sábado, 4 de outubro de 2008

Três pontos sobre a Fortaleza de Peniche


Tenho seguido com surpresa a reacção que Irene Pimentel, Diana Andringa e Maria Manuela Cruzeiro desencadearam no seu site Caminhos da Memória contra a projectada instalação de uma Pousada na Fortaleza de Peniche. Tenho por todas elas a maior consideração intelectual, no caso de duas também temperada por estima pessoal e amizade.
Os depoimentos que fizeram no referido site, recorrendo por vezes à crítica fácil e ao argumento deselegante, tentam estabelecer uma linha de fronteira entre os que defendem a memória dos que sofreram a repressão política e os que transigem nessa defesa, cedendo a outros interesses. Irene Pimentel, Diana Andringa e Maria Manuela Cruzeiro não cuidaram de se informar, de analisar a situação da Fortaleza e de eventualmente submeter a contraditório essa análise. Julgaram sumariamente declarações do Presidente da Câmara, que leram em jornais, num tribunal de ética e de espírito cívico de que se apresentam como as únicas detentoras autorizadas, e sentenciaram-no.
Se exigências mínimas de rigor tivessem sido respeitadas, teriam começado por se informar sobre o acontecimento que está na origem da sua sobressaltada tomada de posição. E em vez de projecto, que tomam como tendo sido aprovado, e protocolo, que julgam celebrado com a Câmara, talvez descobrissem que o que foi assinado a 25 de Setembro foi um aditamento a um contrato de exploração anterior, entre o Estado e a Enatur. 
Portanto, ponto um: a construção de uma Pousada na Fortaleza de Peniche há muitos anos que fora decidida por um Governo da Democracia (salvo erro, presidido pelo Eng.º António Guterres) sem que tivesse gerado nenhum clamor “ético” e “cívico”.
O aditamento agora assinado altera porém num aspecto a concessão anterior, permitindo ao grupo privado que entretanto adquiriu 49% do capital da Enatur e assumiu a respectiva gestão, elevar o número previsto de quartos do estabelecimento hoteleiro de Peniche. A Câmara de Peniche dessa altura (2002) acompanhou todo processo. A elaboração do projecto foi entregue ao Arquitecto Siza Vieira, competindo-lhe apresentar uma proposta sobre as áreas que seria necessário ao Estado (proprietário do monumento) ceder para a construção da pousada. Com base no parecer do projectista, seriam posteriormente definidas em protocolo adicional, as áreas cedidas, as áreas não cedidas e as áreas comuns. Nesse protocolo adicional estava prevista a intervenção da Câmara. Aconteceu, no entanto, que o projectista não concluiu o seu trabalho, certamente por desinteresse da Enatur.
Ponto dois: não há nenhum protocolo relativo a este tema em que a Câmara Municipal de Peniche tenha intervindo. As redactoras do site não são muito explícitas quanto ao que defendem para a Fortaleza. Irene Pimentel defende que “devia ser ali erguido um espaço museológico ‘a sério’, actual e com preocupações estéticas, bem como pedagógicas”. Pela minha parte, só me posso congratular com esta indicação. Bem vinda ao clube! Há mais de duas décadas que venho advogando esse objectivo e colaborado com diversos executivos municipais com vista à sua prossecução. Mas confesso que para lá da boa vontade municipal, não encontrei nenhum movimento de ideias nem disponibilidades materiais para empreender essa criação. E seria injusto omitir que o actual executivo camarário tomou o tema em mãos, efectivou contactos e desencadeou um processo aberto de contributos cívicos, científicos e museológicos que lhe permitam dotar-se de um programa museológico. Estou certo que o contributo generoso de Irene Pimentel, Diana Andringa e Maria Manuela Cruzeiro para esse programa será bem acolhido.
Resta discutir se todo o espaço da Fortaleza deve ser musealizado. Aqui certamente divergimos. Mas se as minhas amigas visitarem o local, tomarem em atenção as dimensões da Fortaleza e o seu estado de conservação, ouvirem a população local e tentarem perceber a história secular do monumento e, sobretudo, fizerem contas às fontes de financiamento de um espaço museológico com as características daquele, no mínimo hão-de concordar que o sentido da responsabilidade pública não está distribuído só a um dos lados desta controvérsia.
Em suma, ponto três: há muita matéria para discutir (e trabalhar) se dela eliminarmos preconceitos e ligeireza.

9 comentários:

Anónimo disse...

Como membro da Redacção dos «Caminhos da Memória», gostaria de tecer umas breves considerações:

1-Maria Eduarda Cruzeiro nada tem a ver com o blogue acima referido nem lá escreveu qualquer comentário.
2-O seu texto contém informações muito importantes, por exemplo a que se refere ao facto de o arquitecto Siza Vieira «não ter concluído o trabalho», já que o seu nome tem vindo a ser referido como garantia de solução condigna.
3-Seja como for, este e outros pontos serão devidamente esclarecidos pelo movimento «Não apaguem a memória!» junto do Presidente da Câmara de Peniche: está já agendada uma reunião com uma delegação da Direcção daquele movimento, da qual aliás farei parte.

Cumprimentos
Joana Lopes

J J disse...

Construída no início do séc. XVII a Fortaleza de Peniche foi.
- uma praça militar de vital importância durante 250 anos;
- abrigo de refugiados Boers provenientes da África do Sul no início do séc. XX;
- residência de prisioneiros alemães e austríacos durante a Primeira Guerra Mundial;
- prisão política do Estado Novo entre 1934 e 1974.
Ignorar uma história de quase quatro séculos, tão rica, para ligar eternamente o edifício a uma utilização de três décadas é claramente redutor, por mais trágica e lamentável que essa utilização tenha sido. Que exista pois o Museu, estou de acordo, mas não necessariamente em todo aquele espaço.
A população de Peniche que tem agora uma palavra a dizer (não teve na utilização anterior…), tem uma opinião claramente favorável à solução encontrada, pelo que me apercebo no contacto que tenho com inúmeros residentes.
Dizia um militante judeu que a “Lista de Schindler” era mais útil à sua causa que todos os memoriais. Ainda não percebemos isso em Portugal. Esbracejamos e vociferamos ocasionalmente contra todas as obras, mas nunca propomos nem contribuímos para qualquer alternativa. Felizmente, readormecemos logo a seguir…

João Ramos Franco disse...

Após ter lido os comentários sobre o assunto no site "Caminhos da Memória", o que me pareceu enfrentar melhor a realidade foi o de Fernando Penim Redondo.
Penso que a Pousade na Fortaleza de Peniche e um espaço museológico ‘a sério’, actual e com preocupações estéticas, bem como pedagógicas” podem conviver.
Mas em assuntos como paira sempre aquela antiga frase: "Se Maomé não vai à montanha, como trzer a montaha a Maomé".
João Ramos Franco

João B. Serra disse...

Peço desculpa à Maria Eduarda Cruzeiro e à Maria Manuela Cruzeiro pela involuntária confusão de nomes. Vou de imediato corrigir esse erro.

Anónimo disse...

Só mesmo conhecendo o espaço, a sua História e as expectativas dos cidadãos de Peniche se poderá avalizar o impacto da intenção de vivificar a Fortaleza de Peniche.
A convivência de valências hoteleiras com valências de carácter cultural, museu, no caso, afigura-se como uma realidade de grande alcance sócio-cultural-económico.Assim poderá suceder em Peniche, num espaço cheio de História e de histórias que importa preservar e fruir.
Lido o Jornal Público de ontem, com o inquérito realizado a cerca de três dezenas de Museus da Rede do IPM percebemos que não basta dispor de acervos, equipas e programas, torna-se imperioso, para o caso de Peniche, ancorar o Projecto Museológico da Fortaleza de Peniche, num projecto de arquitectura de grande relevância estética e técnica e uma unidade hoteleira de superior qualidade que complemente e dê suporte financeiro a todo o projecto.
NB

Anónimo disse...

Acredito ser possível dotar-se Peniche, com uma infraestrutura turística de alta qualidade, com o facto de se preservar a memória que de quem, lutando pela liberdade, ficou privado da mesma.

A coexistência destes dois planos, é possível desde que a solução seja procurada com bom senso das partes envolvidas, e sobretudo interpretada por pessoas, que consigam ser capazes de resistir ao assalto, que quase sempre, nestas circunstãncias, a emoção faz à razão.

Desta forma penso que a conjugação destes dois projectos seria uma boa forma de modernidade, em síntese : fazer o que temos sem nos esquecer do que devemos.

Volvidos 34 anos desde o 25 de Abril, é tempo de recolocar-mos a sua memória no tempo certo : o passado, mas com um lugar cativo num presente despojado de complexos.

Cumprimentos
Amigo de Peniche

Anónimo disse...

Fui recentemente visitar a fortaleza de Peniche e fiquei decepcionada.Não é preciso um espaço tão amplo para expor os documentos que nos dão conta dum passado pouco dignificante.
Celas vazias, parlatórios decorados de forma algo ridícula, e outros espaços inúteis, nem sempre provocam as emoções que se pretendem. Não é a grande amplitude do espaço museológico, mas sim a sua organização eficiente e elegante, que tem influência naquilo que importa:conservar a memória, para evitar que os mesmos factos se reproduzam no futuro.

João B. Serra disse...

O alarido gerado em torno da questão da Pousada de facto desviou a atenção das questões decisivas da preservação do património e da sua apresentação/interpretação. A musealização que foi feita nos anos 80 em Peniche, em parte da antiga prisão política, é muito pobre. Hoje, passado um quarto de século sobre a sua elaboração, está desajustada do que se exige de um museu moderno.
A Câmara de Peniche encarregou um grupo de trabalho de elaborar um novo programa para a sua rede museológica, incluindo o Museu da Resistência. Conhece, melhor do que ninguém, os problemas do financiamento dos investimentos em salvaguarda de património e sua musealização. Ao longo dos 34 anos decorridos desde a Revolução, o Estado não fez nenhum esforço nesse sentido. O Estado não tomou a seu cargo nenhum projecto de musealização de qualquer espaço conotado com a repressão politica do Estado Novo (nem Caxias, nem o Aljube, nem a António Maria Cardoso, nem o Tarrafal). É por isso que a reivindicação de fazer da Fortaleza um espaço todo ele destinado a museu é no mínimo irrealista. É tão irrealista que não contribui em nada para ajudar a resolver os problemas que pretende solucionar. É além do mais, um alarido mal informado. Partiu de uma ideia feita, não quis ouvir, não quis perceber, não quis colaborar.
Mas talvez fosse agora a altura de retroceder no caminho e reunir os saberes e as boas vontades para pensar e realizar um novo programa para o património museológico de Peniche.

Anónimo disse...

Caro João Serra,

Por várias razões, sendo uma delas o silêncio que se abateu sobre a discussão dos destinos da Fortaleza de Peniche, resolvi deixar aqui um comentário.

Fala-se na tua nota precedente de uma comissão conhecedora e competente para avaliar e porventura resolver os problemas do museu, mas não se diz quem a constitui nem como nem quando haverá conclusões. A omissão é estranha, frustrnate e adensa o silêncio, que, neste caso preciso, tem ares de ser intencional. Porquê?

Mais estranho ainda é o acrescido silêncio quando se fala apenas da questão do Museu da Resistência e do interesse de uma pousada, deixando de fora, sem uma alusão sequer, .tudo o resto que na Fortaleza existe, sem destino previsível, desde há bem 25 anos. Para continuar a existir com dignidade, o que lá existe e virá terá de sair da gaiolinha em que está metido: precisa de muito mais espaço. Onde é que ele está?

Ppor estes motivos, e visto ter boas razões para isso, resolvi abrir uma área de informação e discussão fora daquelas que se encontram em linha. Quem se interessa pelo assunto terá aqui outras fontes de inspiração:

http://museudomar.info (Museu do Mar, museu imaginário)

Sobre o problema da ocupação do espaço da Fortaleza e a viabilidade de uma pousada construida em cima de duas imensas furnas marinhas de onde sopram ventos que levantam pesadas lajes de pedra não se perde nada em ler este texto:

http://museudomar.com.sapo.pt/respiradouro.htm (respiradouro)

Algo que invocas com insistência merece de facto ser tido em conta: o bom senso.

Um abraço
Ricardo Costa