domingo, 5 de junho de 2011

Com Camilo, em Florença (1)

Estava em Florença: restavam-lhe dois mezes dos dois annos concedidos. Releu Virgilio e Dante, Petrarcha e Tasso, os seus amigos de Italia, os seus guias e commensaes, as pallidas sombras que o seguiam até ás regiões convisinhas do sepulcro, ás tenebrosidades mysteriosas do sonho. E hei de eu acreditar (diz a leitora que sabe o que vale) hei de eu acreditar que Fernando não encontrasse nos mais formosos pontos do globo as mais formosas creações do universo? Não viu elle uma ou cem mulheres... (cem senhoras, emendarei eu, se vossa excellencia permitte) ou cem senhoras que o tirassem pelos cabellos d'essa escuridade de alma em que o exquisito moço se engolfava com as pataratas dos Virgilios e Dantes, e outros que taes pesadelos de um espirito que almeja diffundir-se e embeber-se nas delicias da poesia, tres vezes santa, do bello ideal!? Respondo: tem vossa excellencia razão de estar assim pasmada do homem: eu tambem, com quanto já saiba a preceito o que é pão bolorento por dentro e cordas de viola por fóra, começava a espantar-me, justamente no ponto em que vossa excellencia fez favor de interromper-me. Não ha duvida nenhuma: a cousa é muito para assombros. Bravia é a arvore que aos vinte e seis annos não floresce nem fructifica! Anasada alma deve ser essa que se dispende toda em extasis de livros velhos e paredes velhas, e historias revelhas, que nem recontadas por Michelet ou Castilho se podem aturar. Com um homem assim o romance era impossivel. Quem houvesse de descreve-lo, iria na piugada d'elle por esse mundo fóra, onde ha plinthos e peristylos derrocados, e confundi-lo-ia com algum troço de columna corynthia ou jonica. Fernando seria empolgado pela caterva empedernida dos antiquarios, que dariam com elle n'este museu de Lisboa, onde não ha nada que o valha, a não ser o titulo do edificio, que é museu de si mesmo. Estava eu, pois, a despenhar-me com o meu estylo espalmado na voragem dos escrevedores malditos da paciencia humana, quando, n'estes apontamentos que me dirigem, encontro o capitulo intitulado: primeira e ultima paixão de fernando gomes. Primeira e ultima! exclamei. Não gosto d'isto! Com uma só paixão hei de eu encher duzentas paginas! Uma só paixão, n'estes nossos dias, em que vinte e quatro horas bastam para o prologo e o epilogo da tragedia, se é tragica a paixão!

Camilo Castelo Branco, Agulha em Palheiro, 2ª edição, 1865.

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