segunda-feira, 6 de junho de 2011

Com Camilo, em Florença (2)

Comecei a lêr desanimado; cobrei esperanças no segundo capitulo; ao terceiro obrigar-me-ia, sendo preciso, por escriptura, a escrever dois volumes; ao quarto fechei o manuscripto, e coordenei os apontamentos pelo theor seguinte: Demorava em Florença uma familia portugueza, expatriada por affecta á realeza absoluta. Compunha-se esta familia de pae e duas filhas. O emigrado era um ex-desembargador do paço, ministro da Alçada, que assignara o accordão de pena ultima comminada aos academicos de Coimbra que, em 18 de março de 1828, mataram, no Cartaxinho, os lentes Matheus de Sousa Coutinho, Jeronymo Joaquim de Figueiredo, e feriram outros que, no dizer do accordão, iam beijar a mão ao serenissimo senhor infante regente pela sua feliz chegada a estes reinos. Bartholo de Briteiros se chamava o realista. Uma das meninas era Eugenia, e a outra Paulina. Em quanto á linhagem, estude quem quizer a origem dos Briteiros, que ha de encontra-la desde logo que as aguas do diluvio universal se recolheram ao centro do globo, e consentiram que os casaes contidos na arca procreassem os Briteiros e outras familias do mesmo tamanho genealogico. No que toca a riqueza, dizia-se que Bartholo possuia, em cada provincia de Portugal, duas, e tres e mais quintas: o que eu não averiguei por me parecer desnecessario. O emigrado vivia regaladamente na Praça do Dome, o mais vistoso local de Florença, servido de muitos creados, em palacio exornado de primosas alfaias e baixella. O vassallo de D. Miguel de Bragança pompeava faustos de rei, em quanto seu senhor, o tão chorado principe dos seus amigos, mendigava em Roma. Este contraste offerece um lado de muita philosophia, que eu me dispenso de explanar por ter muito amor a quem me lê, e me não lerá, se eu me entro a enredar em camisa de onze varas... (Cá em Portugal já se não diz varas: é metros: camisa de quinze metros e vinte e cinco centimetros, corresponde a isso; por causa da metromania não se ha de perder o anexim que é expressivo).


Camilo Castelo Branco, Agulha em Palheiro, 2ª edição, 1865.

1 comentário:

Isabel X disse...

Há um sabor da língua portuguesa, assim, em Camilo, como ninguém mais. Ritmo, vocabulário, capacidade de descrição, ironia, estilo próprio, datado, belíssimo!

Limito-me à admiração, sem mais.
É só o que me apetece.

- Isabel X -