quarta-feira, 26 de outubro de 2011

À janela de Camilo

O meu amigo chegou á janella, e tossiu a tosse especial dos namorados de 1826, que era uma tosse secca, como a do ultimo periodo da tysica laryngéa. Hermenigilda acudiu ao reclamo catarrhoso, e viu risonha a cara do meu amigo Castro, que realmente era um perfeito homem. Retirou depressa os olhos, mas depressa obedeceu com elles ao magnetismo das olhadellas do visinho. Eu cá da minha alcova, por entre os farrapões das cortinas amarellas, estava presenceando o introito comico do acto mais solemne da vida dos povos, que era o casamento então, e hoje são as eleições.
O meu amigo não se despegava do peitoril da janella. A pequena ia e vinha; olhava-o, como a disfarce, lá do fundo da sala, e trazia sempre um terço do olho esquerdo compromettido.
Castro manifestava com o nariz o seu contentamento, empenhando-o na victoria. Assoando-se, trombeteava o som menos amoroso possivel. O nariz, considerado porta-voz do coração, ecco da poesia intima, interprete da linguagem muda da ternura, exerce a mais nobre das missões corporeas, e attinge um elevado grau de perfectibilidade nazal, depois do outro, mais elevado ainda, de espiraculo de defluxo, e absorvente de simonte.
Fui almoçar, e deixei o meu amigo na janella. Quando voltei, estava elle radioso de gloria. «Então?—disse-lhe eu—quantos graus acima de zero marca o thermometro da visinha?
—Está pegado o namoro. 
«Eu vi tudo. 
—Mas não viste o melhor. Offereci-lhe uma carta. Ella primeiro disse que não...
«Que não sabia lêr?
—Não, homem: disse que não acceitava. Instei, e, por fim, deu signal affirmativo com a cabeça, e fugiu da janella.
«Oh! é tocante essa fuga! o que faz o pudor! A virginal menina não pôde mostrar a fronte á luz do sol, depois d'uma fraqueza a que a paixão a compelliu! 
—Tu estás caçoando. 

Camilo Castelo Branco,  Cenas da Foz, Porto, Casa de Cruz Coutinho Editor, 1857.

1 comentário:

Isabel X disse...

Que pedaço de prosa mais bem apanhado! As expressões de ironia são tantas e dizem respeito a tantos assuntos, que nem sei qual destacar. Desde haver uma tosse própria dos namorados de 1826 (deve ser da Carta Constitucional...), até o ato mais solene ter deixado de ser o casamento para serem as eleleições, muitos são os exemplos que aqui podem ser encontrados. E tudo isto à janela, note-se!

É bom este humor. O próprio texto termina com um dos interlocutores dizendo que o outro está caçoando.

Uma ironia terna, longe do sarcasmo, como eu gosto.

Obrigada, João!

- Isabel X -