quarta-feira, 22 de junho de 2011

Penélope (1): tende paciência

Porém Antínoo deu-lhe [a Telémaco] a seguinte resposta:
"Telémaco descarado, irreprimível na tua fúria, que vergonhas nos lançaste à cara! Será que nos queres censurar?
Pois fica sabendo que não são os pretendentes os culpados, mas a tua querida mãe, sobremaneira astuciosa!
Na verdade já vamos no terceiro ano - em breve virá o quarto - em que ela engana os corações dos Aqueus.
A todos dá esperança e a cada homem manda recados, mas o seu espírito está voltado para outras coisas.
Também este engano congeminou em seu coração: colocando um grande tear nos seus aposentos - amplo mas de teia fina - foi isto que nos veio declarar:


'Jovens pretendentes! Visto que morreu o divino Ulisses, tende paciência (embora me cobiçais como esposa) até terminar esta veste - pois não quereria ter fiado a lã em vão -, uma mortalha para o herói Laertes, para quando o atinja o destino deletério da morte irreversível, para que entre o povo nenhuma mulher me lance a censura de que jaz sem mortalha quem tantos haveres granjeou.'


Assim falou e os nossos corações orgulhosos consentiram. Daí por diante trabalhava de dia ao grande tear, mas desfazia a trama de noite à luz das tochas.
Deste modo, durante três anos enganou os Aqueus. Mas quando sobreveio o quarto ano, volvidas as estações, uma das mulheres, que estava por dentro, contou-nos o sucedido, e encontrámo-la a desfazer a trama maravilhosa.
De maneira que a terminou, obrigada, contra sua vontade.

Homero, Odisseia. Canto II, 85-110. Tradução de Frederico Lourenço. Lisboa, Livros Cotovia, 2003, p. 40-41.

4 comentários:

Isabel X disse...

Desde muito cedo me encantou esta personagem, Penélope, da Odisseia.
Logo no primeiro ano do Curso de História da Faculdade de Letras me propus tratar (e tratei), como tema de um trabalho para a cadeira de Cultura Clássica, " O Estatuto da mulher na Odisseia", com grande destaque para Penélope.

Há nela um enorme poder que se disfarça de doméstico, mas que é universal. A todos manipula, sem desistir daquilo que de facto quer: Ulisses. Enquanto faz e desfaz a sua teia, aranha diligente em seu agir de esperança e segredo.

Não nos esqueçamos da condição que ocupava e que a impedia de mandar embora os pretendentes. A espera a que os obrigou tornou-os grosseiros e inúteis. Há muitas ilações a tirar desta história.

- Isabel X -

Xico disse...

Agora vou dar numa de feminista (não é bem o meu género). Penélope também sempre me fascinou. Mas a sua história é sempre vista do lado machista da questão. O ardil da mulher é ensinado aqui em benefício do homem, legítimo esposo: Ulisses (um mau carácter em minha opinião). Diz Isabel X que Penélope quer Ulisses? Ou será que Homero???(teria escrito a Odisseia?) e nós Ulisses, queremos que Penélope nos queira, e daí termos inventado esta história sobre a virtude de uma mulher?
(Declaração de interesses: Não gosto de Ulisses, apesar de adorar Lisboa)! Eu reescreveria a história. Penélope continuaria fazendo e desfazendo a sua teia, só pelo prazer de a atirar à cara de Ulisses, mandá-lo passear de novo, e depois fugir com o pastor mais jovem dos rebanhos de Ulisses.

Isabel X disse...

E não é que a sua ideia me agrada, Xico? Que tal fazer uma versão moderna da Odisseia com o final que propõe?
Ulisses é aqui secundário, de facto. A própria história da Odisseia é secundária, (há quem diga que é a história de alguém que volta tarde para casa), o que conta são os fragmentos dela, o que estes dizem sobre nós e nosso modo de ser e agir.

- Isabel X -

Vasco Tomás disse...

Certamente que hoje temos sobejos exemplos de que é possível vencer atavismos, "singularidades", inércias que nos travam o avanço para patamares de maior desemvolvimento civilizacional e pessoal.
A história nacional regista alguns momentos em que acção coletiva, pela incarnação de alguns "grandes homens, foi ou pioneira na descoberta de novos horizontes (as Descobretas) ou operou mudanças profundas para se pôr a par do que "lá fora" já era um adquirido (a revolução liberal, a República o 25 de Abril).
Mas os bons exemplos, para nosso mal, não são a regra. Não é certamente o povo indiferenciado o principal responsável, mas seguramente um sector da nata dirigente que dirige e modela, nos vários sectores, a sociedade porutuguesa.
Se não soubermos olhar para as melhores práticas, as nossas e as alheias, assimilá-las e adaptá-las às nossas especificidades, continuaremos maiormente a oscilar entre o desespero de uma inferioridade invencível face ao estrangeiro (que pode hoje chamar-se a UE) e uma hipertrofia autocomplacente e bacoca de que a regenaração só pode vir da retomada das nossas idiossincrasias e valores póprios.
Afinal, a identidade, individual e colectiva, é um processo dinâmico que se constrói necessariamente na abertura ao outro, ao diferente. E hoje talvez tenhamos que olhar para um âmbito muito vasto, e mesmo aí não há respostas já feitas. Só na negociação, no empenhamento, no estudo disciplinado, na audácia de uma acção de rasgar com prudência novos caminhos a percorrer podemos vencer o fatalismo onde nos instalámos.
A responsabilidade é de todos, mas é proporcional à sua cultura, formação moral e posição ocupada no tecido os nas malhas da sociedade.