segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Uma tarde partirei para Memphis (I)

O solo ali é de uma areia estéril e seca, cheia de cascalho. Nada mais árido, mais desolado: o sol queima, implacável; um silêncio enorme pesa na alma e nas cousas; sente-se a presença do réptil e do escorpião.
Caminhamos curvados, calados, oprimidos. Ao lado erguem-se as velhas Pirâmides de Sakkâra. Toda aquela planície é tumular: ruínas, sepulcros, areias. Assim vamos seguindo até à região onde chega o Nilo. Aí, a vista abrange a larga toalha de água, cheia de verdura e de árvores.
Caminha-se por entre a inundação, num istmo de terra forte e escura.
De ambos os lados, a água sagrada do Nilo. Os pelicanos passeiam gravemente na corrente; por cima, voam os abutres. Ao fundo, distinguem-se as palmeiras de Memphis, e, sempre, na distância, as formas azuladas das Pirâmides.
Embarca-se para chegar a Memphis, através da inundação. Não há passeio melhor, nem mais belo, naquela região do Egipto: a água assenta, clara e fresca, entre bosques de palmeiras que desenham as suas arcarias no horizonte. Não há linhas imprevistas nem perspectivas: é uma uniformidade doce, que deixa no espírito um lento magnetismo, como uma nota musical muitas vezes repetida.
A vida real fica para trás, bem longe: vive-se no sonho. Um silêncio poético, infinito, suave, envolve-nos com um óleo brando.O azul tem uma ternura humana na cor, na frescura, na virgindade. As palmeiras formam longas arcarias melancólicas e serenas, e fazem um ruído doce, fresco, suspirado, sem uma agitação de folhas. Há o que quer que seja de humano naqueles grandes seres delgados e tristes.
A floresta é imensa. Às vezes, a intervalos, entrevê-se uma pequena aldeia árabe: um turco passa, montado no seu burro; uma mulher toda envolvida em véus descansa ao pé de uma palmeira, junto da bilha. Pensa-se na vida antiga, primitiva, em Abraão, em Agar: o palmar tem a serenidade de uma paisagem bíblica.
Os cuidados da vida, a nossa civilização, são impossíveis ali, naquela simplicidade sublime de beleza.
Eça de Queirós, Egipto. Notas de Viagem. Edição O Independente, Lisboa, 2001 [notas redidgidas por Eça no decurso de uma viagem ao Egipto realizada em 1869, tinha o autor 23 anos]

2 comentários:

Anónimo disse...

Meu Caro Professor, hoje, já não é tão fácil partir para Memphis... a Barragem de Assuão, alterou/regularizou o Delta do Nilo, contudo... a descrição de Eça de Queiroz permanece actual e poderia ser o relato do meu passeio pelo Nilo, assim eu soubesse escrever....
Para o seu mail, envio-lhe 3 fotografias...

Um abraço do Paulo

João B. Serra disse...

Obrigado Paulo. Coincidência notável esta: li o livro de viagem do Eça em Viseu, tinha você regressado há pouco do Egipto (com aquelas cores magníficas que o deserto oferece aos nativos das Beiras...). Um abraço.