segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Sentir o universo como uma magnólia, uma rosa ou um jasmim

[...] Anna de Noailles é hoje a maior tecedeira do lirismo francês. [...] Dir-se-ia que o livro precedente se desfez e foi necessário voltar a tecê-lo. Ana de Noailles é, literariamente, Penélope.
O último volume chama-se As forças eternas. [...] São quatrocentas páginas de poesia minuciosa. Chega até nós um livro repleto de flores, de astros, de abelhas, de nuvens, andorinhas e gazelas.
[...] A alma que nesta poesia se expressa não é espiritual: é, pelo contrário, a alma de um corpo que se diria vegetal.
Se tentarmos imaginar a alma de uma planta, não lhe poderemos atribuir ideias nem sentimentos: não haverá nela mais do que sensações, e mesmo estas, vagas, difusas, atmosféricas. A planta sentir-se-á bem sob um céu benigno, sob a mão branda de um vento suave; sentir-se-á mal debaixo de um temporal, açoitada pela neve inverniça. A voluptuosidade feminina é, talvez, de todas as impressões humanas, a que nos parece mais próxima da existência botânica.
Anna de Noailles sente o universo como uma magnólia, uma rosa ou um jasmim. Daí a sua prodigiosa sensibilidade para as mudanças atmosféricas, climas, estações. Não obstante a sua insistência amorosa, é revelador que o homem não apareça nunca desenhado no fundo aéreo desta poesia. Em contrapartida, intervêm os seres anónimos e difusos: o vento, a humanidade, o azul, o silêncio.
Le flot léger de l'air vient par ondes dansantes...
Não caberá esta ideia perfeitamente no coração de uma papoila?
E, noutro lugar:
Le vents légers ont ce matin
Cette odeur d'onde et de loitain
Qu'ont les vagues contre les rives.
De outra vez, fala do "secreto odor metálico do frio" e do "jovial odor da neve", ou reconhece no vento os aromas de que se foi carregando durante a sua viagem, como no vinho se sente o sabor do odre. Odores, sabores, contactos - são estas as suas paisagens. O enquadramento visual falta quase sempre: seria demasiado humano, demasiado "espiritual" para este génio vegetativo. É divinamente cega como uma camélia.
Uma vez classificada como planta sublime, não nos estranha que seja "rebelde ao Outono" e lhe dedique uma sincera afronta:
Je ne vous aime pas, saison mélancolique...
Trata-se de uma condessa eminentemente estival. Nas suas paisagens, tudo é Verão; ou, pelo menos, um Estio que se recorda da sua Primavera infantil ou assoma à vertente declinante do seu Outono. Nesta poesia não há Inverno. O que nela mais abunda é o céu resplandescente. Imaginamos a condessa com um gesto vago de crioula, sentada à varanda, sobre um jardim, bebedora de azul.
Certes, rien ne me plaît que tes étés, ô monde!
Magnólia, rosa, jasmim, delicia-se com a terra húmida, saboreia as brisas e estremece quando passa no canal, tremente, a água andarilha [...]

Ortega y Gasset, Estudos sobre o Amor. Lisboa, Relógio d'Água, 2002. p. 111-114

4 comentários:

Anónimo disse...

Mas a alma é o corpo, não sabiam? O que eu não sabia era nada sobre Anna de Noailles, belíssima descoberta!
- Isabel X -

Anónimo disse...

A alma é o corpo? - não sabia. Sou toda ouvidos para essa explicação "escatológica". Quanto à "belíssima descoberta", é capaz de ter errado o alvo: em vez da Anna de Noailles, tente antes o Ortega y Gasset.
MT

João Ramos Franco disse...

Não sei se algum de vós teve a sorte de estar só a olhar uma planície Africana em que a linha do horizonte é uma floresta, (eu estive e senti). È difícil descrever o que sentimos, a imensidão, a beleza, a nossa sensação de liberdade no espaço envolvente tem uma grandeza tal, que duvidamos da realidade que temos presente e nos apetece gritar para nos ouvir-mos, ter-mos a certeza de que o vemos não é um sonho. Tudo o que o João Serra me coloca aqui presente tem um sentido do déja vu, nas palavras de Anna de Noailles…
João Ramos Franco

Anónimo disse...

Claro que conheço Ortega y Gasset! Até o primeiro-ministro o conhece! O importante aqui é ele reconhecer Anna de Noailles!
-Isabel X -