segunda-feira, 24 de outubro de 2011

À janela de "Soror Mariana"

Dona Brites insistiu, nestes últimos dias, para que saísse do quarto: julgando distrair-me, levou-me a passear até ao balcão de onde se avista Mértola. Segui-a, mas fui logo ferida por tão atroz lembrança que passei o resto do dia lavada em lágrimas. Trouxe-me outra vez para o meu quarto, atirei-me para cima da cama, e ali fiquei a reflectir na pouca esperança que tenho de vir um dia a curar-me. Tudo o que fazem para me confortar agrava o meu sofrimento, e nos próprios remédios encontro novas razões de aflição. Muitas vezes dali te vi passar com um ar que me deslumbrava; estava naquele balcão no dia fatal em que senti os primeiros sinais da minha desgraçada paixão. Pareceu-me que pretendias agradar-me, embora não me conhecesses; convenci-me de que me havias distinguido entre todas aquelas que estavam comigo, quando paravas imaginava que o fazias intencionalmente para que melhor te visse, e admirasse o garbo e a destreza com que dominavas o cavalo, dava comigo assustada, quando o levavas por sítios perigosos; enfim, interessava-me secretamente por todas as tuas acções, sentia já me não era de modo nenhum indiferente, e reclamava para mim tudo quanto fazias.

Cartas Portuguesas (Quarta). Edição organizada por Eugénio Andrade.
in Eugénio de Andrade, Poesia e Prosa, 2º vol, 4ª edição, O Jornal, 1990.

1 comentário:

Isabel X disse...

Muito curiosa esta experiência de imaginar no outro o reflexo do que sente quem se apaixona. Muito bem descrita aqui por Soror Mariana. Como se não pudesse ser de outra maneira. De tal modo ela está preenchida dele que o imagina igualmente interessado por ela:
"convenci-me de que me havias distinguido entre todas" "e reclamava para mim tudo quanto fazias".
Uma forma de egocentrismo? Ou (apenas) um sinal de paixão, uma característica própria desse estado?
- Isabel X -