quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Sonho onde que nos sonharam todos no sonho de cada qual

Quando, às vezes, ponho diante de meus olhos aos grandes errores e tribulações, aos muitos sofrimentos que por nós passaram e vejo a figura de tantas vidas, e não menos mortes, no livro da nossa luta, pergunto sabe: vivem, nossos mortos, se vivos os vejo em meus sonhos?
E se duvido mais, sendo eu mesmo ex-guerrilheiro Kene Vua, é porque essa nota luta de libertação estava assim como um sonho - sonho onde que nos sonharam todos no sonho de cada qual. Sonho nosso era de uma onça ferida, perseguindo teimosamente seu trilho de muitos séculos, por matas e morros demarcados a sangue e luta. Uma onça orgulhosa de sue território, suas jimbumbas de caça; e nós, barrigas nuas e vazias, simples pintas só de sua pele mosqueada.
Por isso sempre os xinguilamos jovens, a nossos mortos.
Jovem , meu avô Kinhoca Nzaji, o bravo dos pés descalços, malha de pata de onça em movimento, com sua cropoxé derrotada mas nunca vencida, mancumunando por pedras e vales com o bravo Kazuangongo - os que escolheram tomar armas contra o mar de injustiças e, ferro-com-ferro, acabar com elas.
Jovem, meu pai, o prudente dos pés calçados, pequena malha em cabeça de onça, armado de sua 3ª classe condiscípula de Agostinho Neto, para toda a vida o escutador da palavra clara do Manguxi, que ele traduzia assim: "Sei pouco, muito pouco; porém desconfio muito..." - e, quieto, vestiu sua dignidade de sofrer as porradas de pau e pedras, as chicotadas de um destino injusto, resistindo sempre.
E eu?

José Luandino Vieira, O Livro dos Guerrilheiros de Rios Velhos e Guerrilheiros II. Narrativas. Lisboa, Caminho, 2009. p. 97-98.

1 comentário:

Paulo G. Trilho Prudêncio disse...

Viva João Serra.

Mas que coisa mais bonita.

Obrigado.

Abraço.