sábado, 26 de fevereiro de 2011

De viagem ao Minho, há cem anos. 3 - Até nas taboletas de certas tendas e comércios a reminiscência da emigração é evidente

A vila [Famalicão] é grande e chã de solo, com bastantes casas, como o povinho diz, de tratamento, algumas com vistosos jardins e quintas d'emparrado.
Na architectura das casas ricas mantem-se o typo de palação, cazarão de dois e três andares, que a bisonheria indigena repete desde Lisboa até ás fronteiras norte do paiz.
Toda a gente o tem visto entre as arvores das modernas quintas minhotas, na bandada das ruas ricas de Vianna, Braga e Guimarães. É geralmente um cubo d'alvenaria, macissa, cercado de platibandas de loiça ou d'alguma goteira de zinco que á altura das beiras, monopolisa afectuosamente as aguas pluviaes. Na fachada, ao nivel do primeiro andar, a varanda corrida, larga e com bolas de vidro vermelho e azul, dá a impressão d'uma boca a rir com dentes verdes.
Logo no andar superior e fachadas lateraes, janelas de guilhotina, em fiadas idênticas, testificam o espirito forreta que faz o giro da peça aproveitando os cantos recônditos, e fazendo da symetria geométrica uma espécie d'esthetica popular.
Ao alto, como uma cúpula d'esta jaula de simios, todavia alegre e acolhedora, a clara-boia de vidros amarelos e azues tem no cocurúto um galo ou caçador de zinco, em catavento; quando a não sobrepuja o mastro pára-raios, substituto da poética palma benta que nossas avós cruzavam na janela em tardes de trovões. São em geral pintadas de branco as paredes e portas de janellas, e estas com baguetas e cantos de talha dourada, que é por onde o brazileiro refrange o reflexo metálico dos seus contos; e sobre as trapeiras da casa, o terraço de parreiral com butacas de verga, completa este typo de cómodo ricaço, d'onde uma escada de pedra vem ao quinteiro ou pateo térreo, mui fofo de mato curtido e bosta de boi, onde sobre montitos de pedra arma em sarcófago o espigueiro das maçarocas, e a cortelha dos bácoros pega co'as janelas da cosinha, e mais longe debicam pombos e galinhas por baixo de japoneiras da altura de três homens, em pleno inverno carregadas de milhares de flores maravilhosas.
Nas obras das igrejas, do hospital e escolas publicas, como na construção de todas essas grandes casas moradias, fala a influencia do brazileiro que filantropisou a riqueza desentranhando-a em donativos á terra que o viu partir colono humilde com o saco da roupa e o canudo do passaporte a tiracolo. Em placas votivas e legendas, a cada momento se lê que tal sino, tal relógio, tal escola, tal enfermaria ou tal capela, foram comprados e erguidos pelo generoso donativo de Fulano e Sicrano, negociantes em Pernambuco e no Pará. Até nas taboletas de certas tendas e comércios a reminiscência da emigração é evidente.
O cemitério, como quazi todos os de terra minhota, não tem nada de fúnebre. Grades de ferro, enroscadas de trepadeiras; portas a dentro, sepulturas de flores, contornadas de buxo e herva cheirosa, com a cabeceira d'ardozia pintada a óleo, representando cenotafios, urnas, pilares - outros jazigos mais ricos, de cantaria, em capelitas e cryptas encimadas de lapides e cruzeiros - a igreja ao fundo; logo, a um e outro lado, meandros minúsculos de jardim, que sombream vistas, ailantos, acaccias de bola e não poucas japoneiras de verde admirável. A alameda ou rua central, da porta d'entrada até á capela do fundo, é a mais povoada e de jazigos melhores; e de roda os pássaros, com a ausência de cyprestes, perderam o medo dos mortos, e é com alegria que cantam e saltam pelas ramas, tirando aos caminheiros, mesmo de noite, o coração constrangido, o vágado subterrâneo com que por outros sitios se passa á beira d'algum d'esses terríveis podrideiros.


Fialho de Almeida, Estâncias de Arte e de Saudade. Lisboa, Livraria Clássica, 1924. p. 78-80.

Nota: nesta transcrição foi respeitado o Acordo Ortográfico de 1911.

1 comentário:

Cláudia disse...

Este óleo que esparrama,
como rama, solda os gomos das construções, são ações...
Ações de pensamentos, pelas frinchas e frestas,
escorrem e derramam em alicerces.
Construções, condolentes.