quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Sã Miguel (I): Vitorino


Oh Ilha de Sã Miguel, cotada nos livros dos ingleses
Que o alfarrabista (sebo em brasileiro) paga a conto de réis
E eu compro às vezes - sobretudo depois que o Gonçalves Rodrigues me mandou de Londres os dois volumes dos Buller:

Ilha assim anóbia e brochadamente célebre,
Pelos geysers, pelas lombas, por Antero de Quental:
Eu te... quê? Saúdo ou amo? Adopto ou fujo?
Depende.
Tenho as minhas razões para te ser grato e firme,
Por uma coisa siquer
Que me não deixe de te ir-me
É um nada de mulher:
Fala de samiguel, gravidade corisca,
Um não sei quê de bravio e "peloê" nas ventanilhas,
Disfarçado depois com alguma laca e cré:
Ilha que a verde e ocre se faz nos rolões enevoados,
No Espírito Santo abutroque e na cana verde do Senhor Santo Cristo, da fé,
Na Cordilheira Atlântica como um violoncelo em seu estojo (Oh vagalhões arcadas!),
Mas também imitante a um lobo do mar em sua câmara fojo:
Pelo mais - cheia de Medeiros, de Pachecos, de Bicudos, de Raposos,
Exportadora de criptoméria
E mãe da mulher séria que tirou a Santo Agostinho e a Rousseau
O exclusivo de dizer que se enganou
Na arte da vida.
E essa mulher pequenina tem nome de flor corrente,
Inflorescência cor-de-rosa:
Mas eu não quero ser escarnecido por gente
Caçadora de escândalo venusino,
E por isso lhe chamo flor de sândalo fino: mas o seu nome de vida,
Mal a agrida quem quiser,
Que eu não digo,
O amargurado, o malgridado nome dessa mulher,
Em Crotona e Antioquia santa de altar:
Para mim, mãe da minha última poesia
E do saber da dor e do mais que eu não sabia.
Vai-te deitar Malagrida (suponhamos),
Vai-te deitar!
Que eu lá vou ter, com a espada de Floripes a meio,
Não porque falte a outra,
Mas porque agora dormimos como irmãos
No berço da cama de holandilha,
Rezando juntos e ouvindo chover na Ilha,
Té alta madrugada.
"Te Deum laudamus" por esta castidade incrível,
Com lâmpada ao Senhor da Esponja com púrpura a sangue e fel.
É preciso que o saibas, Ilha de Sã Miguel!

Vitorino Nemésio,Caderno de Caligraphia e outros poemas a Marga. Obras Completas, vol. III. Lisboa. Imprensa Nacional, 2003. p188-189

5 comentários:

Anónimo disse...

Bem... isto merece muito mais do que um simples comentário: ler Nemésio e visitar "Sã Miguel"!
- Isabel X -

Anónimo disse...

Em Sã Miguel, seu sortudo! E a reencontrar memórias da "Cadela Pura"?
MT

Anónimo disse...

Belíssimo e intenso, este poema de Vitorino Nemésio.

"A Esfinge do mar é a ilha"- Vitorino Nemésio

Anónimo disse...

Na rua de Lisboa,
a partir da rotunda do Mónaco,
entre velhas fábricas,
a calçada sempre chovida de cerveja,
e os homens sempre com pressa,
leva-nos às portas da cidade,
pintadas de manuelino e de azurro,
eis Ponta a Delgada,
antecâmara de outros percursos,
com o da Lagoa de Prata,
tão irlandesa e tão mítica....

João Ramos Franco disse...

Nas palavras de Isabel X, “isto merece muito mais do que um simples comentário”, se ela permite eu utilizo-as também, apesar de ter tido a sorte de me ter cruzado com Vitorino Nemésio, junto com o Luiz Pacheco na separata de Letras do Diário Popular.
João Ramos Franco
Deixo no entanto este texto resultante de uma pesquisa e que nos fala de Mateus Queimado.

Muito mudou neste cenário. Por sinal, afastando-se exactamente do paradigma criticado por Nemésio. Hoje, rodeá-lo-ia um ambiente muito mais propício, interessado em ouvi-lo e em dialogar com ele. Teria muito mais acesso a livros que debatem questões científicas, em linguagem inteligente e directa como a dele. Teria assim muito mais aonde ir beber e aprender, com o seu espírito omnívoro, para depois vir, à sua maneira e estilo inconfundíveis, em crónicas, ensaios, palestras radiofónicas ou charlas da televisão, dizer-nos o que pensava e o que o preocupava de tudo isso.
E quedo-me por aqui, a ver se bem me lembro do exemplo deste sábio Mateus Queimado.
Onésimo Teotónio Almeida, em Vitorino Nemésio. Vinte Anos Depois – Actas do Colóquio Internacional, Ponta Delgada – Lisboa, Edições Cosmos, 1998, pp. 535-541.