sexta-feira, 24 de junho de 2011

Penélope (2): nem tudo se cumpre entre os homens

Ouve agora este sonho e interpreta-o para mim!
Cá em casa tenho vinte gansos que saem da água para comer trigo: com eles me alegro quando os vejo. Mas da montanha veio uma grande águia de bico recurvo, que se atirou aos pescoços dos gansos, matando-os a todos.
Eles jaziam aos montes no palácio, mas a águia voltou para o éter divino. Eu chorava, embora estivesse a sonhar. À minha volta se reuniam as mulheres de belos cabelos dos Aqueus, enquanto eu chorava convulsivamente, porque uma águia matara os meus gansos. Mas a águia regressou: e pousada no alto de uma viga fez parar o meu choro com voz de homem mortal:


'Anima-te, ó filha de Ícaro, cuja fama chegou longe!
Isto não é um sonho, mas uma visão verdadeira, que se cumprirá. Os gansos são os pretendentes, e eu, que antes fui a águia, agora regresso como marido, que fará que se abata sobre os pretendentes um terrível destino.'


Assim falou; e depois largou-me o sono doce como mel. Vi que os gansos continuavam no palácio, debicando o trigo do comedouro como sempre fizeram."


Respondendo-lhe  assim falou o astucioso Ulisses:
"Senhora, não é possível interpretar o sonho inflectindo-o de modo diverso daquilo que te disse o próprio Ulisses. Ele disse como tudo acabará. Para todos os pretendentes virá a destruição: nenhum deles escapará à morte e ao destino."


A ele deu resposta a sensata Penélope:
"Estrangeiro, sabes bem que os sonhos são impossíveis e confusos; nem sempre tudo se cumpre entre s homens. São dois os portões dos sonhos destituídos de vigor: um é feito de chifre; o outro de marfim.
Os sonhos que passam pelos portões de marfim talhado são nocivos e trazem palavras que nunca se cumprem. Mas os que saem cá para fora dos portões de chifre polido, esses trazem coisas verdadeiras, quando um mortal os vê.
Penso que no meu caso não foi de lá que veio o sonho horrível, embora bem vindo tivesse sido para o meu filho e para mim!

Homero, Odisseia. Canto XIX, 535-568. Tradução de Frederico Lourenço. Lisboa, Livros Cotovia, 2003, p. 322-323.

3 comentários:

Xico disse...

Vai longe o tempo em que li uma má tradução da Odisseia. Bem haja por esta magnífica tradução.
Afinal Penélope alegrava-se com a presença dos pretendentes (chora os gansos mortos com que se alegrava). Como se sentisse prazer fingindo (ou sonhando) traições a Ulisses?
Ulisses mata os pretendentes porque teme o confronto entre ele e aqueles no desejo de Penélope.
Ulisses adquire a sabedoria no seu longo trajecto para casa. Mas hoje já não há Penélopes esperando-o. Circe e Calypso venceram!

Cláudia disse...

"Os sonhos são uma pintura muda, em que a imaginação a portas fechadas, e às escuras, retrata a vida e a alma de cada um, com as cores das suas ações, dos seus propósitos e dos seus desejos."

Padre Vieira, no Sermão de São Francisco Xavier Dormindo

Isabel Soares disse...

"nem tudo se cumpre entre os homens" porque o sonho só é quando o homem lhe imprime movimento.