sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Europa de cafés

Confesso que gostei de Uma Certa Ideia da Europa menos do que queria, correspondendo mal ao belo gesto da Ana que me ofereceu o seu próprio exemplar quando nos encontrámos em Paris, num café (de facto uma daquelas esplanadas envidraçadas) dos Campos Elísios. Ana leu-me aquela abertura do texto e, por momentos, devo ter partilhado com ela o  mesmo sentimento de identificação com Georges Steiner que nos incluiu, por via de Pessoa e dos cafés, no roteiro da ideia de Europa que estabeleceu. Traduzo, a partir da tradução francesa: "Os cafés caracterizam a Europa. Vão desde o café preferido de Pessoa, em Lisboa, até aos cafés de Odessa, frequentados pelos gangsters de Isaac Babel. Estendem-se desde os cafés de Copenhaga, diante dos quais Kierkgard passava nos seus passeios de meditação, até aos balcões de Palermo. Não há cafés antigos ou característicos em Moscovo que é já periferia da Ásia. Muitos poucos em Inglaterra, após uma moda efémera no século XVIII. Nenhum na América do Norte, se exceptuarmos a antena francesa é Nova Orleães. Desenhe-se o mapa dos cafés e obter-se-á um dos quadros essenciais da noção de Europa" (Georges Steiner, Une Certaine Idée de l'Europe. Trad. francesa, Actes du Sud, 2005. p. 23).
Estávamos em 2005. Não adivinhávamos que a edição portuguesa viria a ter aquela tradução desastrada e muito menos que recairia em Durão Barroso, escolha inexplicável, a elaboração do prefácio. Espero que o meu fraco entusiasmo pelo ensaio não tenha sido influenciado por estes factos aleatórios.
De qualquer modo, se erigir o roteiro dos cafés ao estatuto de roteiro fundamental da Europa é um achado e um achado sugestivo, não parece muito consistente.  José Barreto, um especialista na história ( e na geografia) dos cafés (a propósito, amantes de café e de cafés, não percam o seu blog, culto e um pouco azedo como convém, mas recheado de informação pertinente e quase sempre  interessantes imagens) contestou-a com soma de argumentos convincentes.
Se a noção de Europa se corporiza nos seus cafés, há várias décadas que começou a perdê-los. Mantiveram-se com esforço alguns cafés históricos, mas os cafés que sobreviveram nas ultimas décadas perderam as funcionalidades que estavam associadas ao acto de beber café e às pessoas que neles paravam – para conspirar, para namorar, para jogar, para observar, para obter informações orais ou escritas, para ver e ser visto, para estudar, para conversar, para beber café e para fumar.
Dos meus cafés, sobram poucos. Nas Caldas, perdi o Lusitano (que aqui podemos ver numa reprodução de um anúncio de 1912), em Lisboa a Capri, o Londres, o Monte Branco, o Monte Carlo. Mas ainda são visitáveis a Biarritz, a Suprema, o Luanda. Em Almada, onde o Carlos Cáceres Monteiro me levou para conhecer a namorada e apresentar a uma amiga momentaneamente solitária, não sobreviveu nenhum daqueles onde aguardavamos ansiosos. Em Castelo Branco, onde dei as primeiras aulas (1970/71) foi em vão que procurei, há tempos, os pontos de encontro com os alunos quase da minha idade. Se foi nestes cafés que a ideia de Europa foi construida (enigmática embora sugestiva metáfora), a sua estrutura material está hoje seriamente abalada. 

2 comentários:

Anónimo disse...

Locais deliciosos...com morte lenta...muitos deles ocupados por bancos- sempre o vil metal!-
Salazar chamava-lhes "lugares de ócio e dissolução”.
Já agora...sou apreciadora de café, mas detesto cherne!!!

J J disse...

Vivi alguns anos nos Cafés da Av de Roma, Praça de Londres e Alameda. Comprei o meu primeiro (e único!) livro de Anatomia no Café Luanda no início do ano lectivo de 1971/71 ao Zé Mário Rego.Depois fui conhecendo a "malta chique" do VÁVÁ e da Suprema, as liceais do Roma (hoje penso que Hamburguer house), os bilhares do Londres (o Jorge Theriaga, futuro campeão nacional, era meu colega e companhia nesse ano), as senhoras queques da Mexicana, os intelectuais da Copacabana (onde o João Lourenço bebia chávenas consecutivas de "café de saco"), os estudantes do Império. Tantas estórias...