sábado, 24 de janeiro de 2009

Mário Soares na Foz do Arelho (2)

SEntre os episódios evocados por Mário Soares na Foz do Arelho, registo o da intervenção do Cardeal Agostino Casaroli, em 1984/1985, no apaziguamento das suas relações crispadas com o cardeal Patriarca de Lisboa, D. António Ribeiro.
Na altura, Soares chefiava o IX Governo Constitucional, uma coligação PS-PSD, formado a 9 de Junho de 1983. As tensões com a Igreja podem ser assinaladas em Outubro desse ano, quando D. António Ribeiro fala de “corrupção moral” a propósito dos projectos de legislação sobre o aborto e os campos de nudismo. De facto o Partido Socialista decidira no seu Congresso realizado a 2 de Outubro, contra a vontade de Mário Soares, apresentar uma iniciativa legislativa sobre o aborto. A 6 de Janeiro de 1984, uma pastoral dos bispos classificava tal legislação, a ser posta em vigor, de “iníqua”. A 22, o Cardeal de Lisboa apelou mesmo a uma sanção eleitoral aos partidos que a votassem.
Foi neste ambiente que o Parlamento votou, a 27 de Janeiro, a despenalização do aborto, com os votos favoráveis do PS, PCP, MDP, UEDS, ASDI, Verdes e um deputado do PSD, e contra do PSD, CDS e um deputado do PS. A coligação do governo tremeu. Mota Pinto, líder do PSD e n.º 2 do Governo, afirmou que o PS “não respeitou o espírito da coligação”.
O Presidente, Ramalho Eanes, enviou a lei para Tribunal Constitucional a 27 de Fevereiro. Foi esta aberta que Mário Soares aproveitou para o contra-ataque. Telefonou ao Cardeal Casaroli, que conhecera em 1974, por sugestão de Willy Brandt, no contexto da descolonização, e solicitou-lhe uma audiência com o Papa, João Paulo II. Esta efectivou-se a 4 de Março, permitindo a Mário Soares declarar à saída da audiência que “as relações entre Portugal e a Santa Sé são excelentes”. Baldada fora a tentativa de D. António Ribeiro e do Bispo de Aveiro que tinham partido para Roma dias antes a tentar anular a audiência.
Refira-se que o Tribunal Constitucional deu parecer favorável a 15 de Março e a Lei foi promulgada.
Tempos depois, foi a vez de Casaroli combinar com Soares uma vinda a Portugal, ocasião para um jantar em S. Bento. Deve tratar-se de uma visita efectuada em Março de 1985, registada num documento da Sé de Braga, onde o Cardeal esteve a 23.
Casaroli recomendou a Soares que não deixasse de convidar D. António Ribeiro. As relações entre ambos tinham esfriado totalmente desde o ano anterior. Soares duvidou mesmo que ele comparecesse, mas Casaroli retorquiu: "Deixe isso comigo".
No final do jantar, Casaroli dirigiu-se com o Cardeal de Lisboa, que evidentemente aceitara o convite, junto do Primeiro Ministro, pegou nas mãos de ambos, colocou a do primeiro sobre a do segundo e sentenciou: "Estão feitas as pazes".

2 comentários:

João Ramos Franco disse...

Já há muitos anos os valores que éramos obrigados a estudar, como disciplina de Religião e Moral, no tempo da ditadura tinham tido o seu fim. No entanto se olharmos bem a realidade do nosso País, a separação só se deu na Constituição.
João Ramos Franco

Anónimo disse...

Magnífica história! Ainda bem que Mário Soares a contou e o João Serra a registou. Li no dia seguinte à conferência os relatos da imprensa e ninguém contou esta história. Afinal que estiveram na Foz do Arelho a fazer os jornalistas? Não a ouvir o que o conferencista tinha para dizer, mas à espera de o ouvir falar do que não estava na ordem do dia. Tal como em 1994, pelos vistos. Não houve melhoras.
Depois desta história, mais interessada fico nas Memórias do Dr. Mário Soares. Espero que ele as ande a escrever. Esta amostra, repito,abre mesmo o apetite.
MT