quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Já não produzimos ruínas

Os escombros acumulados pela história recente e as ruínas surgidas do passado não são equivalentes. Há um fosso entre o tempo histórico da destruição ditada pela loucura da história (as ruas de Kabul ou de Beirute) e o tempo puro, o “tempo em ruínas”, as ruínas do tempo que perdeu a história ou que a história perdeu.
A história desencoraja sempre que a sua gaguez a priva de sentido. A loucura da história é uma loucura de repetição. Os horrores repetem-se. Os progressos da tecnologia amplificam os seus efeitos. A primeira guerra mundial viu o massacre de milhares de jovens que não ousamos dizer que morreram para nada, a não ser para criar condições de um novo massacre vinte anos mais tarde. O terror e o horror absolutos forma atingidos com a segunda guerra mundial, os campos da morte e as armas de destruição maciça. Hoje, os cemitérios da Normandia e a linha Maginot tornaram-se locais turísticos. Ao vermos os massacres e destruições concentrarem-se no terceiro mundo, dir-se-á que a nova ordem mundial, global, não passa de uma figura recorrente à escala planetária.
Alguns optimistas pensam, no entanto, que o futuro está ainda por construir e que a história do mundo como tal, do mundo efectivamente planetário, mal começou. O paradoxo é que começa no momento em que aqueles que são os seus senhores nos querem fazer crer que essa história está acabada.
Se o novo mundo está por construir, isso não deve ser tomado como uma metáfora.
O urbanismo e a arquitectura sempre falaram de poder e de política. As suas formas actuais, a multiplicação de espaços de miséria, de campos de concentração, de sub-produtos do urbanismo selvagem sob as volutas reluzentes das auto-estradas, dos locais de consumo, das viagens e dos quarteirões de negócios, das singularidades e das imagens nascidas da encenação do mundo como espectáculo, mostram bem a cínica franquia da história humana. São as nossas sociedades que temos sob o nosso olhar, sem máscara, sem disfarce. Quem quiser saber o que o futuro nos reserva não deve perder de vista os territórios à espera de construção, os espaços vazios, os escombros e os estaleiros.
O que nos atrai no espectáculo das ruínas, até quando a erudição pretende fazê-las contar a história, ou quando o artifício de uma encenação de som e luz as transforma em espectáculo, é a sua aptidão para proporcionar o sentir do tempo sem resumir a história nem a encerrar na ilusão do saber ou da beleza, para tomar a forma de uma obra de arte, duma lembrança sem passado. A história que aí vem já não produzirá ruínas. Não terá tempo. Debaixo dos escombros nascidos dos confrontos que não deixará de originar, abrir-se-ão novos estaleiros, e com eles, quem sabe, uma oportunidade de erguer outra coisa, de reencontrar o sentido do tempo, e no fim, talvez, a consciência da história.


Marc Augé,
Le Temps em Ruines. Paris, Galilée, 2003. p. 131-133.

3 comentários:

João Ramos Franco disse...

Caro João Serra
"a consciência da história" Depois de ler todo texto, a minha sensibilidade é tal, que me leva a fazer uma pergunta, como se consegue viver sem consciência da história?
Um abraço
João Ramos Franco

Pedro Ribeiro disse...

"As nuvens, engendradas e transportadas por uma infinitidade de correntes, têm vontades imperscrutáveis. Agitam-se e tropeçam pelo ar e modificam-se ligeiramente a cada momento. Nós somos assim. Tal como aconteceu tantas vezes na história da ciência, a ideia fixa da ordem determinista demonstrou ser uma miragem. Estamos tão misteriosamente livres como sempre estivemos." Jonah Lehrer, Proust era um neurocientista-pág 70.

Um abraço
Pedro

Anónimo disse...

Boa Noite Professor João Serra:

"A história que aí vem já não produzirá ruínas. Não terá tempo."

Depois de ter lido o excerto do Livro que nos deu a conhecer.....fiquei receoso!
Porque tenho a ideia que algumas monstruosidades arquitectónicas e urbanísticas que por aí pululam, seriam condenadas ao camartelo sem piedade....podem ser porventura... preservadas em nome " de reencontrar o sentido do tempo, e no fim, talvez, a consciência da história "

Bah!

Fotografem, Escrevam, Guardem os Documentos e por favor destruam...."os Mamarrachos que nos Envergonham"... (e condicionam)

Um Abraço

PSimões