domingo, 30 de setembro de 2012

À janela de Sid Grossman

Sid Grossman (1913–1955), Looking into Window of Garment Factory, New York. 1940

sábado, 29 de setembro de 2012

Mas há ternuras...

[...] Mas há ternuras que nenhuma morte impede:
as íntimas, indecifráveis notícias que nos dá a música,
a pátria que condescende em figueiras e cisternas,
a gravitação do amor que tanto nos justifica. [...]
Jorge Luis Borges, "A Francisco López Merino", Caderno San Martín, 1929.
Obra Poética, I, Trad. Fernando Pinto do Amaral. Lisboa, Quetzal, 2012.

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

À janela de Claudia Cardinale


Flauta (mágica)

Candidinha (Jeanne Moreau)
Tinha condão?

Chamiço (Luís Miguel Cintra)
Com a flauta. Era mais a mim! Mais a mim!

Gebo (Michael Lonsdale)
Com a flauta!

Chamiço
Sim homem, foi como conquistei a minha defunta (imitando a flauta). Piu...piu...piu. Só com a flauta. Não entendem? Eu chegava, sentava-me à beira dela, puxava do instrumento e desatava piu... piu... piu. Há lá nada que exprima o amor como a música! Era logo piu... piu. Ela ouvia-me fascinada.


Candidinha
Mas como trocavam expressões de amor?

Chamiço
Piu... piu... piu. E no fim, acabada a ária, levantava-me e dizia-lhe: - Boas noites, Serafina)
Candidinha
Nunca lhe disse mais nada?




Imagens O Gebo e a Sombra, de Manoel de Oliveira (2012)
Texto O Gebo e a Sombra, de Raúl Brandão (1923)


quinta-feira, 27 de setembro de 2012

À janela de Vicente Aleixandre

La Ventana
Cuánta tristeza en una hoja del otoño,
dudosa siempre en último extremo si presentarse como cuchillo.
Cuánta vacilación en el color de los ojos
antes de quedar frío como una gota amarilla.
Tu tristeza, minutos antes de morirte,
sólo comparable con la lentitud de una rosa cuando acaba,
esa sed con espinas que suplica a lo que no puede,
gesto de un cuello, dulce carne que tiembla.
Eras hermosa como la dificultad de respirar en un cuarto cerrado.
Transparente como la repugnancia a un sol ubérrimo,
tibia como ese suelo donde nadie ha pisado,
lenta como el cansancio que rinde al aire quieto.
Tu mano, bajo la cual se veían las cosas,
cristal finísimo que no acarició nunca otra mano,
flor o vidrio que, nunca deshojado,
era verde al reflejo de una luna de hierro.
Tu carne, en que la sangre detenida apenas consentía
una triste burbuja rompiendo entre los dientes,
como la débil palabra que casi ya es redonda
detenida en la lengua dulcemente de noche.
Tu sangre, en que ese limo donde no entra la luz
es como el beso falso de unos polvos o un talco,
un rostro en que destella tenuemente la muerte,
beso dulce que da una cera enfriada.
Oh tú, amoroso poniente que te despides como dos brazos largos
cuando por una ventana ahora abierta a ese frío
una fresca mariposa penetra,
alas, nombre o dolor, pena contra la vida
que se marcha volando con el último rayo.
Oh tú, calor, rubí o ardiente pluma,
pájaros encendidos que son nuncio de la noche,
plumaje con forma de corazón colorado
que en lo negro se extiende como dos alas grandes.
Barcos lejanos, silbo amoroso, velas que no suenan,
silencio como mano que acaricia lo quieto,
beso inmenso del mundo como una boca sola,
como dos bocas fijas que nunca se separan.
¡Oh verdad, oh morir una noche de otoño,
cuerpo largo que viaja hacia la luz del fondo,
agua dulce que sostienes un cuerpo concedido,
verde o frío palor que vistes un desnudo!

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

À janela de Eugénio de Andrade

A Rosa e o Mar

Eu gostaria ainda de falar,
da rosa brava e do mar.
A rosa é tão delicada,
o mar tão impetuoso,
que não sei como os juntar
e convidar para o chá
na casa breve do poema.
O melhor é não falar
Sorrir-lhes só da janela.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Claudia Cardinale no Vila Flor


Cocooning ao vivo

Guimarães já não é o que era

Estamos sentados numa esplanada na Praça de Santiago, no centro histórico, a navegar com Internet wireless. Enquanto apaziguamos a sede na espuma de um fino, imersos numa plêiade de línguas estrangeiras que se cruzam em grupos pela praça, o sol forte fustiga o casario de arquitectura única e chama-nos à realidade.
Património Cultural da Humanidade, a actual Capital Europeia da Cultura sofreu um lifting que se reconhece em cada canto desta cidade, apesar de se mais antiga que a própria nacionalidade. O "berço" tornou-se uma espécie e cocooning ao vivo, onde se está em cada canto como se fosse em casa. Já não há ruas frias e espaços despidos, restaurantes escuros e bares tristes. Novos espaços que reinventam a gastronomia local, novas lojas e bares, um espirito gregário que convida a fazer parte da festa, bate a compasso da cidade. Aliás um dos slogans da CEC 2012 é mesmo esse: "Tu fazes parte".  E Guimarães revelou ser mestre na mescla das novas tendências contemporâneas com o seu passado, reinventando-o sem o descurar.

Fátima Iken, Wine. Essência do Vinho. Setembro de 2012.

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Um resíduo de beleza que nunca mais se extingue

Ninguém aqui vem que não fique seduzido, e noutro País esta regão seria um lugar de vilegiatura privilegiado. É sítio para contemplativos e poetas: qualquer fio de água lhe chega e os encanta. É sítio para sonhadores e para os que gostam de se aventurar sobre quatro tábuas descobrindo motivos imprevistos. É- o para os que se apaixonam pelo mar profundo, e para os medrosos que só se arriscam num palmo de água - porque a ria é lago e mar ao mesmo tempo. Com meios muito simples, um saleiro e uma barraca, tem-se uma casa para todo o Verão. Pesca-se. Sonha-se. Toma-se banho. E esquece-se a vida prática e mesquinha. Dorme-se ao largo, deitando-se a fateixa ou abica-se ao areal: um fogaréu, uma vara, a caldeirada... Começam a luzir no céu e na ria ao mesmo tempo miriades de estrelas. Vida livre dalguns dias, de que fica um resíduo de beleza que nunca mais se extingue. É a ria também sítio para os que amam a luz acima de todas as coisas.

Guia de Portugal, vol. 3. Beira. Beira Litoral. 3ª edição. Lisboa, F. C. Gulbenkian, 1993 (1ª ed. 1940). p. 505.




domingo, 23 de setembro de 2012

Caminhada solidária

Apesar da chuva, cerca de 5 mil pessoas puseram-se a caminho entre o Castelo e a pista de Creixomil.



sexta-feira, 21 de setembro de 2012

À janela de Clarence John Laughlin

Clarence John Laughlin (1905–1985), The Suspended Windows, 1960

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Se pudermos

Joubert: O fim da vida é amargo. Menos de um ano depois de escrever estas palavras, aos sessenta e um anos, o que em 1895 devia parecer uma idade muito mais avançada do que hoje, Joubert cunhou uma formulação muito mais enigmática sobe o fim da vida: Devemos morrer amáveis (se pudermos). Esta frase comove-te, em especial as palavras entre parêntesis, que, no teu entender, demonstram uma rara sensibilidade de espirito, uma dolorosa compreensão de como é difícil ser-se amável, particularmente para quem é velho, quem se afunda na decrepitude e depende dos cuidados de outras pessoas. Se pudermos. Não há provavelmente maior proeza do ser humano do que inspirar amor até ao fim, seja esse fim amargo ou não.

Paul Auster, Diário de Inverno. Memórias. Lisboa, ASA, 2012. p. 168.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

À janela de Adriaen van Ostade

Adriaen van Ostade  (Haarlem 1610–Haarlem 1685), Singers at the Window.

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Pôres do sol pesso(ais)anos (II)


4.
Ontem o pôr do sol não foi apenas um pôr do sol. Ricardo Reis veria em cada uma das cores o rasto das dores cantadas por um deus longínquo. Esperámos que o silencio se cobrisse de espuma. A linha dos teus lábios abriu-se num sorriso.

5.
Ontem o pôr do sol não foi apenas um pôr do sol. Para Fernando Pessoa podia ser um delírio fúnebre ou um desejo vão. Mas o teu olhar conhecia o caminho do mar e trocou a memória  pela esperança.

6.
Escolhemos o lugar mais perto da água como se precisássemos de ampliar o espaço ente nós e o resto.
Era também o mais exposto ao sol, como se velando o olhar corrêssemos menos riscos de franquear as fronteiras um do outro.
O pôr do sol não foi apenas um pôr do sol. Desenhou as ilhas que faltavam e trouxe repouso às tuas mãos.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

À janela de Catherine Deneuve

Roman Polanski, Repulsion, 1965

domingo, 16 de setembro de 2012

À janela de Orson Welles

Citizen Kane, Orson Welles, Joseph Cotten. 1941

sábado, 15 de setembro de 2012

A cidade dos deuses

Como na Grécia classica, os homens projectaram aqui, na Penha de Guimarães, a cidade ideal. A acrópole, antes de ser a cidade dos deuses, foi a cidade da filosofia, onde Platão e Aristóteles discutiram a forma de governo, os limites e físicos e demográficos e as normas da utopia urbana.
A Penha foi uma invenção de finais do século XIX e XX. Parece ter começado por ser uma cidade onde as classes populares encontram a tranquilidade, a sociabilidade e o reconhecimento entre iguais que a cidade burguesa e industrial lhe não reconhecia. Depois, pouco a pouco, a matriz religiosa ocupou o território e procurou dotá-lo de marcas perenes do divino. Hoje, são duas culturas que se cruzam ali, por vezes conflituantes, mas sem se anularem. Aquele é agora lugar de peregrinação e de lazer, santuário e marca lítica ancestral, local de celebração litúrgica e celebração da convivência entre gerações, entre estratos sociais e entre quem ficou, quem partiu e quem regressa uma vez por ano.
No Domingo passado, dia da peregrinação anual em honra de N.ª Senhora do Carmo, da Penha, o senhor Arcebispo Primaz de Braga apelou ao silêncio, como resposta da Igreja ao repto da sociedade. O silêncio sim, mas instrumental, diria eu, porque o silencio é uma condição para melhor escutar. Na cidade do homens luta-se, cria-se, reivindica-se, ama-se, há conflito, construção, dor, sofrimento e alegria. Lá em cima, na cidade dos deuses, é preciso ouvir para melhor decidir, perceber para melhor reformar. Uma vez por ano, na cidade dos deuses abençoa-se a cidade do homens. E no resto do tempo? É preciso descer. É preciso mergulhar na cidade dos homens. Fazer parte dela.






sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Pôres do sol pesso(ais)anos (I)


1
Ontem o pôr do sol não foi apenas um pôr do sol. Porque, como diria Álvaro de Campos, toda a realidade foi sentida excessivamente. E a consciência desse excesso tomou conta de nós e do horizonte, dos teus dedos e dos meus segredos.

2.
Ontem o pôr do sol não foi apenas um pôr do sol. Porque, como diria Bernardo Soares, o que imaginamos tem mais volume e verdade que as coisas reais. Enquanto o disco vermelho se enterrava no mar, as tuas mãos ganhavam o ímpeto da viagem e os teu olhos um rumo e uma cor mais definidos.

3.
Alberto Caeiro diria que não há modo de saber o que seria um pôr do sol se não fosse apenas um pôr do sol. Deixemos então que o plano anule o mistério das sombras. Já não escutamos a musica longínqua. Ainda assim, o teu sorriso abre-se pela primeira vez enquanto as ultimas pétalas de luz deslizam pelo teu rosto.

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Crónicas micaelenses - 5 (última)


A última desta serie de crónicas micaelenses regista a impressão geral de um visitante empenhado e exala a nostalgia própria de quem em breve retomará  as circunstancias da função habitual, após quatro dias de excepção.
Neste dia - Domingo, 26 de Agosto - a meteorologia anunciou bem cedo que recuperara o seu estado "normal" sanmicaelense : neblinas cerradas na zona montanhosa, aguaceiros com algumas abertas na zona litoral.
A instabilidade do tempo afecta certamente o turismo da ilha e da região. A crédito da gestão de Carlos César, que decidiu pôr termo ao seu compromisso de governo, não se apresentando a sufrágio em Outubro próximo, ficará sem dúvida o incremento do turismo açoriano. As diversas ilhas viram melhoradas as suas estruturas aeroportuárias e hoteleiras. No caso de ponta Delgada, além das novas unidades hoteleiras, espalhadas por toda a ilha, o Governo procedeu a uma reformulação da frente marítima que foi preparada para receber navios de cruzeiros.
Pergunto ao meu amigo C. R. se não terá havido alguma precipitação no investimento em grande unidades de 4 e 5 estrelas, num modelo que parece mais próximo do da Madeira, que todavia beneficia duma estabilidade meteorológica singular.
C. R.  acha que o segmento de turismo que parece mais sólido nos Açores é o turismo ambiental, nas suas diversas especialidades, desde a observação de cetáceos até à vulcanologia. O modelo adoptado no Pico parece-lhe o mais adequado e porventura o que poderia ser replicado noutras ilhas, convocando saberes não apenas da área da economia e da gestão mas também das ciências da natureza e da história e conjugando sabiamente turismo, património e cultura.
A cidade de Ponta Delgada não escondeu os sinais das cidades próprios da crise do modelo de desenvolvimento comandado pela finança dos produtos financeiros. Notei o recuo da euforia e confiança exibido há três e quatro anos. A ausência de um programa cultural urbano de qualidade que enobreça e atraia habitantes e visitantes ao espaço publico também contribui para essa impressão de recuo. A gestão tradicional das cidades, e Ponta Delgada é disso exemplo, não percebe que é exactamente em contraciclo que o investimento cultural mais se justifica e reproduz.
A única casa onde ha muito se vendia artesanato certificado fechou. Invariavelmente as lojas de recordações para turistas exibem produtos sem originalidade nem qualidade. O design urbano parece ter desertado de Ponta Delgada, e com ele os indicadores de modernização do ambiente urbano. Com a excepção da loja do mercado, referenciada na crónica anterior, os queijos, bolos, compotas, bordados e rendas que se encontram à venda em lojas urbanas são de pouco qualidade.
Gostaria de destacar, no entanto, o esforço de promoção que a fabrica Vieira está a fazer da sua louça de faiança azul e branca. Em pacotes de açúcar,  surgem diversos motivos etnográficos em desenhos idênticos aos de uma colecção de pratos de suspensão. Vi uns e outros em diversos cafés e restaurantes, mas não vi a uso os serviços fabricados na empresa.
Criada em Lagoa em 1862, a história da cerâmica Vieira é uma história notável de 150 anos de adaptação da faiança às disponibilidades de matérias primas e de mão-de-obra e às condições tecnológicas definidas para aquela produção. Além das invulgares qualidades de persistência e inovação de que os seus proprietários e mestres deram provas, a cerâmica decorada com motivos regionais saída da fabrica de Lagoa popularizou o uso doméstico da faiança e o reconhecimento de paisagens, monumentos e figuras sanmicaelenses.
Reservei a tarde deste Domingo para visitar o Museu Carlos Machado, há muito fechado. Encontra-se agora parcialmente aberto, com dois núcleos, o de Santa Bárbara, com uma bela exposição temporária de Luísa Jacinto, comissariada por João Miguel Fernandes Jorge, e o de  arte sacra, na Igreja do Colégio dos Jesuítas. As duas exposições tem dignidade mas há que confessar que o facto de a maior parte da colecção continuar fora da vistas do público é ponto negro da política de património cultural dos governos de Carlos César.
Na improvisada loja do museu, chamou-me a atenção uma  fotobiografia de Natália Correia, pretexto bastante para uma visita de reconhecimento a Fajã de Baixo. O rasto de Natália na Fajã é decepcionante. A casa onde ela nasceu, hoje sede de uma organização social não tem visivelmente assinalado esse facto.

Nasce-se em setúbal
nasce-se em pequim 
eu sou do açores 
(relativamente 
naquilo que tenho 
de basalto e flores)
mas não é assim:
a gente só nasce 
quando somos nós 
que temos as dores.

16h30, altura de procurar resposta a um período prolongado de carência alimentar. Rumei à zona, para mim desconhecida, da ponta norte da cidade, designada no mapa por S. Roque. Desemboquei na praia de Rosto de Cão, um areal negro com alguma extensão, a meio do qual se situa a cervejaria Mariserra. O nome pareceu-me de muito bom augúrio. E não me enganei, desta vez. O proprietário deixou-me assentar arraiais na esplanada (deserta): eu e o meu inseparável Ipad, um fino, tremoços, um pequeno queijo amanteigado do Pico, pão e uma frigideira de lapas com limão.

Os primeiros vestígios da chuva surgiram pelas 18 horas. Lentamente a esplanada começou a receber novos visitantes. Natália foi a primeira.

Pusemos tanto azul nessa distância 
ancorada em incerta claridade 
e ficamos nas paredes do vento 
a escorrer para tudo o que ele invade. 

Pusemos tantas flores nas horas breves 
que secam folhas nas árvores dos dedos. 
E ficámos cingidos nas estátuas 
a morder-nos na carne dum segredo. 

Aumentámos a vida com palavras 
água a correr num fundo tão vazio. 
As vidas são histórias aumentadas. 
Há que ser rio. 

Logo a seguir, apareceu Nemésio.

Pedregulho na noite é o meu sonhar
(Alma cega tropeça no que inventa):
Quem fizesse verdade como o mar
Faz baías e as conchas que sustenta!

Ser o que é? Sabor a morte no ar.
Uma árvore de sangue é folha ou osso?
Estes jogos de fumo é o mais que posso
Na vida que me é dada ao interrogar.

Seremos noutro plano as sombras deste,
Como o Oriente é a réplica do Oeste
E a gota de água o alem do não chover.

Prende amor os desvios do contrário:
No estar aqui bem pode haver fadário,
E então no alem já não, já pode ser.

Antero não se fez esperar.

Junto do mar, que erguia gravemente
A trágica voz rouca, enquanto o vento
Passava como o voo dum pensamento
Que busca e hesita, inquieto e intermitente.

Junto ao mar sentei-me tristemente,
Olhando o céu pesado e nevoento,
E interroguei, cismando, esse lamento
Que saía da coisas, vagamente...

Que inquieto desejo vos tortura,
Seres elementares, força obscura?
Em volta de que ideia gravitais?

Mas na imensa extensão, onde se esconde
O inconsciente imortal, só me responde
Um bramido, um queixume, e nada mais...

Logo a seguir chegou Armando Cortes-Rodrigues

Sempre defronte
de mim
o mar azul, o mar imenso, o mar sem fim,
todo igual e azul até ao horizonte.

Neste dia delirante
de luz crua a jorrar, intensa, lá do alto,
uma vela distante
mancha de branco o seu azul-cobalto.

Um traço de espuma branca
junto à penedia
marca a linha da costa em enseada franca.

E a nota branca
das gaivotas em bando,
esvoaçando
à revelia,
e um ritmo novo de alegria,
de ruído e de graça.

Perto uma vela passa,
lenço branco a acenar...

Não ter asas também para poder voar
aonde me levasse a minha fantasia!
E ser gaivota e mergulhar
na água e bater asas,
alegre, todo o dia!

Poisar nos calhaus negros, que são brasas,
brasas negras a arder,
e ver aos pés a referver
aos borbotões de espuma.

Dar um grito e subir,
subir alto e distante,
já quando a terra se esfuma
e o mar aumenta, quanto mais avante.

Partir!

Partir para o delírio das alturas,
só, entre o céu e o mar,
longe do mundo e mais das criaturas.

Ah! Não ter asas e poder voar
de alma desvairada,
entontecer-me de espaço...

– Nota branca riscada
entre o azul do céu e o azul do mar.

Depois voltar
para ver
o sol morrer
num clarão de fogueira,
incendiando o céu, metalizando o mar...

E ver a noite abrir
o regaço
para deixar cair
uma a uma as estrelas.

Adormecer a vê-las...

Depois sonhar,
num delírio de cor, a noite inteira.

A chuva aumentou de intensidade. Na praia, a rapariga das calças vermelhas pôs-se de pé, e ligou o telemóvel.

João Miguel Fernandes Jorge entrou também na esplanada.

Que guarde o mar o silêncio acerca dos filhos do meu nome à
frialdade das vagas convertidos
e que me deixe na ilha a limitar o tempo longo
a sonhar fracassos sombrias vidas e obscuridades.

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Piaf



Les amants de demain,
Le cœur ensoleillé,
Les yeux émerveillés,
Iront main dans la main.
Les amants de demain,
Les bras chargés d'amour,
S'aimeront à leur tour
Dès demain...

Les amants de demain
S'aimeront d'un cœur pur,
Bénissant leurs blessures,
Éperdus de s'aimer.
Ils iront vers le feu
Qui dévore les yeux
Et réchauffe leurs mains,
Les amants de demain...

Ils se rencontreront
Autour d'une chanson
Qui les aura vus naître.
Ils seront les plus beaux
Et, sans dire un seul mot,
Sauront se reconnaître...

Les amants de demain,
Le cœur ensoleillé,
Les yeux émerveillés,
Iront main dans la main.
Les amants de demain,
Enfermés dans un cœur,
Bâtiront leur bonheur
Dès demain...

Les amants de demain
S'aimeront sans raison,
Déchirés d'être heureux,
Enchaînés deux par deux.
Ils iront vers le ciel
En cortège éternel
Par le même chemin,
Les amants de demain...

Ulisses e a perfeição (IV)

4.  A delícia das coisas imperfeitas
(…) “No entanto, já pela colina as ninfas, servas da deusa, desciam, trazendo à cabeça e amparando com o braço redondo, os jarros de vinho, os sacos de couro, que a intendenta venerável mandara para abastecer a jangada. Silenciosamente, o herói lançou uma tábua desde a areia até ao bordo dos altos toros. E, enquanto sobre ela as ninfas passavam, ligeiras, com as manilhas de ouro tilintando nos pés luzidios, Ulisses, atento, contando os sacos e os odres, gozava no seu nobre coração a abundância generosa. Mas, amarrados com cordas às cavilhas aqueles fardos excelentes, todas as ninfas, lentamente, se sentaram sobre o areal em torno da deusa, para contemplarem a despedida, o embarque, as manobras do herói sobre o dorso das águas… Então uma cólera lampejou nos largos olhos de Ulisses. E, diante de Calipso, cruzando furiosamente os valentes braços:
- Ó deusa, pensas na verdade que nada falta para que eu largue a vela e navegue? Onde estão os ricos presentes que me deves? Oito anos, oito duros anos, fui o hóspede magnífico da tua ilha, da tua gruta, do teu leito… Sempre os deuses imortais determinaram que aos hóspedes, no momento amigo da partida, se ofertem consideráveis presentes! Onde estão elas, ó deusa, essas riquezas abundantes que me deves por costume da Terra e lei do Céu?
(…) – Ó Ulisses, tu és claramente o mais interesseiro dos homens! E também o mais desconfiado, pois que supões que uma deusa negaria os presentes devidos àquele que amou… Sossega, ó subtil herói…Os ricos presentes não tardam, largos e brilhantes.
E, certamente, pela colina suave, outras ninfas desciam, ligeiras, com os véus a ondular, trazendo nos braços alfaias lustrosas, que ao sol rutilavam! O magnânimo Ulisses estendeu as mãos, os olhos devoradores… E enquanto elas passavam sobre a tábua rangente, o herói astuto contava, avaliava no seu nobre espírito os escabelos de marfim, os rolos de telas bordadas, os cântaros de bronze lavrados, os escudos cravejados de pedras… Tão rico e belo era o vaso de ouro que a derradeira ninfa sustentava no ombro, que Ulisses deteve a ninfa, arrebatou o vaso, sopesou, mirou, e gritou, com soberbo riso estridente: 
- Na verdade, este ouro é bom!
Depois (…), cortou a corda que prendia a jangada ao tronco de um roble e saltou para o alto bordo que a espuma envolvia. Mas então recordou que nem beijara a generosa e ilustre Calipso! Rápido, arremessando o manto, pulou através da espuma, correu pela areia e pousou um beijo sereno na fronte aureolada da deusa. Ela segurou de leve o seu ombro robusto:
- Quantos males te esperam, ó desgraçado! Antes ficasses, para toda a imortalidade, na minha ilha perfeita, entre os meus braços perfeitos…
Ulisses recuou, com um brado magnífico:
- Ó deusa, o irreparável e supremo mal está na tua perfeição!
E, através da vaga, fugiu, trepou sofregamente à jangada, soltou a vela, fendeu o mar, partiu para os trabalhos, para as tormentas, para as misérias – para a delícia das coisas imperfeitas!”

Eça de Queirós, "A Perfeição". Contos. Lisboa. Bertrand, 2008.

terça-feira, 11 de setembro de 2012

Ulisses e a perfeição (III)

3. Saudade do que é humano
(…) – Ó deusa venerável, não te escandalizes! Perfeitamente sei que Penélope te está muito inferior em formosura, sapiência e majestade. Tu serás eternamente bela e moça, enquanto os deuses durarem; e ela, em poucos anos, conhecerá a melancolia das rugas, dos cabelos brancos, das dores da decrepitude e dos passos que tremem (…). O seu espírito mortal erra através da escuridão e da dúvida; tu, sob essa fronte luminosa, possuis as luminosas certezas. Mas, ó deusa, justamente pelo que ela tem de incompleto, de frágil, de grosseiro e de mortal, eu amo e apeteço a sua companhia congénere! Considera como é penoso que, a esta mesa, cada dia, eu coma vorazmente o anho das pastagens e a fruta dos vergéis enquanto tu, ao meu lado, pela inefável superioridade da tua natureza, levas aos lábios, com lentidão soberana, a ambrósia divina! Em oito (8) anos, ó deusa, nunca a tua face rebrilhou com uma alegria, nem dos teus verdes olhos rolou uma lágrima, nem bateste o pé com irada impaciência, nem, gemendo com uma dor, te estendeste no leito macio… E assim trazes inutilizadas todas as virtudes do meu coração, pois que a tua divindade não permite que eu te congratule, te console, te sossegue, ou mesmo esfregue o teu corpo dorido com o suco das ervas benéficas. Considera ainda que a tua inteligência de deusa possui todo o saber, atinge sempre a verdade; e, durante o longo tempo que contigo dormi nunca gozei a felicidade de te emendar, de te contradizer e de sentir, ante a fraqueza do teu, a força do meu entendimento! Ó deusa, tu és aquele ser terrífico que tem sempre razão! Considera ainda que, como deusa, conheces todo o passado e todo o futuro dos homens e eu não pude saborear a incomparável delícia de te contar à noite, bebendo o vinho fresco, as minhas ilustres façanhas e as minhas viagens sublimes! Ó deusa, tu és impecável; e, quando eu escorregue num tapete estendido, ou me estale uma correia da sandália, não te posso gritar, como os homens mortais gritam às esposas mortais: - Foi culpa tua, mulher! – erguendo, em frente à lareira, um alarido cruel! Por isso sofrerei, num espírito paciente, todos os males com que os deuses me assaltem no sombrio mar, para voltar a uma humana Penélope, que eu mande, e console, e repreenda, e acuse, e contrarie, e ensine, e humilhe, e deslumbre, e por isso me ame de um amor que constantemente se alimenta desses modos ondeantes, como o lume se nutre dos ventos contrários. 
(…) Caminhando dos carvalhos às tecas, a deusa marcou ao atento Ulisses os troncos secos, robustecidos por sóis inumeráveis, que flutuariam, com ligeireza mais segura, sobre as águas traidoras.
(…) Enfim, ao quarto dia de manhã, Ulisses findou de esquadrar o leme, que reforçou com grades de amieiro para melhor aparar o embate das ondas. (…) Então a deusa, ao lado do herói, levemente suspirou e murmurou num sorriso alado:
- Ó magnânimo Ulisses, tu certamente partes. (…) Mas diz! Se em Ítaca não te esperasse a esposa tecendo e destecendo a teia e o filho ansioso que alonga os olhos incansados para o mar, deixarias tu, ó homem prudente, esta doçura, esta paz, esta abundância e beleza imortal? (…)
– Ó deusa, não te escandalizes! Mas ainda que não existisse para me levar nem filho, nem esposa, nem reino, eu afrontaria alegremente os mares e a ira dos deuses! Porque, na verdade, ó deusa muito ilustre, o meu coração saciado já não suporta esta paz, esta doçura e esta beleza imortal. Considera, ó deusa, que em oito anos nunca vi a folhagem destas árvores amarelecer e cair. Nunca este céu rutilante se carregou de nuvens escuras, nem tive o contentamento de estender, bem abrigado, as mãos ao doce lume, enquanto a borrasca grossa batesse nos montes. Todas estas flores que brilham nas hastes airosas são as mesmas, ó deusa, que admirei e respirei na primeira manhã em que me mostraste estes prados perpétuos – e há lírios que odeio, com um ódio amargo, pela impassibilidade da sua alvura eterna. Estas gaivotas repetem tão incessantemente, tão implacavelmente, o seu voo harmonioso e branco que eu escondo delas a face, como outros a escondem das negras harpias! E quantas vezes me refugio no fundo da gruta para não escutar o murmúrio sempre lânguido destes arroios sempre transparentes! Considera, ó deusa, que na tua ilha nunca encontrei um charco; um tronco apodrecido; a carcaça de um bicho morto e coberto de moscas zumbidoiras. Ó deusa, há oito anos, oito terríveis anos, estou privado de ver o trabalho, o esforço, a luta e o sofrimento… Ó deusa, não te escandalizes! Ando esfaimado por encontrar um corpo arquejando sob um fardo; dois bois fumegantes puxando um arado; homens que se injuriem na passagem de uma ponte; os braços suplicantes de uma mãe que chora; um coxo sobre a sua muleta, mendigando à porta das vilas… Deusa, há oito anos que não olho para uma sepultura… Não posso mais com esta serenidade sublime! Toda a minha alma arde no desejo pelo que se deforma e se suja, e se espedaça, e se corrompe… Ó deusa imortal, eu morro com saudades da morte!
Imóvel, com as mãos imóveis no regaço, enrodilhadas nas pontas do véu amarelo, a deusa escutara com um sorriso serenamente divino (…).

Eça de Queirós, "A Perfeição". Contos. Lisboa. Bertrand, 2008.

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Ulisses e a perfeição (II)

2. A percepção de Calipso
(…) Então Calipso, pensativa, lançando sobre os seus cabelos anelados um véu da cor do açafrão, caminhou para a orla do mar, através dos prados, numa pressa que lhe enrodilhava a túnica, à maneira de uma espuma leve, em torno das pernas redondas e róseas. Tão levemente pisou a areia que o magnânimo Ulisses não a sentiu deslizar, perdido na contemplação das águas, com a negra barba entre as mãos, aliviando em gemidos o peso do seu coração. A deusa sorriu, com fugitiva e soberana amargura. Depois, pousando no vasto ombro do herói os seus dedos tão claros como os de Eos, mãe do dia:
- Não te lamentes mais, desgraçado, nem te consumas olhando o mar! Os deuses, que me são superiores pela inteligência e pela vontade, determinam que tu partas, afrontes a inconstância dos ventos e calques de novo a terra da pátria…
Bruscamente, como o condor fendendo sobre a presa, o divino Ulisses com a face assombrada, saltou da rocha musgosa:
- Ó deusa, tu dizes!...
Ela continuou sossegadamente, com os formosos braços pendidos, enrodilhados no véu cor de açafrão, enquanto a vaga rolava, mais doce e cantante, no amoroso respeito da sua presença divina:
- Bem sabes que não tenho naves de alta proa, nem remadores de rijo peito, nem piloto amigo das estrelas, que te conduzam… Mas certamente te confiarei o machado de bronze que foi de meu pai para tu abateres as árvores que eu te marcar e construíres uma jangada em que embarques… Depois eu a proverei de odres de vinho, de comidas perfeitas e a impelirei com um sopro amigo para o mar indomado…
O cauteloso Ulisses recuara lentamente, cravando na deusa um duro olhar que a desconfiança enegrecia. E, erguendo a mão, que tremia toda com a ansiedade do seu coração:
- Ó deusa, tu abrigas um pensamento terrível, pois que assim me convidas a afrontar numa jangada as ondas difíceis onde mal se mantêm fundas naves! Não, deusa perigosa, não! Eu combati na grande guerra onde os deuses também combateram e conheço a malícia infinita que contém o coração dos imortais! Se resisti às sereias irresistíveis e me safei com sublimes manobras de entre Cila e Caríbdis e venci Polifemo com um ardil que eternamente me tornará ilustre entre os homens, não foi decerto, ó deusa, para que agora caia em armadilha arranjada com dizeres de mel.
(…) Assim bradava à beira das ondas, com o peito a arfar, Ulisses, o herói prudente… Então a deusa clemente riu, com um cantado e refulgente riso. E, caminhando para o herói, correu os dedos celestes pelos seus espessos cabelos mais negros que o pez. (…) O divino Ulisses retirou lenta e sombriamente a cabeça da rosada carícia dos dedos divinos:
- Mas jura… Ó deusa, jura, para que ao meu peito desça, como onda de leite, a saborosa confiança!
Ela ergueu o claro braço ao azul onde os deuses moram:
- Por Gaia e pelo Céu superior, e pelas águas subterrâneas do Estígio, (…) juro, ó homem, príncipe dos homens, que não preparo a tua perda nem misérias maiores…
O valente Ulisses respirou largamente. E, arregaçando logo as mangas da túnica, esfregando as palmas robustas:
- Onde está o machado de teu pai magnífico? Mostra as árvores, ó deusa!... O dia baixa e o trabalho é longo!
- Sossega, ó homem sôfrego de males humanos! Os deuses superiores em sapiência já determinaram o teu destino… Recolhe comigo à doce gruta, a reforçar a tua força… Quando Eos vermelha aparecer, amanhã, eu te conduzirei à floresta.
Era, com efeito, a hora em que os homens mortais e os deuses imortais se acercam das mesas cobertas de baixelas, onde os espera a abundância, o repouso, o esquecimento dos cuidados e as amoráveis conversas que contentam a alma. Em breve Ulisses se sentou no escabelo de marfim. (…) E logo que deram a oferenda abundante à fome e à sede, a ilustre Calipso, encostando a face aos dedos róseos e considerando pensativamente o herói, soltou estas palavras aladas:
- Ó Ulisses muito subtil, tu queres voltar à tua morada mortal e à terra da pátria… Ah! Se conhecesses como eu quantos duros males tens de sofrer antes de avistares as rochas de Ítaca, ficarias entre os meus braços, amimado, banhado, bem nutrido, revestido de linhos finos, sem nunca perderes a querida força, nem a agudeza do entendimento, nem o calor da facúndia, pois que eu te comunicaria a minha imortalidade! Desejas voltar à esposa mortal que habita a ilha áspera onde as matas são tenebrosas? E todavia eu não lhe sou inferior, nem pela beleza, nem pela inteligência, porque as mortais brilham ante as imortais como lâmpadas fumarentas diante de estrelas puras…

Eça de Queirós, "A Perfeição". Contos. Lisboa. Bertrand, 2008.

domingo, 9 de setembro de 2012

Ulisses e a perfeição (I)

1. O queixume de Ulisses
Sentado numa rocha, na ilha Ogígia, com a barba enterrada entre as mãos, donde desaparecera a aspereza calosa e tisnada das armas e dos remos, Ulisses, o mais subtil dos homens, considerava, numa escura e pesada tristeza, o mar muito azul que, mansa e harmoniosamente, rolava sobra a areia muito branca. Uma túnica bordada de flores escarlates cobria, em pregas moles, o seu corpo poderoso, que engordara. Nas correias das sandálias que lhe calçavam os pés amaciados e perfumados de essências reluziam esmeraldas do Egipto. E o seu bastão era uma maravilhoso galho de coral, rematado em pinha de pérolas, como os que usam os deuses marinhos.
A divina ilha, com os seus rochedos de alabastro, os bosques de cedros e tílias odoríferas, as messes eternas dourando os vales, a frescura das roseiras revestindo os outeiros suaves, resplandecia, adormecida na moleza da sesta, toda envolta em mar resplandecente. Nem um sopro dos zéfiros, curiosos, que brincam e correm por sobre o arquipélago, desmanchava a serenidade do luminoso ar, mais doce que o vinho mais doce, todo repassado pelo fino aroma dos prados de violetas. No silêncio, embebido de calor afável, eram de uma harmonia mais embaladora os murmúrios de Arroios e fontes, o arrulhar das pombas voando dos ciprestes aos plátanos e o lento rolar e quebrar da onda mansa sobre a areia macia. E, nesta inefável paz e beleza imortal, o subtil Ulisses, com os olhos perdidos nas águas lustrosas, amargamente gemia, revolvendo o queixume do seu coração.
Sete anos, sete imensos anos, iam passados desde que o raio fulgente de Júpiter fendera a sua nave de alta proa vermelha e ele, agarrado ao mastro e à carena, trambolhara na braveza mugidora das espumas sombrias, durante nove dias, durante nove noites, até que boiara em águas mais calmas e tocara as areias daquela ilha onde Calipso, a deusa radiosa, o recolhera e o amara! E durante esses imensos anos, como se arrastara a sua vida que, depois da partida para os muros fatais de Tróia, abandonando entre lágrimas inumeráveis a sua Penélope de olhos claros, o seu pequenino Telémaco enfaixado no colo da ama, andara sempre tão agitada por perigos, e guerras, e astúcias, e tormentas, e rumos perdidos?... Ah! Ditosos os reis mortos, com formosas feridas no branco peito, diante das portas de Tróia! Felizes os seus companheiros tragados pela onda amarfga! Feliz ele, se as lanças troianas o trespassassem nessa tarde de grande vento e poeira, quando, junto à Faia, defendia dos ultrajes, com a espada sonora, o corpo morto de Aquiles! Mas não! Vivera!...
E agora, cada manhã, ao sair sem alegria do trabalhoso leito de Calipso, as ninfas, servas da deusa, o banhavam numa água muito pura, o perfumavam de lânguidas essências, o cobriam com uma túnica sempre nova, ora bordada a sedas finas, ora bordada de ouro pálido! No entanto, sobre a mesa lustrosa, erguida à porta da gruta, na sombra das ramadas, junto ao sussurro dormente de um arroio diamantino, os açafates e as travessas lavradas transbordavam de bolos, de frutas, de tenras carnes fumegando, de peixes cintilando como tramas de prata. A intendenta venerável gelava os vinhos doces nas crateras de bronze, coroadas de rosas. E ele, sentado num escabelo, estendia as mãos para as iguarias perfeitas, enquanto ao lado, sobre um trono de marfim, Calipso, espargindo através da túnica nevada a claridade e o aroma do seu corpo imortal, sublimemente serena, sem tocar nas comidas humanas, debicava ambrósia, bebia em goles delgados o néctar transparente e rubro. Depois, tomando aquele bastão de príncipe dos povos com que Calipso o presenteara, repercorria sem curiosidade os sabidos caminhos da ilha, tão lisos e tratados que nunca as suas sandálias reluzentes se maculavam de pó, tão penetrados pela imortalidade da deusa que jamais neles encontrara folha seca, nem flor menos fresca pendendo na haste. Sobre uma rocha se sentava então, contemplando aquele mar que também banhava Ítaca, lá tão bravio, aqui tão sereno, e pensava, e gemia, até que as águas e os caminhos se cobriam de sombra e ele recolhia à gruta para dormir, sem desejo, com a deusa que o desejava! (…)
E agora, homem de tão rutilantes feitos jazia numa ilha mole, eternamente preso, sem amor, pelo amor de uma deusa! Como poderia ele fugir, rodeado de mar indomável, sem nave, sem companheiros para mover os remos longos? Os deuses ditosos certamente esqueciam quem tanto por eles combatera e sempre piedosamente lhes votara as reses devidas, mesmo através do fragor e fumaraça das cidadelas derrubadas, mesmo quando a sua proa encalhava em terra agreste!.... E ao herói que recebera dos reis da Grécia as armas de Aquiles cabia por destino amargo engordar na ociosidade de uma ilha mais lânguida que uma cesta de rosas, estender as mãos amolecidas para as iguarias abundantes e, quando águas e caminhos se cobriam de sombra, dormir sem desejo com uma deusa que, sem cessar, o desejava.
Assim gemia o magnânimo Ulisses à beira do mar lustroso…

Eça de Queirós, "A Perfeição". Contos. Lisboa. Bertrand, 2008.

sábado, 8 de setembro de 2012

Tentar perceber

Hoje, ao fim da manhã, voltei à Foz, à Praia da Luz, para me encontrar com o Diogo de Vasconcelos. O tempo estava enevoado e, depois das rochas, avistavam-se algumas silhuetas escuras de barcos à pesca. O mar parecia imóvel, mas a imensidão da sua presença bastou para me devolver alguma da serenidade posta à prova nos últimos dias. Preciso da sua palavra amiga, Diogo, da sua clarividencia e da sua visão do futuro.
Fiquei por ali duas horas, a tentar pôr as questões certas, a tentar perceber. A tentar adivinhar aquele manancial de ideias que o Diogo tanto gostava de partilhar: "We are what we share".

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

À janela de Carl Dreyer

Carl Dreyer, Day of Wrath. 1943

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

O lobinho-cão e a ovelhinha ruça


Uma vez um lobo encontrou uma ovelha que andava a pascer e disse-lhe:
- Ó ovelha, eu como-te!
Respondeu a ovelha:
- Pois sobe ali para cima, que eu entretanto vou pascendo, e depois entro-te lá mesmo pela boca dentro.
O lobo subiu para o alto do monte e esperou. A ovelha, assim que viu o lobo longe, fugiu. O lobo começou a correr atrás dela, e, como a não pudesse agarrar, disse:
Que eu sou lobinho-cão,
Nunca corri tanto em vão.
Respondeu a ovelha:
Que eu sou ovelhinha ruça,
Nunca corri tanto de escaramuça.

Contos Tradicionais Portugueses, coligidos por Carlos de Oliveira e José Gomes Ferreira e ilustrados por Maria Keil. Lisboa, Iniciativas Editoriais, 1957. Vol. I, p. 269-270.

Moral da história: até um lobinho-cão tem a sua ovelhinha má.

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Crónicas micaelenses - 4


A primeira etapa da quarta jornada micaelense tinha como alvo o Mercado  da Graça, uma construção de meados do século XIX. O ambiente dos mercados ajuda a caracterizar uma certa feição das cidades. Hoje, como no passado, ali se encontram os bens que de alguma forma caracterizam a produção agrícola e as pescas de uma região e se definem os preços de referencia que o mundo urbano está disponível para pagar. Mas além disso, o mercado foi um ponto de encontro fundamental das cidades, um centro receptor e difusor de informação sem paralelo. Parte destas funções perdeu-as com a integração e globalização e sobretudo com as profundas transformações tanto do mundo rural como dos hábitos de consumo urbanos.
Deambulei entre os produtos da terra (todos assinalados com a designação origem regional) e do mar, admirei os peixes e cheirei deliciado os ananases, e quase me perdi na loja dos queijos, compotas, enlatados, chá, vinhos e bolos do arquipélago.
Em sucessivas idas e vindas ao carro para despejar os sacos de compras consumi o resto da manhã. Um dos vendedores - de batata doce - advertira-me de que entrara tarde no mercado. De facto, pelas 12h30 as instalações encerram.




A meteorologia parecia hesitar entre voltar ao regime de neblinas e chuvas dos dias anteriores ou proporcionar aos visitantes a primeira aberta soalheira na zona montanhosa. Pareceu avisado dar-lhe mais algum tempo de decisão e procurar um local para um almoço ligeiro. Pairava em memória longínqua o nome e o som de umas lapas açorianas crepitando na chapa da grelha, o que sugeria a procura de uma marisqueira. A consulta via IPad apontava uma hipótese - a Casa Marisca - suficientemente longe do centro da cidade para justificar um passeio prolongado. Escolha acertadíssima. Serviço despretensioso e eficaz. Qualidade excelente de toda a comida, preços razoáveis, a contrastar com a tendência geral inflacionária. As lapas estavam saborosas, o queijo de S. Jorge na cura apropriada, o bife suculento e no ponto, o vinho branco agradável.
O regresso pela marginal permitiu adivinhar que a neblina se retirara das fortalezas que ocupara nos dias anteriores. Aproveitando a brecha tomei a estrada para Sete Cidades. Até encontrar a grande cratera do vulcão, agora revestida a verde, com as duas lagoas no fundo, a estrada foi galgando os flancos da massa erguida pela erupção da terra há cerca de 20000 anos. Num dos pontos de observação da subida, avista-se quase toda a ilha, que se estreita por alturas de Ribeira Grande. Noutro o mar,  para norte e noroeste.



Peço então de novo ajuda a Raul Brandão.
"Na minha frente entreabre-se um abismo que nos atira para fora da vida, para regiões inesperadas de sonho. A convulsão, a brutalidade e o fogo levantaram até ao céu grandes paredes vulcânicas, dispondo no fundo do caos alguns campinhos meigos e dois lagos, um inteiramente verde e outro inteiramente azul, separados por um fio de terra e quietos, adormecidos, cismáticos. As forças desencadeadas chegaram a este resultado: um pouco de azul, um pouco de verde, ternura e idílio... Paredes cortadas a pique, carregadas de árvores, que se despenham de cima até abaixo, acabam na água ou em pequenas chãs de milho, que a luz das ilhas envolve duma frialdade casta e imóvel...
Um ah de assombro, um sentimento novo, um vago sentimento de surpresa... Pela primeira vez na vida não sei descrever o que vejo e o que sinto. Conheço os lagos voluptuosos da Itália e os lagos adormecidos da Escócia: o lago das Sete Cidades não se parece com nenhum que tenha visto. Existe ou sonhei esta água parada , esta grande cova selvática empoada de roxo, com aquela serenidade a ferros lá no fundo? esta beleza estranha que nos contempla ao mesmo passo que a contemplamos?
O carácter da paisagem é delicado e oculto. Embora a gente veja o campanário e as casas minúsculas no fundo da enorme cratera duvida, e chega a supor que a vara dum mágico fez parar o tempo, e aquilo se conserva encantado entre montes desmedidos e brutos que o guardam prisioneiro. O tempo passa, os homens passam; só ali tudo está suspenso, na atitude fixa no momento do prodígio.  Na solidão mágica não se ouve  cantar um pássaro, a água não bole, as flores não bolem. Tudo se mostra na amplidão da cratera aberta para o céu e num grande silencio estarrecido. Tão pouca tinta! Um quadro feito de emoção; um quadro em que o verde não chega a ser verde, em que o azul é névoa, e um sopro o pó roxo suspenso no ar, ouro hálito da paisagem arfando. Três riscos muito leves para fixar o encanto, como se fosse possível só com sentimento e quase com nada de cor, fazer uma obra-prima. Reparo que há efectivamente uns carreiros perdidos por entre os montes para descer lá abaixo. Mas eu não me atrevo! tenho medo de que ao aproximar-me a visão se desvaneça no ar!..."


Sem receio meti-me ao caminho para Sete Cidades. A estrada, ao contrário da que presumivelmente Brandão tinha ao dispor, é moderna e segura. Não consegui observar detidamente a povoação que se encontrava em estado de sítio, devido a obras na zona mais próxima da linha de água, mas a paisagem natural aqui fica registada.






Tinha reservado o fim da tarde para tomar uma bebida com C.R.,  meu antigo aluno na Faculdade de Letras de Lisboa, amigo com quem partilhei alguns temas de investigação. Graças à sua predisposição conversadora, três anos de distancia foram rapidamente ultrapassados dando azo a uma soma inesgotável de informações. Foi difícil abrir uma brecha nesta torrente, para introduzir o jantar marcado para o Borda d' Água, em Lagoa. Deste direi laconicamente que já esqueci este desastre. Não tenciono dar-lhe uma nova oportunidade.

Uma operação stop aguardava-me à saída do restaurante. A agente foi cordata e depois de me mandar soprar no balão autorizou-me a prosseguir. No largo da matriz, Lagoa celebrava a noite com música, cerveja e farturas.
Uma felina preta espreitava-me por detrás da tela mosquiteira.