domingo, 25 de outubro de 2009

Como esta madrugada trouxe mais uma hora

Comecei a ler Caim, livro dedicado "A Pilar, como se dissesse água":

Quando o senhor, também conhecido como deus, se apercebeu de que adão e eva, perfeitos em tudo o que apresentavam à vista, não lhes saía uma palavra da boca nem emitiam ao menos um simples som primário que fosse, teve de ficar irritado consigo mesmo, uma vez que não havia mais ninguém no jardim do éden a quem pudesse responsabilizar pela gravíssima falta, quando os outros animais, produtos, todos eles, tal como os dois humanos, do faça-se divino, uns por meio de rugidos e mugidos, outros por roncos, chilreios, assobios e cacarejos, desfrutavam já de voz própria. Num acesso de ira, surpreendente em quem tudo poderia ter solucionado com outro rápido fiat, correu para o casal e, um após outro, sem contemplações, sem meias medidas, enfiou-lhe a língua pela garganta abaixo. Dos escritos em que, ao longo dos tempos, vieram sendo consignados um pouco ao acaso os acontecimentos destas remotas épocas, quer de possível certificação canónica futura ou fruto de imaginações apócrifas e irremediavelmente heréticas, não se aclara a dúvida sobre que língua terá sido aquela, se o músculo flexível e húmido que se mexe e remexe na cavidade bucal e às vezes fora dela, ou a fala, também chamada idioma, de que o senhor lamentavelmente se havia esquecido e que ignoramos qual fosse, uma vez que dela não ficou o menor vestígio, nem ao menos um coração gravado na casca de uma árvore com uma legenda sentimental, qualquer do género amo-te, eva.

José Saramago, Caim. Lisboa, Caminho, 2009. p.11-12.


6 comentários:

Isabel X disse...

Um crente, Saramago, sem dúvida!

Herético, claro, não há outro modo de se ser crente... Só ele mesmo, porque a si mesmo é sempre dificil alguém "ver-se", para continuar a afirmar-se ateu.

Ou melhor, concedo que o seja, ateu, já que o diz com tanta veemência! Porque o ateísmo é uma crença: crê-se que Deus não existe. Tal como o teísmo é outra crença: crê-se que Deus existe.

O agnóstico é que ainda não tomou posição, mas lá chegará...

Como disse António Lobo Antunes numa entrevista na TV, a propósito deste tema, "na toca do lobo ninguém é ateu!"

Eu, que venho lendo Espinoza, Heidegger, Sampaio Bruno, Teixeira de Pascoaes, etc., desde há muitos anos, (e a Bíblia, claro... Livro dos Livros, Grandiosa, Sagrada), digo:

Quem existe somos nós, não Deus. Deus é uma essência, da qual nós participamos, existindo. Somos a existência de um Deus essencial.

E se Deus teima em esconder-se de nós, nós temos que teimar em encontrá-lo, obrigá-lo a existir, a ser, nem que seja como faz Saramago, provocando-o desta maneira atroz, brutal...

Job também se revoltou contra Deus!

A cada um a sua heresia!

- Isabel X -

Paulo G. Trilho Prudêncio disse...

Viva João Serra.

Escolha muito interessante.

O comentário da Isabel X é, também e como sempre, muito interessante.

Quer parecer-me que Saramago procura sempre alguma vanguarda, se pensarmos que, e como alguém muito autorizado disse, o que é mesmo revolucionário é a leitura literal dos textos e não a hermenêutica. A interpretação é que é politicamente correcta, digamos assim.

De um ateu convicto :)

Abraço.

Anónimo disse...

Felicito Isabel Xavier pela quase globalidade do seu comentário mas principalmente pelo sétimo parágrafo do mesmo.Acredito em Deus!Há décadas que leio alguns livros de Saramago!Adorei os que li.Não estou especialmente motivada para CAIN.
RP

Isabel X disse...

Agradeço as palavras sobre o meu comentário, tanto as do Paulo, "ateu convicto", como as de RP que diz: "Acredito em Deus!"
Nem de propósito, depois do que eu defendi!

Só quero acrescentar que Margueritte Duras, um dia, numa entrevista, à pergunta: "Acredita em Deus?", respondeu:
"Não. Mas acredito em quem acredita!"
- Isabel X -

Anónimo disse...

Como sou Farmacêutico de formação, acredito mesmo que a angústia e a necessidade de crença, ainda não foi totalmente encontrada na mediação química e na condução eléctrica....lá chegaremos!

E, nessa altura ..... talvez tenhamos "Qual Admirável Mundo Novo".... a química e a estimulação eléctrica da redenção.... sem remorsos....sem culpa....não ainda imortáis.... mas seguramente imoráis....

Cidades Novas?...diga-nos Professor João Serra!

Um Abraço, do Oriente...

PSimões

Isabel X disse...

Acredito que sim, que somos mera química. Acredito até que a crença e a descrença venha inscrita no código genético de cada um de nós.

E depois? O que é que isso traz de novo sobre o que cada um de nós é? Uma linguagem nova sobre o que sempre se procurou descobrir, em todas as épocas, sobre a natureza humana?
- Isabel X -