sábado, 14 de fevereiro de 2009

Esquinas

Aqui estará uma imagem de uma esquina qualquer de Buenos Aires. Não me dirão qual é. Pode ser a de Charhas e Maipú, a da minha própria casa; imagino-a repleta dos meus fantasmas, inextricavelmente entrando e saindo e cruzando-se. Pode ser a que fica defronte, onde há agora um grande edifício com rampas e havia um bairro pobre com vasinhos de flores nas varandas, e antes disso uma casa que ignoro, e no tempo de Rosas, uma cabana, com a vereda de mosaicos e a rua térrea. Pode ser a desse jardim que foi o teu paraíso. Pode ser a de uma pastelaria do Once, onde Macedonio Fernández, tão receoso da morte, nos explicava que morrer é o mais banal que nos pode acontecer. Pode ser a daquela biblioteca de Almafro Sul, onde me foi revelado Léon Bloy. Pode ser uma esquina sem casas, das poucas que restam. Pode ser a daquela casa onde María Kodama e eu trouxemos uma cesta de vime com uma leve gata abissínia que se chamava Ódin e que atravessara o Oceano. Pode ser a de uma árvore que nunca saberá que é uma árvore e que nos oferece a sua sombra. Pode ser uma das muitas que Leandro Alem viu pela última vez, antes da carruagem se fechar e do balázio que lhe foi suficiente. Pode ser a dessa livraria onde descobri, ao longo do tempo, duas histórias da filosofia chinesa. Podser a de Esmeralda e Lavalle, onde morreu Estanislao do Campo. Pode ser cada uma das que formam o espalhado tabuleiro. Pode ser quase todas e é assim o nunca visto arquétipo.

Jorge Luis Borges, Obras Completas. Vol III. Lisboa, Teorema, 1998. p. 454.

4 comentários:

Paulo G. Trilho Prudêncio disse...

"Pode ser a de uma árvore que nunca saberá que é uma árvore e que nos oferece a sua sombra." Ufa!!!

Abraço e obrigado.

Anónimo disse...

Pode ser a de uma criança, porque,

No fim do verão, as crianças voltam,
correm no molhe, correm no vento.
Tive medo que não voltassem.
Porque as crianças às vezes não
regressam. Não se sabe porquê
mas também elas
morrem.
Elas, frutos solares:
laranjas romãs
dióspiros. Sumarentas
no outono. A que vive dentro de mim
também voltou: continua a correr
nos meus dias. Sinto os seus olhos
rirem; seus olhos
pequenos brilhar como pregos
cromados. Sinto os seus dedos
cantar com a chuva.
A criança voltou. Corre no vento.


Eugénio de Andrade, Sal da Língua Porto, Fundação Eugénio de Andrade, 1995.

MV

Anónimo disse...

As duas paredes de que se faz uma esquina, de tão próximas tão alheias, criam um lugar simbólico e mágico de encontro, desencontro, passagem... e de sei lá mais o quê! Quem sabe é este desencantador de paisagens íntimas, mais que reveladoras, criadoras da nossa humanidade,ao descrevê-las, como aqui, quando fala de esquinas, revelando-nos o que "viu" como só ele o podia ver, Jorge Luís Borges, meu autor de eleição!
- Isabel X -

João Ramos Franco disse...

...Ergo os olhos daquele chão, marcado por quadrados de basalto e calcário e olho agora as paredes das casas que envolvem a praça. Paredes com letreiros, anunciando outro modo de viver dos homens. Paredes limpas de letras mostrando a existência de casas de habitação.
...Caminho agora lentamente sobre a praça iluminada por a luz ténue dos candeeiros que por entre o nevoeiro deixa ver apenas as sombras verticais de prédios que mais parecem sentinelas perpétuas de tudo o que aqui se passa.
Na minha imaginação, retirei, este texto escrito no meu conto "A Praça"
A realidade do que vemos...
João Ramos Franco