual ou cívico. Coincidências que nos revelaram perante esse ponto comum, esse ponto comum que foi uma força centrípeta num qualquer momento das nossas vidas. É uma “misteriosa aliança” diria Goethe, para concluir que estamos perante o resultado de um jogo de “afinidades electivas”. Mais do que uma escolha, produto de uma equação racional, o jogo das afinidades é, no entendimento de Goethe, conduzido por uma espécie de acaso, ou como diriam os românticos, um destino. De facto podemos-nos interrogar, agora, se fomos nós que escolhemos o Acácio de Sousa como traço de união das nossas vidas ou foi o Acácio quem nos escolheu como elementos agregadores da sua. A pergunta só faz sentido porque não se confinam às grandes categorias que definem as qualidades humanas os nós resistentes mas pouco espessos da rede que nos liga e nos liga ao Acácio. De que se fazem esses nós? De tudo o que ele nos tem dispensado e que não é facilmente nomeável. De um acto de apoio ou de estímulo, de um gesto cortês, de um sinal de presença comedida, de uma atenção espontânea, de um sorriso franco por vezes travesso, de uma saudável e permanente curiosidade, da manifestação do prazer limpo da partilha, em especial da partilha da informação e da descoberta, do puro gosto da convivência e da conversa sem limites, da subtil transformação das instituições em territórios de reflexão e de debate. Evidentemente que há mais nós, ou melhor, outras redes, além desta, que o Acácio integra, isto é, que o Dr. Acácio de Sousa integra, e onde avultam as suas competências e atributos intelectuais, a sua acção directora nas organizações por onde tem passado, o seu mérito académico e profissional, o seu contributo para o enriquecimento do espaço público.
Mas o que nesta pequena festa eu devo sublinhar é a dimensão frágil, quase invisível, improvável desta rede de “afinidades electivas”. Fragilidade que, no entanto, se sustenta na generosidade, invisibilidade que se sustenta na fiabilidade, improbabilidade que se sustenta em memórias que não queremos desbaratar. De tudo isto o Acácio faz parte, a tudo isto o Acácio tem destinado a sua vida, ou partes dela. O que procuramos nós na amizade? Ou na generosidade, fiabilidade e memórias inteiras de que se faz a amizade? Forças, razões, armas contra a exiguidade das criações individuais e contra o desamparo que espreita sobre o ombro das nossas vidas. É bom ser amigo de alguém, é bom contar com a amizade de alguém. É bom ser amigo do Acácio e é bom contar com a amizade do Acácio. A amizade é um porto de abrigo. A amizade é o sucedâneo da terra natal. A amizade é aquele jardim onde, nas palavras de Eugénio de Andrade, nos podemos sentar num banco, abrir um livro de Virgínia Wolf e começarmos a ler ,sem darmos conta do tempo: “A vida em si, cada momento da vida, cada gota sua, aqui, neste instante, agora, ao sol, era suficiente. Demasiado até”. Isto é o que tenho para dizer neste momento sobre o Acácio. Espero não vos ter desiludido com a ausência de referencias ao seu curriculum, aos aspectos notáveis da sua actividade. De facto, provavelmente, o mais importante virá a seguir e nenhum de nós desistiu de ser surpreendido pelo Acácio de Sousa. Não estamos aqui pois para sublinhar aspectos de uma carreira a que, em circunstâncias administrativas e legais precisas se pôs termo. Foi outro o lado de uma trajectória humana que nos convocou. Aquelas circunstâncias e o que determinaram para o Dr. Acácio de Sousa não passaram de mero pretexto. Imagino que a decisão do Acácio corresponda a uma manifestação do desejo de partida. Desde a adolescência – talvez até desde a infância - que os homens são regularmente atraídos pelo que está para lá da sua linha de horizonte. O mar, as terras que estão para lá do mar, a apelo de outras dias e outras noites do mundo. Ao desejo de partida do Acácio, uma expressão do ciclo da vida, eu quis aqui contrapor o princípio da amizade de que ele é, para todos nós, constituinte e constituído, e que, em certo sentido, significa o princípio da continuidade, do tempo imóvel, o espaço dos que ficam, cúmplices daqueles viajantes que partem, sabendo onde podem sempre regressar.

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Penélope (2): nem tudo se cumpre entre os homens

Ouve agora este sonho e interpreta-o para mim!
Cá em casa tenho vinte gansos que saem da água para comer trigo: com eles me alegro quando os vejo. Mas da montanha veio uma grande águia de bico recurvo, que se atirou aos pescoços dos gansos, matando-os a todos.
Eles jaziam aos montes no palácio, mas a águia voltou para o éter divino. Eu chorava, embora estivesse a sonhar. À minha volta se reuniam as mulheres de belos cabelos dos Aqueus, enquanto eu chorava convulsivamente, porque uma águia matara os meus gansos. Mas a águia regressou: e pousada no alto de uma viga fez parar o meu choro com voz de homem mortal:


'Anima-te, ó filha de Ícaro, cuja fama chegou longe!
Isto não é um sonho, mas uma visão verdadeira, que se cumprirá. Os gansos são os pretendentes, e eu, que antes fui a águia, agora regresso como marido, que fará que se abata sobre os pretendentes um terrível destino.'


Assim falou; e depois largou-me o sono doce como mel. Vi que os gansos continuavam no palácio, debicando o trigo do comedouro como sempre fizeram."


Respondendo-lhe  assim falou o astucioso Ulisses:
"Senhora, não é possível interpretar o sonho inflectindo-o de modo diverso daquilo que te disse o próprio Ulisses. Ele disse como tudo acabará. Para todos os pretendentes virá a destruição: nenhum deles escapará à morte e ao destino."


A ele deu resposta a sensata Penélope:
"Estrangeiro, sabes bem que os sonhos são impossíveis e confusos; nem sempre tudo se cumpre entre s homens. São dois os portões dos sonhos destituídos de vigor: um é feito de chifre; o outro de marfim.
Os sonhos que passam pelos portões de marfim talhado são nocivos e trazem palavras que nunca se cumprem. Mas os que saem cá para fora dos portões de chifre polido, esses trazem coisas verdadeiras, quando um mortal os vê.
Penso que no meu caso não foi de lá que veio o sonho horrível, embora bem vindo tivesse sido para o meu filho e para mim!

Homero, Odisseia. Canto XIX, 535-568. Tradução de Frederico Lourenço. Lisboa, Livros Cotovia, 2003, p. 322-323.

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Fatalidade?

Não raras vezes acontece que o vício constitucional de uma sociedade fica persistente, e se transforma em mal hereditário, transmitindo-se de geração em geração, com a crueldade que a natureza não poupa às organizações débeis, sempre o mesmo no fundo, apesar de diverso na aparência, proveniente desse estado mórbido primitivo. Depois, assim coo um indivíduo pode viver com lesões profundas, enfraquecidamente sim, mas vive – do mesmo modo que a sociedade de conformação defeituosa poderá ter também uma longa existência, se causas externas lhe não determinam o desaparecimento. Tal é a lição que nos subministra a história portuguesa. 
Sustado no meio do seu desenvolvimento, Portugal nunca pôde na administração pública compensar a despesa com a receita, nem economicamente estabelecer o equilíbrio entre a produção e o consumo, de forma a tornar-se um organismo, satisfazendo-se todas as exigências da vida social. Por isso, sucedem-se amiúde as catástrofes que a população expia em silêncio; por isso, os melhores tempos são sempre duma prosperidade aparente, porque dependem de condições fortuitas, fora da sua acção.

Alberto Sampaio, "Ontem e Hoje", Janeiro de 1892. In Obras. Guimarães, Sociedade Martins Sarmento, 2008.p. 299.

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Penélope (1): tende paciência

Porém Antínoo deu-lhe [a Telémaco] a seguinte resposta:
"Telémaco descarado, irreprimível na tua fúria, que vergonhas nos lançaste à cara! Será que nos queres censurar?
Pois fica sabendo que não são os pretendentes os culpados, mas a tua querida mãe, sobremaneira astuciosa!
Na verdade já vamos no terceiro ano - em breve virá o quarto - em que ela engana os corações dos Aqueus.
A todos dá esperança e a cada homem manda recados, mas o seu espírito está voltado para outras coisas.
Também este engano congeminou em seu coração: colocando um grande tear nos seus aposentos - amplo mas de teia fina - foi isto que nos veio declarar:


'Jovens pretendentes! Visto que morreu o divino Ulisses, tende paciência (embora me cobiçais como esposa) até terminar esta veste - pois não quereria ter fiado a lã em vão -, uma mortalha para o herói Laertes, para quando o atinja o destino deletério da morte irreversível, para que entre o povo nenhuma mulher me lance a censura de que jaz sem mortalha quem tantos haveres granjeou.'


Assim falou e os nossos corações orgulhosos consentiram. Daí por diante trabalhava de dia ao grande tear, mas desfazia a trama de noite à luz das tochas.
Deste modo, durante três anos enganou os Aqueus. Mas quando sobreveio o quarto ano, volvidas as estações, uma das mulheres, que estava por dentro, contou-nos o sucedido, e encontrámo-la a desfazer a trama maravilhosa.
De maneira que a terminou, obrigada, contra sua vontade.

Homero, Odisseia. Canto II, 85-110. Tradução de Frederico Lourenço. Lisboa, Livros Cotovia, 2003, p. 40-41.

terça-feira, 21 de junho de 2011

Declaração de interesse

Exceptuando o facto acidental de contar entre os seus membros com um amigo, ao actual Governo nada me vincula no plano das opções políticas. Duvido que tenha êxito, porque o receituário neo-liberal não tem provado ser nem solução nem sequer princípio dela. Mas desejo vivamente que o tenha. Não há duvidas de que a incompetência ou a impotência governativas teriam neste momento consequências de uma gravidade sem paralelo em Portugal. Um governo de legislatura que consiga inverter o plano inclinado da crise é o meu voto neste momento.

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Em Santa Croce

Florença reservou a Carlota um espaço tumular de primeiro plano em Santa Croce. Foi lá que, inesperadamente, a fui encontrar na passada semana. Ei-la de novo, neste blogue.
Graças a Camilo!

domingo, 19 de junho de 2011

O Céu

Dante panteonizado na Igreja francisca de Santa Croce, em Florença.
No quadro, em que o autor é representado com a sua Divina Comédia, pode ver-se: à nossa esquerda o Inferno, por detrás o Purgatório e à nossa direita (ou seja à esquerda do poeta) o Céu.
Curiosamente a representação do Céu é a própria cidade de Florença.

sábado, 18 de junho de 2011

Donatello (1386-1466)








Donatello, Maria Madalena, 1455



sexta-feira, 17 de junho de 2011

Marie-Laure

Conheci Marie-Laure no Eliseu. Viu-me olhar com insistência a baixela do jantar oficial e incitou-me a virar o prato para reconhecer a marca da porcelana. Era Sèvres, evidentemente, e daí partimos para uma breve conversação sobre porcelanas. Verifiquei que o seu interesse pelos temas que implicavam Portugal era genuíno e não apenas circunstancial ou mundano. Inquiri do motivo pelo qual se interessava e aparentemente conhecia alguma coisa do nosso País. Nessa altura já tínhamos evoluído das cerâmicas para a literatura e eu percebera que vários poetas portugueses lhe eram familiares. É certo que o marido, a par da carreira diplomática e politica, era autor de livros de poesia, mas isso não explicava tudo. Confidenciou-me que Villepin estivera em posto na Índia, alguns anos atrás. Estabelecera então o casal relações de especial amizade com o embaixador de Portugal em Nova Deli, o escritor Álvaro Guerra. A este convívio se devia pois o conhecimento aprofundado da cultura portuguesa. Falámos um pouco sobre a Índia, onde Maria-Laure criara os filhos, num ambiente contrastado que a ensinara a repensar a fronteira entre o supérfluo e o indispensável. Depois a conversa centrou-se nos vinhos. Quis saber tudo o que eu sabia sobre a história e as características dos vinhos portugueses e em especial do vinho do Porto. Mostrou-se preocupada com os efeitos da globalização sobre a produção dos vinhos e o papel dos críticos na consagração das tendências do gosto. Aconselhou-me com grande entusiasmo o documentário Mondovino, de Jonathan Nossiter acabado de editar (2004).
Leio no Paris Match, que decidiu seguir um caminho próprio, depois de anos de solidão, a solidão imposta pela vida politica do marido, Dominique de Villepin. Assina agora Viébel e as suas esculturas marítimas, douradas e sensuais percorreram as galerias de Estrasburgo e Veneza.

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Tempo das jotas

Chegou a vez dos quadros que se formaram nas jotas há um quarto de século. O significado desta situação tem sido amplificado por alguns comentadores que manifestam uma espécie de desconfiança intelectual perante a legitimidade de quem desta forma ascende à liderança dos partidos.
Não me parece que tenham razão. Uma carreira política é um modalidade corrente em sistemas pluripartidários de aquisição e exercício de competências para a actividade política. Por outro lado, não está demonstrado, em tese, que o prestígio ou notoriedade adquiridos fora da vida política sejam garantias mais sólidas de probidade, rigor ou eficiência no desempenho de cargos públicos. Não estou convencido de que os professores, os juristas e os economistas profissionais estejam mais preparados para as funções da República do que os políticos profissionais.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Memória curta

Dizia ontem um jornalista, em diálogo televisivo com o historiador Rui Ramos (que o não desmentiu), que nunca em Portugal um líder eleito na sequência de uma derrota eleitoral do seu Partido conseguira manter o lugar até às eleições seguintes.
Guterres foi eleito secretário geral do PS em 1991, após a 2ª maioria absoluta do PSD liderado por Cavaco Silva, e,  quatro anos depois, não só se mantinha no cargo, como vencia eleições gerais e era nomeado Primeiro-Ministro.

Clausura ou libertação?

Rabarama, In-Cinta, 2009/2011
Mármore de Carrara, 220x237,5x131 Florença, Palazzo Pitti

Energia e concentração

Rabarama, Co-stell-azione, 2002
Alumínio pintado, 200x370x455, Florença, Palazzo Pitti.

terça-feira, 14 de junho de 2011

Bibliografia de viagem

1. Guias e Catálogos

Chiara Migliorini Fantechi (2004)
Florence: Guide de la Ville
Ed. Giusti di Becicci Saverio, Firenze

Franca Falletti et al (2009)
Galerie de l’Académie: Guide Officiel
Ed. Giunti, Firenze

Gloria Fossi (2009)
The Uffizi Gallery. Art. History, Collections
Ed. Giunti, Firenze

Maria Sframeli, dir. (2003)
Le mythe de Vénus. Chefs d’Oeuvres des Musées de Florence
Ed. Silvana, Milano

Emma Micheletti (1982)
Santa Croce
Ed. Beccoci, Firenze

Fiamma Domestici (1992)
Della Robbia: a Family of Artists
Ed. Scala, Firenze

Guido Zucconi (2007)
Florence, an Architectural Guide
Ed. Arsenale, San Giovanni Lupatoto

Annamaria Bernacchioni (2010)
Ghirlandaio. Una famiglia di pittori del Rinascaimento tra Firenze e Scandicci
Ed. Polistampa, Castello dell'Acciaiolo dal Scandicci.

Roberto Lunardi et al (s/d)
Santa Maria Novella et ses Cloitres Monumentaux: Présentation Historique et Artistique
Ed. Giusti de S. Becocci, Firenze

2. Arquitectura, urbanismo

Leonardo Benévolo (2011)
La Fine della Città. Intervista a Cura di Francesco Erbani
Ed. Laterza, Roma

Bernardo Secchi (2008)
La Città del Ventesimo Secolo
Ed. Laterza, Roma

Vittorio Gregotti (2010)
Tre Forme di Architettura Mancata
Ed. Einaudi, Trento

3. Outros

Gert Jan van der Sman (2010)
Timeless Art and Fleeting Lives in Renaissance Florence
Ed. Mandragora, Firenze

Benvenuto Cellini (2009)
My Life 
Translation, Introduction and Notes by Júlia Conway Bandanella and Peter Bondanella
Ed. Oxford University Press, Oxford

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Cumpriu-se a tradição

O uso do poder de dissolução pelo Presidente dá ensejo a uma mudança de maioria governativa.

domingo, 12 de junho de 2011

Na morte de António Manuel

Lembrança e homenagem a um antigo companheiro de uma jornada de quase uma década de entusiasmo e dedicação à acção política.
Vou recordá-lo pela forma como os mais íntimos se lhe referiam - uma espécie de menino gigante - incansável e teimoso, e, por isso mesmo, previsível e confiável como poucos.

sábado, 11 de junho de 2011

Com Camilo, em Florença (7)

Fernando ficou pensativo a um canto do salão, meditando no appellido Briteiros. Sabia de cór os nomes dos signatarios do accordão que enforcou os academicos. Não lhe era extranho o feio aspecto d'aquelle homem. Devia ser elle: ouvira em Lisboa dizer que o mais façanhudo dos algozes vivia em Florença, com grande luxo, e segura posse de seus bens na patria. Odiou-o; não poude mais fital-o em rosto. Pensava em sair da sala, quando Jeronymo Bonaparte lhe disse: —Venha ver as suas lindas patricias, que desejam conhecer o portuguez... Mas tome tento em não argumentar com o pae. O senhor de Briteiros é contumaz inimigo do povo e da liberdade. Cá entre os meus hospedes francezes é conhecido por Luiz XI. O homem é um apologista das gaiolas de ferro para uso das avesinhas que cantam a liberdade. Detesta Lamartine, que escreveu contra a pena de morte, e defende que a arvore da liberdade deve ser cortada, torada, serrada e afeiçoada á maneira de forcas. Tem de bom que salga as suas theses com muita inepcia: gente emigrada não póde desprezar estes perrexis do riso, por isso o senhor de Briteiros é muito procurado. Agora vamos ver que duas flores saíram d'aquelle bravio matagal. Approximou-se o principe de Eugenia e Paulina. —Aqui está o seu patricio, minhas senhoras—disse elle, indicando a Fernando uma cadeira—conversem; espaireçam saudades da sua terra. Retirou-se o apresentante, deixando o filho de Francisco Lourenço penosamente enleiado. —Está ha muito em Florença?—perguntou Eugenia. —Ha dois mezes, minha senhora. —Lisboa é mais linda, não é? —Lisboa é a patria; mas Florença é a perola do mundo—disse Fernando.—Não vi na Grecia vestigios de lá ter havido uma Florença; e, com tudo, a Grecia era a colmeia dos mais doces favos do mundo antigo. Aqui me parece que vejo resurgidas as delicias da Roma imperial, os jardins de Lucullo, os marmores jorrando espadanas de crystal, as thermas de Antonio, os... Reteve-se Fernando. Reparou que o estavam escutando duas meninas, que, no ar do semblante, pareciam escutar idioma desconhecido. Que sabiam ellas de Lucullo e Antonio, as florinhas dos anjos, que da vida e mundo apenas conheciam o espaço perfumado de seus virginaes aromas? A ellas que se lhes dava de Florença, onde viviam tristes, com saudades do seu jardim de Lisboa, onde tinham cada uma seu canteiro, e em cada canteiro as plantas do seu amor? Seis annos havia que tinham deixado a patria, e ainda se diziam uma á outra: «Ainda veremos as nossas casinhas de murta? Já arrancariam as trepadeiras que se entrançavam em redor das janellas do nosso quarto?» O que ellas queriam era ouvir falar de Portugal, de Lisboa, do seu palacio, e talvez das suas flôres. Conheceria Fernando as flôres que ellas tinham? —Tem muitas saudades de Portugal?—disse Fernando. —Sempre...—respondeu Paulina. —E quem priva seu pae de voltar á patria? —Elle não quer!—disse Eugenia—Tanto lhe temos pedido! Responde nos sempre que só volta a Portugal com o sr. D. Miguel... Quando irá o sr. D. Miguel, sabe? —Não sei, minhas senhoras... Parece-me que o sr. D. Miguel não pensa em lá voltar... —Não?!—atalhou Paulina—E o papá a dizer que sim!... Então nunca lá tornaremos! —Tornam, tornam. A final o pae de vossas excellencias vae sem a companhia do sr. D. Miguel, e supponho até que elle póde viver tranquillo sem a protecção do principe. As pessoas, que serviram o partido do sr. D. Miguel, teem toda a segurança em Portugal; d'isto deve estar sobejamente informado o pae de vossa excellencia. —Diga-lh'o, sim?—tornou Eugenia. —Não me atrevo a aconselhal-o; porém, se o sr. Bartholo de Briteiros quizesse ouvir o meu parecer, dir-lhe-ia que o partido liberal só persegue os seus proprios amigos. As meninas não entenderam a doble intenção d'estas ultimas palavras. Fernando, em virtude do nenhum uso que tinha de trato com senhoras, compunha sempre as suas phrases em estylo sentencioso, como se as estivesse palestrando com philosophos ou politicos.

Camilo Castelo Branco, Agulha em Palheiro, 2ª edição, 1865.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Com Camilo, em Florença (6)

Estava Fernando Gomes em Florença, conforme o seu costume em toda a parte, sequestrado de toda a convivencia, visitando antiguidades, lendo outras, e como que mumificando-se a si proprio entre tantas velharias. Alguem disse a Fernando que o hospedeiro principe de Monfort mostrava aos seus visitadores a espada que Napoleão floreara na batalha de Marengo. Posto que o nosso portuguez presasse muito mais contemplar a lança de Leonidas ou o punhal de Bruto, não quiz perder o lanço de ver o sabre oriental do maior capitão do mundo, depois de Alexandre, e Cesar, dizia elle. O princepe recebeu-o no gabinete, onde estava escrevendo as suas Memorias: mostrou-lhe a espada, facultou-lhe o exame dos tropheus d'armas, recolhidos n'um armario envidraçado; e bem assim dera, congratulando-o pela conquista d'aquella cidade. Fernando, incitado a fallar pelo tom familiar do erudito principe, deu de seu saber muito boa conta sobre pontos de historia antiga, romana e grega, monumentos, batalhas, sciencias, e tudo quanto mereceria ser archivado em volumes grossos de soporiferas academias. O ex-rei de Westphalia deleitou-se em ouvi-lo, não sabendo ainda se era expatriado da Vandêa o cavalheiro que tão correctamente fallava lingua franceza. Fallou de si Fernando em breves termos, dizendo-se portuguez, soldado da liberdade, o infimo dos seus fautores em Portugal. Accrescentou logo que deixara a liberdade do seu paiz, e saíra a procura-la n'outros pontos do mundo, a fim de compara-la com a que deixara na sua terra, rachitica, derrengada e aleijadinha. Gostou o principe da grave sombra com que o douto moço mofava da liberdade dos portuguezes, (gente malquista sempre dos Bonapartes) e prolongou a palestra até horas de jantar. Fernando despediu-se já fatigado da convivencia: o filho do artista dava pouco pela gloria de conversar fito a fito com um ex-monarcha, irmão do heroe de Austerlitz, das Pyramides e de Friedland. Dias decorridos, Fernando foi convidado, em nome do principe de Monfort, a passar a noite no palacio Orlandini. Cogitou o moço no mais urbano modo de esquivar-se ás pesadas honras de tão luzida sociedade. A educação acanhara-o; e os dissabores, suggeridos por causa de seu nascimento, eram-lhe um constante espinho a impellirem-no para longe de ajuntamentos. Assustava-o de mais o receio de encontrar portuguezes nos salões do principe, e ter de responder-lhe ás naturaes perguntas entre conterraneos que se encontram em paiz estrangeiro. Precisamente quereriam saber o seu nome, o nome de seu pae, as suas relações na patria, as mil coisas que se presumem sabidas de homens que viajam e se relacionam com principes. Todos estes barrancos lhe empeciam o caminho do palacio Orlandini, e nenhum expediente lhe suggeriram com que delicadamente recusasse o convite. Sacrificou-se ao dever de quem tinha sido tão affavelmente tratado por personagem assim venerada nos prestigios da magestade, a magestade dos heroismos, mais imponente que a do sceptro hereditario. Antes da sua entrada no palacio, chegara Bartholo de Briteiros com as bellas meninas. Em quanto as duas portuguezas levadas pelas damas se gosavam da frescura da noite nos jardins, que muitas vezes serviam de salões, Jeronymo Bonaparte conversou com Briteiros largamente ácerca do moço portuguez que muito o encantara com a sua vasta erudição, e perguntou ao hospede se conhecia Fernando Gomes. O fidalgo franziu a testa, e disse: —Não sei dizer a vossa alteza quem seja Fernando Gomes. Os Gomes em Portugal não sei quem sejam. Antigamente houveram os de bom toque; mas de D. João I para cá não acho menção d'elles nas chronicas. É appellido obscurecido, ou se perdeu. —Póde ser que o seu patricio achasse o Gomes perdido!...—disse o principe com ar de riso.—O que eu sei é que o portuguez Fernando Gomes sabe muito, e entretem com assumptos, aborrecidos quando a gente os lê nos livros, ou nos monumentos. Gostei muito d'elle, e estimarei que a minha estima agrade ao seu patricio. Pouco depois foi annunciado Fernando Gomes, e logo conduzido á sala em que já estavam as damas da primeira jerarchia toscana; e, entre tantas e tão perigrinas, as nossas angelicaes portuguezas, honrando mais a terra de Camões, que quantos diplomatas nos andam lá por fóra engrandecendo. Bartholo de Briteiros fitou os olhos no portuguez, e lá entre si disse: «Não conheço: isto é homem ordinario.» —Tem aqui um patricio—disse o principe a Fernando.—É emigrado, e pae das duas meninas, que o senhor além vê, que parecem madonas. Ditosas revoluções as que obrigam a sair do seu ninho as formosuras que Deus faz para que todo o mundo as veja! O senhor de Briteiros é um pae ditoso, que se revê nos seus dois cherubins, dignos de Florença mais que de Lisboa. Os modelos que Raphael e Ticiano adivinharam, justo é que vivam em Italia, que é o céo das artes e das maravilhas. Não conhecia o senhor de Briteiros? —Não, senhor—respondeu Fernando. —De onde é o cavalheiro?—perguntou Bartholo. —Sou de Lisboa. —Talvez que, se me disser o nome de seu pae, eu possa conhecer a sua familia. —Vossa excellencia não conhece de certo o nome de meu pae. Sou filho de um homem do povo. —De onde saem os reis do genio—ajuntou Jeronymo Bonaparte. Bartholo fez um gesto insignificativo com a cabeça, e disse, passados minutos: —Veio de Portugal ha muito tempo? —Ha vinte e tres mezes. —Como estão as cousas por lá? Quem governa a canalha? —Governa-se ella, presumo eu—disse Fernando. O principe sorriu e murmurou: —A resposta é um livro completo. A canalha governa-se a si em Portugal... —Em Roma no reinado dos Cezares e no Baixo Imperio, e em toda a parte onde as nacionalidades se dissolvem—accrescentou Fernando. —Diz muito bem!—acudiu Briteiros—Portugal está em dissolução. O senhor é necessariamente realista! —Não, senhor. Fui soldado nas linhas do Porto. Pugnei a favor da liberdade, synonimo de humanidade. Servi-me a mim, servindo as classes abatidas pelo privilegio. Se me enganei, a culpa não foi minha. —Mas enganou-se...—atalhou Bartholo com má cara—A canalha é que reina. —Mas com gravata, luva branca, espada, chapeu de plumas, e arminhos—ajuntou Fernando Gomes. —E isso é bom?—redarguiu o fidalgo. —É bom como lição, como experiencia... —E depois? quando se quizerem emendar, era uma vez Portugal... —Seremos hespanhoes, inglezes, ou turcos, mas com juizo—disse Fernando. —Ahi está o patriotismo dos malhados—exclamou Briteiros. —Basta de politica—interveio o principe de Monfort, a quem destoara a violencia da ultima phrase do ex-ministro da Alçada.


Camilo Castelo Branco, Agulha em Palheiro, 2ª edição, 1865.

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Com Camilo, em Florença (5)

A mim, comtudo, o que mais me espanta é a facilidade com que Fernando Gomes dizia aquellas coisas, mais ou menos convinhaveis ás pessoas com quem falava! Não o insandeceram duas mulheres que eram lindas a capricho de Deus! Poder estar assim um mortal, razoando em termos communs, diante de espiritos para quem se fez a linguagem mellica do madrigal, a poesia, como ella é no Oriente, e como os hebreus a saberiam lêr no cantico dos canticos! Pois não tinha elle olhos, á mingua de coração! Acaso o temperamento lymphatico póde tanto que as imagens objectivas se não espelhem na retina, e o coração não tome conta dos filtros que os olhos lhe côam como arames abrazeados de electricidade?! Eu sei cá!... Fernando, passado um quarto de hora, saiu do lado das filhas de Bartholo de Briteiros, e desceu ao gabinete do principe, onde sua alteza estava fumando e tratando assumptos litterarios com artistas, poetas, e eruditos de differentes paizes. O principe chamou-o á sua beira, e segredou-lhe: —Pois fugiu-lhes?! Não o entretiveram as patricias? Já sei o que foi: as pequenas não sabiam nada de Roma e Grecia... Mas lindas de véras, não? Qual lhe parece mais moldada pelos velhos typos da sua predilecta Grecia?—disse Jeronymo Bonaparte com jovialissimo rosto. —São formosas como portuguezas—respondeu Fernando Gomes—mas em Londres seriam mediocremente graciosas. Os typos gregos eram menos correctos; todavia a fórma antiga, como a estatuaria a perpetuou, exprime os estupendos lances das tragedias que não se adivinham nas physionomias aperfeiçoadas pela lima das gerações. As cabeças de marmore parece que ainda fremem cheias de vulcões. O busto das Aspazias, Corinnas, Faustinas e Cleopatras dardejam fogo d'aquelles pedaços de Carrara e Paros. A mulher viril da esplendida antiguidade, conforme a civilisação a veiu entronando atravez dos seculos, mais e mais se foi amollentando em feminilidades. Ganhava em prestigio o que perdia em realeza de forças. A mulher esculpturada em Roma e Grecia, ainda amante e amada, incutia pavor aos seus sacerdotes; a mulher dos nossos tempos é uma creança que se quer acariciada e bajulada como se as graças da infancia lhe aquilatasse o merecimento. —Parece-me porém—interrompeu o principe de Monfort—que as vantagens são a favor da mulher comtemporanea, da mulher mulher. Que entende o cavalheiro?... As suas patricias, a meu vêr, são perfeitas mulheres para se amarem sem inveja de gregas e romanas... —Certamente. —E saiba que teem sido pretendidas de grandes senhores da França, da Polonia, e da Italia. E o avarento pae não as cede ás mais remontadas stirpes nem aos mais abastados concorrentes. Fidalgo diz elle que o é dos mais antigos das Hespanhas; e, como o senhor Fernando sabe, o Creador ordenou, quando fez ou refez o globo, que a Hespanha ficasse sendo um estanque de fidalgos retemperados por sangue ostrogôdo, alano e suevo, sangue barbaro, que teve quatro mil annos a sua nobreza escondida nas florestas do norte... Advirto-o, meu amigo, d'esta avareza do senhor de Briteiros, que não vá succeder apaixonar-se o senhor por alguma das suas patricias!... Eu ficaria com eterno remorso de o ter apresentado, se o visse ámanhã a braços com um amor funesto!... Fernando Gomes sorriu-se das graciosidades do principe, e saiu, pouco depois, do baile. No restante d'aquella noite não viu Grecia nem Roma. Por sobre os vastos destroços, que compunham as necropolis da sua memoria, adejava um cherubim em nuvens de perfumes, era tudo primavera com seus devaneios; flôres e mocidade e verdura em tudo: de tudo tirava esperanças que lhe chamavam a alma ao futuro. O passado, então, pareceu-lhe melancholico: a poesia dos imperios pulverisados avultou-lhe como horrenda soledade; e o sol do dia seguinte encontrou-o ainda buscando no esplendor das suas visões o cherubim, que era, em todo o rigor da fidelidade, a imagem de Paulina Briteiros.

Camilo Castelo Branco, Agulha em Palheiro, 2ª edição, 1865.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

Com Camilo, em Florença (4)

A formosura das filhas contribuia não pouco para a consideração que o pae gosava. Eram duas gemmas inestimaveis que sobredouravam a hypothetica riqueza do fidalgo portuguez. A mais nova era Paulina; quem perguntava porém qual das duas fosse a mais velha? Cada uma estava n'aquelle desabotoar de florescencia, e irradiação de graças, que seriam delicias da vida humana, se cada mulher bella assim, ao tocar os dezesete annos, alli ficasse, inamovivel, indestructivel, perpetua imagem do anjo, dominadora do tempo, e assim de gala, para entrar com todo o viço de sua formosura, e esplendor de encantos, em corpo e alma, na gloria do seu Creador. A mãe d'estas duas meninas morrera aos vinte annos, quando, em Lisboa, reinava como primeira em belleza. Os dois seraphins, que deixara no berço, conforme iam crescendo, recebiam do céo os dons soberanos que sua mãe levara. Aos quatorze d'uma, e quinze annos d'outra, dizia-se que a mãe não fôra mais linda que ellas. O desembargador desvelara-se medianamente na educação litteraria das filhas. Era elle homem de poucas lettras, e muito dado aos ocios de uma certa ignorancia, que é o supremo bem d'este mundo pelas muitas e boas horas de lerda pachorra em que a alma se embala no regaço d'ella. Briteiros sabia de jurisprudencia o necessario para convencer-se do pouquissimo que necessitava saber um magistrado palaciano, bemquisto para as alçadas, e braço inflexivel para hastear patibulos. Chamado sempre para mordomar n'estes festins de cannibaes, o amigo do throno e do altar via em si um homem dos antigos tempos, e gloriava-se. A juizo d'elle, os homens dos tempos antigos, eram os romanos, que condemnavam á morte os filhos, se o bom regimen da patria o requeria. Não cuidem, porém, que o austero Bartholo de Briteiros frouxamente acariciava as filhas, ou as affastava de si como cousas incompativeis da gravidade do seu funccionalismo e meditações. O contrario, de todo em todo. Brincava com ellas; com uma em cada braço, em quanto meninas até aos nove annos, andava de sala em sala, e assim recebia as mais circumspectas visitas. A orçarem por senhoras, nem assim as desquitava da obrigação de brincarem com elle: escondia-se nas dobras dos reposteiros, e queria que o andassem procurando. Muitas vezes saía d'estes brinquedos para assignar ao lavrar o accordão de uma sentença de forca, muito firme de pulso, e convicto da sua fidelidade aos principios, á moralisação dos povos, á ordem publica, e á justiça, filha primogenita de Jesus Christo. N'aquelle dia em que o exercito libertador assomou em Almada, e o Telles Jordão foi espingardeado, Bartholo de Briteiros, ainda duvidoso do desesperado desenlace da causa que elle julgava vencida por parte de seu rei, enfardelou á pressa o mais valioso de sua casa, ensacou muito cabedal em moeda que tinha herdado de avós, prescreveu ordens aos seus mordomos e caseiros das provincias, e embarcou em navio inglez, ancorado no Tejo, com as duas meninas palidas de susto. Horas depois, saía barra fóra, quando já em Lisboa repicavam os sinos á fuga do duque do Cadaval, e ao approximar-se o duque da Terceira. A esse tempo estalavam apedrejadas todas as vidraças do palacio de Bartholo de Briteiros, ás Amoreiras, e a populaça, a brava e briosa gentalha, apossava-se, por direito de conquista, da mobilia do desembargador, e repartia, a soccos fraternaes, o espolio do miguelista.


Camilo Castelo Branco, Agulha em Palheiro, 2ª edição, 1865.

terça-feira, 7 de junho de 2011

Com Camilo, em Florença (3)

Escreve Méry a respeito de Florença: «Não me espanta que proscriptos e exilados, violentamente arrancados aos costumes de suas patrias, se lancem nos braços d'aquella Florença, que é mãe commum dos que padecem, e para todos se desentranha em palavras consoladoras...» E n'outro relanço das suas Noites de Italia: «Entende-se facilmente que homens e mulheres de alto porte, condemnados a exularem, pelo infortunio d'esta epocha tão atormentada, confluam a Florença de todos os pontos da Europa. O exilio aqui é menos penoso: não será paradoxo termos em conta de exilados todos os que vivem longe d'aquella cidade.» Bartholo de Briteiros, guiado pelo instincto, e não pelos viajantes—que o magistrado não lia viajantes—deu comsigo na formosa Toscana. Estanceavam por lá, em 1834, polacos proscriptos e muitos refugiados nobres da França, cujos exforços se mallograram na Vendéa. O palacio Orlandini, onde residia o principe de Monfort, irmão mais novo do imperador Napoleão, era o receptaculo de todos os proscriptos illustres, em nascimentos, artes e sciencias. Bartholo de Briteiros, tinha a illustração triplicada da fortuna. Era notorio que elle mobilara faustosamente um palacio campestre em Poggi Bonzi, e d'alli saia de passeio, em graciosa berlinda, com suas filhas, a Val d'Arno, á Poggia Imperiale, e a quantos pontos convergia a nobreza toscana. Isto lhe dera renome e accesso aos palacios Orlandini, Ricchardi, Strozzino.


Camilo Castelo Branco, Agulha em Palheiro, 2ª edição, 1865.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Com Camilo, em Florença (2)

Comecei a lêr desanimado; cobrei esperanças no segundo capitulo; ao terceiro obrigar-me-ia, sendo preciso, por escriptura, a escrever dois volumes; ao quarto fechei o manuscripto, e coordenei os apontamentos pelo theor seguinte: Demorava em Florença uma familia portugueza, expatriada por affecta á realeza absoluta. Compunha-se esta familia de pae e duas filhas. O emigrado era um ex-desembargador do paço, ministro da Alçada, que assignara o accordão de pena ultima comminada aos academicos de Coimbra que, em 18 de março de 1828, mataram, no Cartaxinho, os lentes Matheus de Sousa Coutinho, Jeronymo Joaquim de Figueiredo, e feriram outros que, no dizer do accordão, iam beijar a mão ao serenissimo senhor infante regente pela sua feliz chegada a estes reinos. Bartholo de Briteiros se chamava o realista. Uma das meninas era Eugenia, e a outra Paulina. Em quanto á linhagem, estude quem quizer a origem dos Briteiros, que ha de encontra-la desde logo que as aguas do diluvio universal se recolheram ao centro do globo, e consentiram que os casaes contidos na arca procreassem os Briteiros e outras familias do mesmo tamanho genealogico. No que toca a riqueza, dizia-se que Bartholo possuia, em cada provincia de Portugal, duas, e tres e mais quintas: o que eu não averiguei por me parecer desnecessario. O emigrado vivia regaladamente na Praça do Dome, o mais vistoso local de Florença, servido de muitos creados, em palacio exornado de primosas alfaias e baixella. O vassallo de D. Miguel de Bragança pompeava faustos de rei, em quanto seu senhor, o tão chorado principe dos seus amigos, mendigava em Roma. Este contraste offerece um lado de muita philosophia, que eu me dispenso de explanar por ter muito amor a quem me lê, e me não lerá, se eu me entro a enredar em camisa de onze varas... (Cá em Portugal já se não diz varas: é metros: camisa de quinze metros e vinte e cinco centimetros, corresponde a isso; por causa da metromania não se ha de perder o anexim que é expressivo).


Camilo Castelo Branco, Agulha em Palheiro, 2ª edição, 1865.

domingo, 5 de junho de 2011

Com Camilo, em Florença (1)

Estava em Florença: restavam-lhe dois mezes dos dois annos concedidos. Releu Virgilio e Dante, Petrarcha e Tasso, os seus amigos de Italia, os seus guias e commensaes, as pallidas sombras que o seguiam até ás regiões convisinhas do sepulcro, ás tenebrosidades mysteriosas do sonho. E hei de eu acreditar (diz a leitora que sabe o que vale) hei de eu acreditar que Fernando não encontrasse nos mais formosos pontos do globo as mais formosas creações do universo? Não viu elle uma ou cem mulheres... (cem senhoras, emendarei eu, se vossa excellencia permitte) ou cem senhoras que o tirassem pelos cabellos d'essa escuridade de alma em que o exquisito moço se engolfava com as pataratas dos Virgilios e Dantes, e outros que taes pesadelos de um espirito que almeja diffundir-se e embeber-se nas delicias da poesia, tres vezes santa, do bello ideal!? Respondo: tem vossa excellencia razão de estar assim pasmada do homem: eu tambem, com quanto já saiba a preceito o que é pão bolorento por dentro e cordas de viola por fóra, começava a espantar-me, justamente no ponto em que vossa excellencia fez favor de interromper-me. Não ha duvida nenhuma: a cousa é muito para assombros. Bravia é a arvore que aos vinte e seis annos não floresce nem fructifica! Anasada alma deve ser essa que se dispende toda em extasis de livros velhos e paredes velhas, e historias revelhas, que nem recontadas por Michelet ou Castilho se podem aturar. Com um homem assim o romance era impossivel. Quem houvesse de descreve-lo, iria na piugada d'elle por esse mundo fóra, onde ha plinthos e peristylos derrocados, e confundi-lo-ia com algum troço de columna corynthia ou jonica. Fernando seria empolgado pela caterva empedernida dos antiquarios, que dariam com elle n'este museu de Lisboa, onde não ha nada que o valha, a não ser o titulo do edificio, que é museu de si mesmo. Estava eu, pois, a despenhar-me com o meu estylo espalmado na voragem dos escrevedores malditos da paciencia humana, quando, n'estes apontamentos que me dirigem, encontro o capitulo intitulado: primeira e ultima paixão de fernando gomes. Primeira e ultima! exclamei. Não gosto d'isto! Com uma só paixão hei de eu encher duzentas paginas! Uma só paixão, n'estes nossos dias, em que vinte e quatro horas bastam para o prologo e o epilogo da tragedia, se é tragica a paixão!

Camilo Castelo Branco, Agulha em Palheiro, 2ª edição, 1865.

sábado, 4 de junho de 2011

À janela de Ticiano

Titian, Portrait of Doge Francesco Venier. ca 1554-56

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Ontem

Como aumentaram as famílias desde a última vez que nos encontrámos!

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Ganhar nas sondagens

O meu amigo J. P. Pereira costumava dizer que as eleições se ganhavam na televisão na noite eleitoral. A forma como os representantes dos partidos explorassem os resultados - virtuais ou reais - da noite eleitoral condicionavam as percepções públicas das vários patamares de êxito ou desaire efectivamente verificados.
Hoje assistiu-se a um espectáculo diferente: converter sondagens em previsões e confundir intenção de voto com voto. "Isto está ganho" - andou todo o dia a gritar o PSD.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Dia da criança

Brincando na manifestação. Sana, Yemen