terça-feira, 4 de outubro de 2011

Então esse leite-creme!

Povo marinheiro,
povo camponês,
um povo inteiro
à espera de vez.


   - Irene! Irene!
   Sirva o leite-creme!


Não sei para onde
fugiu a sardinha.
Teu peito que esconde,
ó Mariazinha?


   - Irene! Irene!
   Sirva o leite-creme!

Minha preguiceira,
ó santo aconchego!
Dormir como um prego
dorme na madeira...

   - Irene! Irene!
   Sirva o leite-creme!


Recessos da alma,
ressesos estão...
Só quem fala, fala!
Quem se cala, não...

   - Irene! Irene!
   Sirva o leite-creme!


Um, dois, três! Meu velho
mostra como é,
obriga o joelho
a dobrar a fé.

   - Irene! Irene!
   Sirva o leite-creme!


um deus -calçadeira,
portátil, de bolso,
ou a vida inteira
contra-reembolso?

   - Irene! Irene!
   Sirva o leite-creme!


Para abrir, carregue
onde lhe pareça.
Tome uma colher
e morra depressa.

   - Irene! Irene!
   Sirva o leite-creme!


Ó Zélia-só-corpo,
história de cordel,
a carne de porco
faz-te mal à pele

   - Irene! Ó Irene!
   Então esse leite-creme!

Alexandre O'Neill

"Zibaldone". In Poesias Completas, Lisboa, Assírio & Alvim, 2ª ed. 2001. p. 141-142.

1 comentário:

Isabel X disse...

Ninguém como Alexandre O'Neill para a ironia!
A ironia que tanta falta nos faz para nos dar a devida proporção de nós mesmos e dos outros.

Aqui é com todos nós, portugueses, que se mete, e bem.

Não sei porquê pensar nisto fez-me lembrar uma frase que um destes dias encontrei e que (sinto) me modificou:

"Os anjos voam porque não se levam a sério."

- Isabel X -