sexta-feira, 21 de novembro de 2008

"Não fazia rebrilhar as couraças"

O comandante tivera razão nas suas desconfianças, pouco havia passado das dez horas quando do alto da torre ressoaram os gritos de alarme das atalaias, Inimigo à vista. É certo que os austríacos, pelo menos na sua versão militar, não gozam de boa reputação entre esta tropa portuguesa, mas daí, sem mais aquelas, a chamar-lhes inimigos, vai uma distância que o senso comum não pode não recriminar severamente, chamando a atenção dos imprudentes para os perigos dos juízos precipitados e da tendência para as condenações sem provas. O caso, porém, tem uma explicação. Às atalaias tinha-se-lhes ordenado que dessem voz de alarme, mas ninguém se lembrou de lhes dizer, nem sequer o comandante, em geral tão precavido, em que deveria consistir essa voz. Perante o dilema de terem de escolher entre Inimigos à vista, que qualquer civil é capaz de perceber, e um tão pouco marcial As visitas estão a chegar, o uniforme que envergavam resolveu decidir por sua conta, exprimindo-se com o vocabulário e  a voz que lhe são próprios. Ainda a última ressonância do alerta vibrava no ar e os soldados acorriam às ameias para ver o tal inimigo, que, a  esta distância, uns quatro ou cinco quilómetros, não passava de uma mancha quase negra que mal parecia avançar e que, contra todas as expectativas, não fazia rebrilhar as couraças que traziam postas. Um soldado desfez a dúvida, Não admira, têm o sol pelas costas, o que, reconheçamo-lo, é muito mais bonito, muito mais literário, que dizer Estão em contraluz.

José Saramago, A Viagem do Elefante. Lisboa, Caminho, 2008, p. 131-132

2 comentários:

Anónimo disse...

Nâo sabia que Saramago tinha voltado aos bons velhos tempos do Memorial do Convento. A julgar pelo naco que aqui nos trouxe para saborearmos, vale mesmo a pena ler esta Viagem.
Mas não deixa de ser curiosa a ligação ao tema de hoje: professores e Ministério da Educação. O Governo também se deve ter deixado iludir pelo sol. A mancha professoral parecia imóvel depois do 8 de Março. Mas neste caso, os avisadores do Governo devem ter escolhido a fórmula "As visitas estão a chegar" em vez de "Inimigo à vista". Ah, ah, ah!
MT

João Ramos Franco disse...

Tavez não confundir os temas do Blog, mas como é persistente em ligar os asuntos em debate, no seu caso recomendo-lhe que leia "Um homem do povo na Revoloção de Roger Vailland", por exemplo. Talvez assim deixe de confudir manifestações com os textos do José Saramago.
João Ramos Franco