domingo, 16 de novembro de 2008

"Regressava de novo à tua espera"

Se tivesse que morrer...

Se tivesse que morrer esta noite regressava
regressava de novo à tua espera à mesma rua
Talvez a mais deixasse aqui apenas
a folha de um recado meio esquecido
Regressava às horas desta tarde relendo devagar
de minuto a minuto o número da tua porta
onde chagaria como há pouco outra vez adiantado

Regressava ao salgueiro onde agora moras
Regressava enquanto a noite que me leve se afastasse
e não te dizia adeus - olhava a terra
as árvores de água profunda onde os rios nascem
ouvindo os pássaros e a brisa do crepúsculo
quando o crepúsculo os confunde num só ramo

Se tivesse que morrer esta noite regressava
navegando a coberto da morte por estas esquinas
que se aceram entre os meus passos e os teus dedos
no olhar amargo que rasguei para te ver
onde a carne do rosto quebra os últimos espelhos

Se tivesse que morrer esta noite regressava
junto de ti até ao fim por um momento
para te dizer que amanhã é outro dia
e que é sempre amanhã ainda onde te encontro

Miguel Serras Pereira, Trinta Embarcações para Regressar Devagar. Lisboa, Relógio d'Água, 1993.

A Lagoa é bela!

Parabéns à associação "Mar d'Água" pelo belo livro que lançou ontem à tarde na galeria Casa do Pelourinho, em Óbidos. 19 fotógrafos reuniram-se, sob o impulso da associação, para mostrar o que viram da Lagoa de Óbidos. O resultado, apesar da diversidade de autores, tem um fio condutor que privilegia a estética da natureza e das embarcações.
Apenas Margarida Araújo (foto abaixo) conduziu o seu programa de trabalho para fora deste registo, dando-nos a ver situações sociais.
De fora ficou, por opção própria dos fotógrafos ou dos organizadores, o imenso mar de problemas e ameaças que impendem sobre aquele frágil ecossistema.
A escolha de Óbidos para o lançamento da obra e exposição dos trabalhos foi acertada. A Casa do Pelourinho encheu-se para celebrar o acontecimento e confraternizar com os autores. Luis Costa Leal foi bem sucedido na exposição que fez da história do estudo científico das toxinas produzidas por bivalves.
O espírito cosmopolita que Ana Calçada tem sabido imprimir à programação das galerias municipais de Óbidos está a ter repercussões muito positivas na circulação cultural da região.

sábado, 15 de novembro de 2008

Elogio das cidades

Gostei de ouvir Carlos Magno na sessão de Viseu-Congrega de ontem de manhã. Trouxe a debate reflexões sobre a agenda mediática que julga desajustada do país e dos seus problemas (para quem acompanhe as suas intervenções nos dois programas em que participa na Antena Um, alguns dos seus juízos críticos não constituirão novidade). E propôs que a discussão da regionalização deixasse de vez o tema estafado dos distritos versus departamentos para se centrar nas cidades. Chamou em seu auxílio Florida e os seus 3 Ts (Talento, Tecnologia e Tolerância), a que acrescentou um 4º (T de Território).
Tem razão Carlos Magno. Distritos e somas de distritos são conceitos pensados para um país que com as autoestradas e a internet deixou de existir. As cidades são os protagonistas mais importantes das transformações dos territórios das últimas duas décadas. Sem um cuidadoso diagnóstico das dinâmicas urbanas, não há hoje planeamento social e económico regional consistente nem acção política eficaz. 
Esta linha de trabalho, que foi lançada nos finais da década de 80 por, entre outros, João Ferrão, em torno do conceito de "cidades médias" merece ser retomada e actualizada. E o contributo da "teoria" das cidades criativas não é evidentemente aqui impertinente.

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Aos que não cometem erros

Não direi que erro é a medida da reflexão, como queria Heidegger. Mas recordarei o que respondeu George Steiner quando o confrontaram com juizos errados que proferira no passado: “Os erros são as consequências das minhas paixões. Não as posso negociar”.

A caminho de Viseu

Ontem saí de Lisboa, pela Avenida Infante D. Henrique, já a noite caía sobre o rio. Comigo levava a memória viva do reencontro, à mistura com os sons e as cores do Chiado (agora que me tornei um cidadão da Baixa lisboeta). Hesitei entre rádio e cd e decidi-me pelo silêncio, que é um bom companheiro de viagem. Do meu lado direito, aquele enorme e inesperado disco branco parecia seguir o mesmo trajecto. Uma presença/evocação/inspiração feminina (diz-se que a lua deposita segredos nos dedos das mulheres) que só em Santarém se afastou, tomando, enfim, a altura habitual. Fazia frio, em Viseu.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Intolerance (II)

Que me perdoe o João Jales por voltar ao Intolerance, filme a propósito do qual abriu aqui uma polémica. Na Estação do Rossio (não, não estou a puxar pelas coincidências, mau grado o comentário sobre a lentidão dos combóios do Oeste hoje colocado também por JJ) há uma feira do livro (fundos editoriais). Adquiri aí algumas obras editadas pelo extinto Independente. Entre elas, umas Cartas do Brasil Seguidas de Os Verdes Anos da República de 1910, de Chianca de Garcia, cineasta português, realizador, entre outros filmes, de Aldeia da Roupa Branca. Numa crónica intitulada "Cinema", publicada inicialmente na edição de 31 de Maio de 1980 do Diário de Lisboa, Chianca conta os quiproquós que estão na origem da sua carreira no cinema.

Então, uma tarde, ao saír de um cinema onde acabara de ver o filme Intolerância de um americano chamado Griffith, e que o [o autor refere-se a si próprio na terceira pessoa] deixara boquiaberto, ouviu, nas suas costas, alguém que pronunciava em voz alta o seu nome: - Ó Chianca de Garcia, você também gosta de cinema?
Era José Leitão de Barros, espírito inquieto, homem das mais variadas iniciativas, pintor, jornalista, professor, e de quem Lisboa ainda por certo recorda um filme que ele iria dirigir uma década depois, A Severa.
- Você viu a Intolerância e não sente que o teatro, hoje, não passa de arqueologia?
E sorria com um riso quase mordaz: - Abra os olhos. Sonho, quem o tem é o cinema. A arte do nosso tempo, a arte do nosso século...
[...] Durante semanas ao encontrarem-se só falavam de cinema. O autor, por sua vez, e, embora espontaneamente, não saía mais das salas obscuras do cinema. Ainda a preto e branco. Ainda sem som. Mesmo assim, cada vez mais empolgado. Até que um dia disse-lhe Leitão de Barros: - Vou editar um semanário ilustrado a cores. Preciso de gente nova, e com ideias novas. Tenho gostado de ouvir as suas opiniões sobre os filmes que tem visto. Agrada-lhe, por acaso, a ideia de ser o meu crítico cinematográfico?
[...] E quando por fim, vários meses depois, saíu o primeiro número do novo jornal de Leitão de Barros, lá estava o meu artigo, que foi também o último. Isto porque eu, segundo ele, tinha indignado os meios cinematográficos ao afirmar que o cinema, enquanto não tivesse som e o dom da palavra, ainda não seria uma arte. Sim, fui despedido.

Numa entrevista de Manoel Oliveira a João Bénard da Costa (exposição de Serralves aqui referida em Setembro), o cineasta - que começou no mudo - recorda que os cineastas do mudo sublinhavam a expressão artística original do cinema precisamente pela razão inversa de Chianca: o cinema mudo não precisava do som, como o teatro ou a música. Talvez por isso, foram poucos os cineastas do mudo que fizeram carreira no sonoro. Griffith exemplifica-o: pouco trabalhou quando o sonoro se impôs.

Depois da ceifa

"Que só aos gatos"

Despedida

Junho chegara ao fim, a magoada
luz dos jacarandás, que me pousava
nos ombros, era agora o que tinha
para repartir contigo,
e um coração desmantelado
que só aos gatos servirá de abrigo.

Eugénio de Andrade, Os Dóceis Animais, Asa, Porto, 2004, p. 21

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Santa Cruz, Dili, Timor Leste

Foi aqui que começou, há 17 anos, o fim da ocupação indonésia de Timor Lorosae.
Fotos de Fevereiro de 2006 (JBS)
A primeira foto mostra um local de homenagem às vítimas do massacre. O homem que se encontra junto desta espécie de altar está a oferecer um maço de tabaco. Retirou os cigarros da embalagem e começou a dispô-los junto da fogueira.







terça-feira, 11 de novembro de 2008

De Lisboa às Caldas em 1817


Obra anónima constituida pelos diálogos entre dois doentes a caminho do hospital das Caldas em 1817. O autor glosa o tema da avareza e da cobiça, em tom jocoso. Particularmente interessante é o percurso dos viajantes. Vou tentar reconstitui-lo.
Partem de Lisboa pelo caminho de Loires. Avistam Santo António do Tojal. Passam pelos Moinhos da Agonia e pela Ermida de Santa Anna, onde fazem uma refeição. Seguem pela estrada da Cabeça (ou Cabeço) até à Estalagem da Cabeça, onde fazem outra refeição. Continuam pela Enchara, Mata da Guerra, até Runa (ou Ronha) onde pernoitam. No dia seguinte, vão pela Quinta das Lapas, Abrunheira, Quinta da Bogalheira, Casal de S. Gião, Casal dos Ferreiros até à Estalagem dos Fornos na Zambujeira, onde chegam já ao fim do dia e pernoitam. Ao terceiro dia, dirigem-se a Roliça, passam pela Columbeira, avistam Óbidos, entram na Igreja do Senhor da Pedra e fazem uma refeição nas imediações, antes de se deitarem ao caminho para a última légua deste demorado trajecto.
Ah, já me esquecia: os viajantes deslocaram-se em machos.

Efeitos sociais da crise

Com a imprensa portuguesa distraída com o caso BPN, transcrevo parte do texto publicado na edição de hoje do Le Monde:
Num contexto económico super pesado, agravado pela chegada dos primeiros frios, as associações de luta contra  a pobreza afirmam que começam a observar, no terreno, os primeiros efeitos da crise. O Socorro católico publicou, no dia 13, o seu relatório anual, intitulado este ano Famílias, infância e pobrezas. A associação, que ajudou 1,4 milhões de pessoas em 2007, põe em destaque a parte cada vez mais significativa de pessoas com mais de 50 anos nos centros de acolhimento. "Muitas famílias em situação de precariedade vêm procurar alimento e vestuário nos nossos centros para poderem pagar a renda de casa", refere um funcionário da instituição. A nota redigida pela Cruz Vermelha francesa não é muito diferente: "A situação continua a degradar-se. Os pobres estão cada vez mais pobres e outras camadas da população estão a ficar mais frágeis", explica Didier Pillard, director da acção social. "Há novos públicos a apresentarem-se, desde o princípio do ano, nos nossos 650 pontos de distribuição alimentar e nas nossas lojas alimentares especiais; os reformados são em número cada vez maior; mas também trabalhadores pobres a tempo completo, funcionários municipais e estudantes". A rádio local de Toulouse constatou uma subida de 100% da população que acorre à lojas alimentares especiais. Em Redon (Ille-et-Vilaine) aumentou 26% num mês. Sensíveis à crescente impotência das populações com que lidam, quatorze grandes associações de luta contra a pobreza, membros da rede Uniopss, tencionam tocar o sinal de alarme, a 28 de Novembro, junto dos poderes e da opinião pública. 

"Sombras inquietas que contra mim se amotinam"

Volto à casa e demoro-me nos quartos frios do silêncio.
Esconderam os retratos dentro dos livros. E os livros
nas gavetas. E fizeram as camas para sempre de lavado.

O que aqui me fustiga é o teu nome, rente aos lábios,
mas quase sempre por dizer; e as sombras inquietas que
contra mim se amotinam atrás de cada porta, desafiando
os calendários. Sou uma máscara recortada nos vidros e

regresso para visitar um teatro vazio depois das palmas.
Os cenários estão mortos e, junto ao palco, já nenhuma luz
ilude ou alucina. Só mesmo a memória do teu nome, soletrado
agora por uma outra voz, longe daqui, ou a imagem de uma mão

a despir-te de todos os mantos, devolvendo-te ao primeiro
frio de ternura - como a espuma da onda mordendo lentamente
na areia o corpo do amante que, ao fim da tarde, ferido
pelos punhais do abandono, veio para se entregar à praia.

Maria do Rosário Pedreira, A Casa e o Cheiro dos Livros, Gótica, Lisboa, 2002, p. 72

Mais "bicas" no Arquivo Distrital

Programa provisório das "bicas" 2008/2009 (sempre às 18 horas):
- 4 Dezembro 08 – sessão de abertura: Imprensa Regional, imprensa de proximidade
(João Bonifácio Serra, docente na ESAD.CR, Comissário Nacional para as Comemorações da República)
28 Janeiro 09 – A imprensa Regional no regime monárquico
(Alda Mourão e Catarina Sismeiro, docentes na ESEL)
25 Fevereiro 09 -  A Imprensa Regional na 1ª República
(Acácio Sousa, director do Arquivo Distrital de Leiria)
- 25 Março 09 – A Imprensa Regional no Estado Novo
(Miguel Ângelo Portela, Figueiró dos Vinhos)
- 29 Abril 09 – A Imprensa Regional Católica
(Sandra Duarte, investigadora)
- 3 Junho 09 – A Imprensa Regional no regime democrático
(Carlos Camponez, docente na FLUCoimbra)

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Os professores ganharam a rua. E agora?

Escrevi aqui, depois da manifestação de 8 de Março, que, perante uma ausência ou fraqueza geral dos instrumentos de mediação política, os ganhos na rua podiam não obter correspondente tradução institucional. Os professores fizeram prova concludente da sua mobilização contestatária há 10 meses. Que aconteceu desde então?
No passado sábado, ouvimos a Ministra da Educação afirmar que na instância negocial criada com os Sindicatos - a chamada Comissão Paritária - não tinham sido apresentadas situações que exigissem ponderação e alteração dos dispositivos da avaliação de desempenho. No domingo seguinte, ouvimos o dirigente sindical desmentir a Ministra, argumentando que tinha entregue um relatório a 14 de Outubro.
Espero ter ouvido mal. Um Sindicato entrega um documento crítico a 14 de Outubro e convoca uma manifestação para 3 semanas depois? A 14 de Outubro não estava já em cima da mesa a data de 8 de Novembro? Mais: a manifestação de 8 de Novembro foi agendada pelo Sindicato para responder à resposta dada pelo Ministério ao documento de 14 de Outubro, ou para garantir uma antecipação relativamente a uma outra manifestação de professores convocada por entidades não-sindicais para dia 15 de Novembro?
O que é hoje para mim evidente é que o Sindicato não soube assegurar nem conduzir o processo negocial sobre a avaliação.
Pode perguntar-se, legitimamente, se um Sindicato de Professores tem essa capacidade, ou seja, se a matéria implicada no tema da avaliação é de natureza sindical. A meu ver é uma matéria com incidência sindical, mas é duvidoso que seja predominantemente sindical, uma vez que respeita tanto ao estatuto e carreira docente, como à organização das escolas.
Mas mesmo que admitamos estar perante uma matéria fundamentalmente sindical, o que me parece é que o Sindicato dos Professores desenvolveu nos últimos 30 anos uma perspectiva de trabalho limitada aos temas estritamente sindicais: remunerações e regimes de trabalho e progressão dos professores. Durante estas três décadas, o Sindicato dos Professores conduziu a sua acção sindical na lógica da Frente Comum dos Sindicatos da Função Pública (e, de forma mais ampla, na da CGTP). Daí resultou um afunilamento da condição de professor, na visão e na prática sindical, na condição de funcionário público. 
E serão os professores funcionários públicos? A meu ver, a pergunta e o debate subsequente fazem sentido.
E fazem tanto sentido, que posso adivinhar no protesto dos professores um grito, porventura difuso, mas real, contra o que pode ser entendido como um processo de funcionalização da actividade docente! Assim sendo, a revolta dos professores dirige-se, em partes equivalentes, contra o Ministério e contra o Sindicato.
O Sindicato falhou como instância de mediação. E falhou porque os objectivos e estratégia a que se subordinou não lhe permitem intervir nos novos termos em que se equaciona hoje a condição de professor. O Sindicato não é interlocutor para a mudança e não protagonizou, dos anos 1980 até hoje, qualquer proposta inovadora sobre a organização e o quotidano escolar.
De modo que o desafio que está colocado aos professores e às escolas é como transformar a vitória da mobilização de rua em ganhos na escola - ganhos que permitam qualificar o trabalho docente e o papel da escola na sociedade.
Esse é um desafio bem complexo e exigente. Os professores teriam a vida mais facilitada, neste aspecto, se as relações com a tutela não estivessem inquinadas por um discurso tão "anti-professor", como aquele que é veiculado pelos próceres do Ministério da Educação. É preciso portanto descobrir, para professores e, sobretudo, para as escolas, interlocutores noutras áreas da sociedade e da vida institucional.

1º Centenário da Faianças Artísticas Bordalo Pinheiro Lda

A inauguração da Faianças Artísticas Bordalo Pinheiro L.da teve lugar a 5 de Novembro de 2008. Passou pois na passada Quarta-feira, o primeiro centenário desta empresa emblemática da cerâmica caldense.
Para situar a fundação desta nova manufactura é preciso recuar a Janeiro (23) de 1905, à data da morte de Rafael Bordalo Pinheiro. Manuel Gustavo Bordalo Pinheiro, filho de Rafael, tomou conta dos destinos da unidade que seu pai dirigira desde 1884, denominada Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha. A sucessão foi considerada natural. Manuel Gustavo há muito que colaborava com seu pai, nomeadamente na actividade gráfica. Sucedia porém que sobre a Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha impendia uma velha hipoteca, no valor de 18 contos, contraída em 1889 junto de uma Sociedade que mais tarde a cedera ao Banco de Portugal. Em finais de 1906, decidiu este banco executar a dívida. Em Fevereiro de 1907, é realizado o auto de penhora, sendo apreendido o prédio da Fábrica. Em seguida, procedeu-se à sua venda em hasta pública, o que só veio a ser concluido a 12 de Janeiro de 1908, na 3ª hasta. Adquiriu a Fábrica de Faianças um investidor originário de Reguengos de Monsaraz, Manuel Augusto Godinho Leal, sogro de um médico do Hospital Termal das Caldas, Manuel António Martins Pereira. Godinho Leal era já proprietário de uma extensa área confinante com os terrenos da Fábrica de Faianças. Entre o novo proprietário da Fábrica e o filho e a viuva (Elvira Bordalo Pinheiro) de Rafael estalou de imediato um diferendo litigioso. Em causa estava a posse dos modelos e moldes, utensílios diversos, objectos e louças, livros, desenhos, ou seja o recheio dos edifícios. Os Bordalo Pinheiro entendiam que a hipoteca só abrangia o imóvel, pertencendo-lhes todos os bens móveis da empresa. Com esta questão entregue à justiça, Manuel Gustavo, com o apoio da sua mãe, requereu, a 24 de Fevereiro de 1908, autorização para montar uma nova oficina de cerâmica numa propriedade denominada "San Rafael".  Esta propriedade, localizada nas imediações da Fábrica de Faianças, estava registada em nome de Helena Bordalo Pinheiro, também filha de Rafael. Manuel Gustavo dedicou a segunda metade do ano a organizar a nova unidade, a recrutar pessoal e a trabalhar em novos modelos. Para tal, contou com o apoio do Visconde de Sacavém, que colocou à sua disposição o Atelier Cerâmico que funcionava junto do seu palacete (hoje Museu de Cerâmica), distante, aliás, poucos metros de "San Rafael". A instalação concluiu-se em 5 de Novembro de 1908. A nova fábrica, ostentando na denominação o nome da família, Bordalo Pinheiro, foi durante muito tempo também conhecida por Fábrica "San Rafael".

Fotografia dos trabalhadores da Faianças Artísticas Bordalo Pinheiro, Lda. Manuel Gustavo está sentado, ao centro da primeira fila, atrás dos 3 aprendizes.

domingo, 9 de novembro de 2008

Esquinas de Álvaro Siza

1. Alvaro Siza (montagem efectuada para exposição realizada no Museu de Serralves (foto JBS)
2. Casa de Chá da Boa Nova, Leça da Palmeira, Matosinhos
3. Piscina de marés, Leça da Palmeira, Matosinhos
4. Edífício da Boavista, Porto
5. Bairro social em Haia, Holanda
6. Bairro social da Malagueira, Évora
7. Requalificação de S. Victor, Porto
8. Pavilhão de Portugal, Expo 98, Lisboa
9. Igreja de Santa Maria, Marco de Canavezes
10.Centro Galego de Arte Contemporânea, Santiago de Compostela
11.Serralves, Museu de Arte Contemporânea, Porto
12.Faculdade de Arquitectura do Porto
13.Reservatório de água, Universidade de Aveiro (foto JBS)














Mensagem de Mr. Joseph Louis A. Silva

Recebida ontem, no meu velho telemóvel, às 20 horas (TMG):
"Afinal não é só a Gazeta que te faz a corte, uma vez que também o Esprex e um tal Joseph Peter Chestnut te não perdoam".

Glossário:
Gazeta - Gazeta das Caldas, um periódico local muito popular e influente.
Esprex - Expresso, um periódico nacional igualmente muito popular e influente
Joseph Peter Chestnut - José Pedro Castanheira, jornalista do Expresso.
"te não perdoam" - referência a texto publicado no suplemento Actual da edição de ontem do Expresso sobre a exposição "José Relvas, o conspirador contemplativo".
Joseph Louis A. Silva - ver, neste mesmo blog, o post "Que las hay, la hay" e respectivos comentários.

sábado, 8 de novembro de 2008

O regresso da palavra

Obama restaurou a política como exercício da palavra. Há aqui um regresso ao espaço público enquanto espaço de vida colectiva, onde as regras essenciais assentam no princípio da persuasão. Neste sentido, Obama trouxe de volta as inovações oratórias dos anos 60: um discurso não é a leitura de um documento, mas um exercício de apresentação de um responsável político perante os seus concidadãos. Importa que os seus argumentos sejam o resultado de uma análise de situação sem temor de revelar o sentimento. O dirigente expõe-se quando expõe, não se esconde por detrás de um papel ou de um teleponto. Numa época em que o espaço público foi ocupado pelo espaço mediático e tende a confundir-se com ele, o exercício de Obama coloca de novo a política no seu território mais exaltante. O território onde a voz clara combina prosa e poesia, o nós com o eu, e o político convoca os cidadãos para lhes dizer olhos nos olhos o que sonha e quer.

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

"Que monstro devorou a nossa eternidade"?

"OS IDOS DE 60

em memória de meu irmão António (1952-1972)

Dizem que foi a década de todas
ou, enfim, das maiores
convulsões sociais e de costumes.

Cá no rectângulo pouco se notava
embora já houvesse televisão
e vanguardas literárias
a algumas mulheres tomassem já a pílula
e as primas mais velhas começassem
a usar mini-saia.

Era uma época diferente:
ensinava-se ainda a respeitar
a autoridade dos mais velhos
e a venerar a antiga trilogia
em que já menos gente acreditava.
Nas escolas havia grandes mapas
de Angola, Moçambique e das restantes
províncias ultramarinas
para mostrar que Portugal media
bem mais do que  a Europa.
Aprendíamos tudo: a ler, a fazer contas
e a decorar sem saber como
todas as dinastias e batalhas,
todos os rios com os seus afluentes
e todos os ramais de cada linhas férrea.
Mais tarde, pouco a pouco, percebíamos
que o Mundo era maior,
que era uma coisa estranha e fascinante
e em 68 ou em 69
era através de ti que eu descobria
os Beatles e os Stones;
as canções de Bob Dylan protestando
contra a eterna guerra do Vietname;
as barricadas de Paris;
a dietilamida do ácido lisérgico
que alguns tomavam, como se o infinito
fosse apenas questão de bioquímica;
os livros e os discos proibidos
que toda a gente ouvia;
o retrato do Che, obrigatório,
que também tu quiseste pôr no quarto;
e as emissões de Argel em ondas curtas
que nas noites de férias escutávamos
com o prazer dos gestos clandestinos
pla madrugada fora
no pátio dessa quinta onde não mais voltei.

Era depois da morte, meu irmão
- pobre revolucionário do Vává,
adolescente em fuga até ao fim,
rebelde e todavia inofensivo
como outros James Dean da Avenida de Roma
com quem ias colar alguns cartazes
nas eleições de 69
irrompendo nas motos a alta velocidade
em busca de razões para salvar o mundo
ou nisso procurando simplesmente
alguma adrenalina.

Era depois da morte, irmão mais velho,
anjo de puro fogo ou puro vento,
paradigma dos meus anos 60,
confiando talvez noutro futuro
que nunca conheceste e sempre me pareceu
um tanto folclórico, é verdade
- porque eu, que já não fui revolucionário,
me habituei depressa a contemplar
os logros dessa década afinal
com o seu quê de sinistro
embora hoje tenda a comover-me
com os mitos fundadores da tua juventude
graças ao teu sorriso
cuja luz nunca soube decifrar.

Passaram trinta anos, cresceu já
isso a que chamam outra geração:
este rectângulo é mais europeu,
tornámo-nos um pouco mais parecidos
com o resto do planeta, mas não sei
que monstro devorou a nossa eternidade,
que sombra ocupa agora o teu lugar
neste mundo mudado, neste mudo
aceno do milénio quando volto
a esta década infantil
só pra te perguntar trinta anos depois:
porque me abandonaste?"

Fernando Pinto do Amaral, Pena Suspensa, D. Quixote, 2004

Perguntar a si próprio o que pode fazer pelo seu país

"Haverá reveses e falsas partidas. Há muitos que não concordarão com todas as decisões ou políticas que eu tomar como Presidente. E sabemos que o Governo não consegue solucionar todos os problemas.
Mas serei sempre honesto convosco sobre os desafios que enfrentarmos. Ouvir-vos-ei, especialmente quando discordarmos. [...] Convoquemos então um novo espírito de patriotismo, de responsabilidade, em que cada um de nós resolve deitar as mãos à obra e trabalhar mais esforçadamente, cuidando não só de nós mas de todos."
Barack Obama, discurso de vitória, Chicago, 5 de Novembro de 2008.

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Bordalo em Óbidos

Passagem por Óbidos, onde Ana Calçada está a desenvolver um programa de exposições com diversas passagens pela cerâmica. Há um mês, Eduardo Constantino. No final de Novembro, Bordalo Pinheiro, a Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha. Oportunidade também para alguns artistas contemporâneos apresentarem propostas em confronto com o imaginario cerâmico bordaliano. Tudo isto num momento em que passam exactamente 100 anos sobre o início de laboração da Faianças Artísticas Bordalo Pinheiro, fundada por Manuel Gustavo Bordalo Pinheiro e Elvira Bordalo Pinheiro em 1908.

Manuel Gustavo Bordalo Pinheiro retratado por seu tio, Columbano.


Primeira República

Pequeno mas interessado auditório na Biblioteca-Museu República e Resistência da Câmara Municipal de Lisboa para ouvir falar, ontem ao fim da tarde, do funcionamento da nossa República, entre 1910 e 1926.  O sistema baseado na supremacia parlamentar revelou, logo nos seus primeiros quatro anos de vigência, tensões, bloqueios e quebras de legitimidade, de que não podem ser responsabilizados apenas factores externos e conjunturais. O facto de a Constituinte ter procedido, depois de aprovada a Constituição, à designação dos órgãos nela previstos, sem recurso a nova eleições teve consequencias preversas. Os primeiros governos constitucionais não resultaram de um parlamento formado atravás de eleições expressamente convocadas para esse efeito. Não foram responsabilizados por uma maioria nem por um presidente em consonância com ela. O único grupo parlamentar dotado de alguma consistência e disciplina era minoritário. Os governos dispuseram de apoios parlamentares variáveis, o mesmo é dizer que se viveu desde o princípio instabilidade governativa. Os partidos que se constituiram em 1912 e partilharam pastas governativas não tinham passado pelo crivo das urnas.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Terceira prova

Ao terceiro dia,  a prova era uma lição. Foi bom ter visto alguns alunos na sala. Afinal, dentro de poucos dias, completar-se-ão 38 anos sobre a minha primeira aula. Quantos estudantes, quantas escolas (do Liceu Nacional de Castelo Branco à Escola Preparatória Manuel da Maia, do Liceu Padre António Vieira ao Liceu D. Dinis, do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, do Instituto de Ciências Sociais à Universidade Lusófona, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas à Escola Superior de Artes e Design), quantas disciplinas e quantas lições! Outra coincidência: a arguente desta lição, a Professora Magda de Avelar Pinheiro, tinha partilhado comigo, por um ano, e num tempo que já dista 30 anos, a docência de cadeiras orientadas pela Professora Miriam Halpern Pereira, e recordou-o. 
Agradeço a todos os que me acompanharam e me fizeram chegar as suas palavras nestes dias. E, como não podia deixar de ser, dedico a lição de hoje à memória do César Oliveira, por cuja mão e estímulo dei muitos dos passos com que aqui cheguei.

Já chega de emoção e memória. Há mais trabalho esta tarde, aqui.

"Change has came to America"

E trouxe alguma esperança à "velha" Europa e ao "novo" Mundo.
Hoje, "Ich bin ein amerikaner!"

Canto o canto do tempo.

"Mas quando o tempo se desliga do tempo e se transforma em boca, grandes molares negros e garganta sem fundo, queda animal num estômago animal sempre vazio, engano com canções selvagens a sua fome. Face ao céu equipado para o nada, canto o canto do tempo. No dia seguinte, nada me fica destes gargarejos. E digo-me. A hora não é de canções, mas de balbuceios. Deixa-me contar as minhas palavras uma a uma. "
Octávio Paz, traduzido por Mário Cesariny.

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Carta ao futuro (I)

"E por não deixarmos sem juízo a controvérsia disputada entre as cousas novas e as velhas, certamente entre umas e outras não se pode dar regra certa. O tempo umas cousas melhora e outras corrompe: ouro velho, vinho velho, amigo velho; casa nova, navio novo, vestido novo. A velhice no ouro é preço, no vinho madureza, no amigo constância, no vestido pobreza, no navio e na casa perigo; absolutamente nas cousas que se consomem com o tempo, melhores são as novas.
[...] Todos dizem que os Antigos merecem maior louvor, e é assim; mas este louvor, se bem se considera, não é elogio da antiguidade, senão da novidade. Merecem maior louvor os Antigos, porque foram os primeiros inventores das cousas; logo da novidade é o louvor, pois o mereceram, quando as descobriram de novo."
Padre António Vieira, História do Futuro, vol I, cap. 11.

As mãos na água a cabeça no mar*

2º dia cumprido. Enquanto dou uma última revisão às matérias para amanhã, entro na fila para o voto global

*Título de um livro de Mário Cesariny.

Peixes que voaram

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Prestar contas

Pausa. 3 dias em avaliação.
Tendo sempre presente - porque "já não somos jovens" - a canção de Elis.

Uma imagem à procura ...


... da sua legenda.

domingo, 2 de novembro de 2008

Caldas-Leiria, final da década de 60

Um depoimento de João Jales, extraído do seu conto "Anna Karenina - 2", publicado no blog dos Antigos Alunos do Externato Ramalho Ortigão. Um belo texto de memórias, rico de informação e de interessantes observações. 

"[...] Leiria era muito diferente das Caldas. O ambiente era menos sofisticado, apesar da maior dimensão da capital de Distrito, o comércio menos atractivo, os espaços de convívio, como o parque e os cafés, menos animados, com menos gente nova e uma diminuta presença feminina. Uma aldeia grande, de abastados proprietários rurais, com vivências e costumes condicionados pelo bispo e a proximidade de Fátima.
Encontrávamo-nos habitualmente na Praça Rodrigues Lobo, já que o consultório do meu Pai se situava numa pequena transversal, a R. da Graça. Foi a existência desse consultório que motivou a instalação de duas lojas de óculos, que ainda hoje lá estão, uma na própria rua e outra na esquina. Logo a seguir havia o café Lereno, com uma esplanada sob as arcadas. Também continua no mesmo local, embora completamente remodelado e com outro nome. Nunca lá ficávamos muito tempo, a Teresa não queria ser ali vista comigo.
Atravessávamos a rua e íamos até ao parque, meia-dúzia de canteiros com duas ruas no meio e dois campos de ténis do outro lado do rio. Havia uns barcos para alugar e até alguns pescadores mas, em 1969, o Liz já estava muito poluído devido aos curtumes instalados a montante da cidade. Só mais tarde foram desactivados, mudando-se para a zona de Alcanena. Havia pouco que fazer naquele espaço, a “esplanada” existente por trás do edifício do Turismo era ao nível dos “tábuas” que eu costumava ver nas praias e tinha como clientes dois ou três idosos etilizados. O ténis estava habitualmente deserto, como confirmavam o Tó Zé Hipólito e o Jorge Pedro, habituados a jogar nas Caldas, onde os campos eram disputados e marcados com dias de antecedência; aqui bastava aparecer e jogar.
Os motivos de interesse em Leiria resumiam-se quase só ao castelo, que estava nessa época em muito mau estado de conservação, com pedras caídas e ervas por todo o lado. Depois de visitar um desolado salão e subir a duas muralhas, nada mais havia para ver. Tenho ideia de estar entregue ao exército, já que havia sempre soldados por todo o lado. Era um dos destinos dos nossos passeios.
As nossas conversas incidiam sobre as nossas leituras, éramos ambos leitores compulsivos, e sobre as músicas que ouvíamos … para ser mais exacto sobre música falava eu, já que a Teresa nem se atrevia a dizer o que ouvia e do que gostava, depois de ter sabido as minhas extremas e radicais opiniões sobre o que passava no Rádio Clube Português ou na Emissora Nacional em Onda Média. Só em FM se ouvia boa música mas, nessa altura, pouca gente tinha acesso à Frequência Modulada, à sua qualidade de emissão e melhores programas. Falávamos também das aulas, dos professores, dos colegas, dos estudos. Soube com espanto que o Liceu de Leiria não tinha turmas mistas, excepto nalgumas disciplinas do 6º e 7º Ano, que tinham muito poucos alunos. Soube, mais tarde, que só após o 25 de Abril esta prática foi abandonada, o que mostra o conservadorismo reinante na capital do distrito. A Teresa nem queria acreditar que num colégio “de padres”, como o Externato Ramalho Ortigão, eu nunca tinha conhecido turmas unisexo, enquanto ela, no Liceu, nunca tinha estado numa turma mista!
Nunca soube exactamente onde morava, ela fugia dessa área, com medo da família e dos vizinhos, passeávamos sempre na zona central, lanchando ocasionalmente na Pastelaria Soraya, com um ambiente bem diferente da Zaira apesar da presença de algumas senhoras, e onde rareavam, ou nem existiam, casais da nossa idade. Mas, diga-se em abono da verdade, nunca me pareceu sermos alvo de qualquer curiosidade ou coscuvilhice dos frequentadores, talvez o facto de sermos ambos desconhecidos naquele meio nos fizesse passar despercebidos. Só o velho empregado, fardado, parecia exibir delicadezas e cerimónias exageradas, mas éramos imunes a esse tipo de ironia, motivada pela nossa idade. Além da Soraya havia o Lísea, em frente ao Parque, frequentado pelos proprietários rurais e políticos locais, mas não era um local para gente nova. O Café Santiago, com restaurante em cima, era semelhante no conceito, mas ficava a milhas da qualidade do “nosso” Capristanos! Situava-se na zona do mercado, para onde a cidade se começava a expandir. Em frente havia o Colonial, com bilhares, mas nunca lá fui com a Teresa, as meninas não jogavam bilhar.
[...] Leiria não ajudava. Não me lembro de haver um museu em Leiria, o parque era minúsculo e pouco frequentado, a sua esplanada era parecida com as barracas do Levy existentes no Parque D. Carlos I, nos anos 40, e que eu só conheci em fotografias, claro. Os cafés eram soturnos, ver montras era um exercício entediante, havia um só cinema (inaugurado em 66; quando lá fiz a 4ª classe, em 64, só existia um barracão de madeira). Diziam-me os amigos que lá moravam que às oito horas a cidade morria, não se via vivalma. Nunca fui obviamente aos bailes do Ateneu nem do Ginásio de Leiria (onde residia então o já famoso Orfeão, uma excepção numa cidade culturalmente adormecida). Mas todos me garantiam que esses bailes não tinham a animação e a frequência do Lisbonense e do Casino. Muitos leirienses faziam uma hora de caminho para os frequentar nas décadas de cinquenta e sessenta. Como vinham também às compras à Góia , à Tertúlia, à Tália e ao Turita, por exemplo.A malta nova encontrava-se na sede da Mocidade Portuguesa, junto ao Hotel Liz, frente ao velho Hospital, do outro lado do rio. Muitos deles fardados, o que era, para mim, um espectáculo inusitado nessa época. Vi juntarem-se ali jovens do Liceu e da Escola, apesar da rivalidade que se dizia existir entre eles. Mas quando soube que se “insultavam” de “papo-secos” (Liceu) e “broas” (Escola), percebi que não era grave…"
A imagem reproduz um bilhete postal da época, com uma fotografia da cidade de Leiria tirada do castelo.

sábado, 1 de novembro de 2008

Guarda-Livros (V)

Como não podia deixar de ser, neste dia, e em especial para a Teresa Perdigão (as coisas são como que são!).

Doces terrores (para a Guidó, com humor... negro)

"É de manhã.
O rapazinho correu a atravessar a Avenida Madero. Passou através do perfume a incenso que vinha de muitas igrejas e do cheiro a carvão de milhares de almoços que se estavam a cozinhar na cidade. Envolviam-no pensamentos de morte. Nessa manhã, a cidade do México estava fria, com presságios de morte. Por toda a parte, havia sombras de igrejas e mulheres vestidas de preto e o fumo das velas e das brazeiras trazia-lhe às narinas um cheiro a morte. E o rapazinho não achava nada disto estranho, pois neste dia todos os pensamentos eram de morte.
Era El Dia de Muerte, o Dia de Finados.
Nessa data, até nos acantos mais remotos do país havia mulheres sentadas em frente de tabuleiros a vender caveiras de açúcar branco, cadáveres de açúcar candi para serem chupados e comidos. Em todas as igrejas se rezavam ofícios e em todos os cemitérios havia velas acesas. Bebia-se muito vinho e cantava-se em voz de falsete.
Raimundo corria, sentindo dentro de si o universo; todas as coisas que o tio Jorge lhe dissera, tudo aquilo que ele próprio contemplara com os seus olhos. Nesse dia garndes coisas deviam acontecer em lugares longínquos como Guanajuato e no lago Patzcuaro. Aqui mesmo, na grande praça de toiros da Cidade do México, estavam a esta hora os trabajandos a alisar a areia, enquanto se iam vendendo os bilhetes, e os toiros, com o nervosismo, urinavam continuamente, de olhos esbugalhados e fixos, escondidos nos curros, à espera da morte.
No cemitério de Guanajuato, os grandes portões de ferro encontravam-se abertos de par em par para que os turistas pudessem descer a sombria escada de caracol que entrava pela terra dentro e fossem passear nas catacumbas onde morriam os ecos, e contemplar as múmias rígidas como brinquedos, encostadas às paredes. Cento e dez múmias solidamente ligas à pedra com arames, de bocas escancaradas pelo horror e olhos encarquilhados. Corpos que rangiam quando alguém lhes tocava.
No lago Patzcuaro, na ilha de Janitzio, as grandes redes de pesca adejavam quais borboletas, para apanharem os peixes prateados. Toda a gente da ilha - dominada pela gigantesca estátua do Padre Morelo - começara já coma cerimónia de beber tequilha, dando assim início às celebrações do Dia de Finados.
Em Leñares, uma pquena vila, um camião atropelara um cachorro e nem sequer se dera ao trabalho de parar para ver o que fizera.
O próprio Cristo encontrava-se em todas as Igrejas agonizante e coberto de sangue.
E Raimundo corria, banhado pela luz de Novembro, Avenida Madero adiante.
Oh, que doces terrores! Nas montras alinhavam-se as caveiras com nomes escritos nas níveas frontes: José, Carlota, Ramona, Luisa! Tudo pintado com chocolate nas caveiras e ossos cristalizados.
O céu, lá no alto, era de esmalte azul e a relva lembrava uma chama verde, enquanto ele passava a correr diante das glorietas. Levava apertada na mão uma moeda de vinte centavos com que poderia comprar muitos doces, tais como pernas, queixadas, costelas pra chupar. Nesse dia era possível comer a Morte [...]."
Ray Bradbury, "Dia de Finados". Conto inserido na colectânea As Máquinas da Alegria. Trad. portuguesa, Livros do Brasil, s.d [1ª ed. americana 1949].