quinta-feira, 23 de junho de 2011

Fatalidade?

Não raras vezes acontece que o vício constitucional de uma sociedade fica persistente, e se transforma em mal hereditário, transmitindo-se de geração em geração, com a crueldade que a natureza não poupa às organizações débeis, sempre o mesmo no fundo, apesar de diverso na aparência, proveniente desse estado mórbido primitivo. Depois, assim coo um indivíduo pode viver com lesões profundas, enfraquecidamente sim, mas vive – do mesmo modo que a sociedade de conformação defeituosa poderá ter também uma longa existência, se causas externas lhe não determinam o desaparecimento. Tal é a lição que nos subministra a história portuguesa. 
Sustado no meio do seu desenvolvimento, Portugal nunca pôde na administração pública compensar a despesa com a receita, nem economicamente estabelecer o equilíbrio entre a produção e o consumo, de forma a tornar-se um organismo, satisfazendo-se todas as exigências da vida social. Por isso, sucedem-se amiúde as catástrofes que a população expia em silêncio; por isso, os melhores tempos são sempre duma prosperidade aparente, porque dependem de condições fortuitas, fora da sua acção.

Alberto Sampaio, "Ontem e Hoje", Janeiro de 1892. In Obras. Guimarães, Sociedade Martins Sarmento, 2008.p. 299.

5 comentários:

Isabel X disse...

Não digo que os factos não justifiquem a construção de uma análise como esta. No entanto, podia ser construída sobre os mesmos factos uma análise diferente.

Neste caso os conceitos são todos (ou quase) tirados de empréstimo a uma linguagem pseudo-científica típica da época em que o texto foi produzido.

O pior é que a realidade é (ou torna-se) aquilo que as narrativas dizem. Há um efeito corrosivo causado por palavras como estas.

Cuidado com o poder encantatório da retórica que nos torna reféns de análises simplistas, e que podiam muito bem ser outras, sem alterar em nada os factos que lhe derem origem. Bastava alterar o discurso produzido sobre eles.

Bastava dizer que a experiência portuguesa prova que tem que se achar um outro caminho. Que a inadaptação é uma oportunidade para sermos criativos e encontrarmos modelos alternativos, sei lá...

Agora dizer que o país sofre "de um mal hereditário, transmitindo de geração em geração, com a crueldade que a natureza não poupa às organizações débeis", etc, etc, só pode ser entendido como uma falácia. Que natureza é essa, afinal? para questionar apenas um dos conceitos usados.

- Isabel X -

Vasco Tomás disse...

A ideia da decadência de Portugal toma forma, como se sabe, a partir de Herculano e Garrett, havendo já sinais que apontam para este facto, por exemplo N. Clenardo, Severim Faria, Frei Manuel do Cenáculo, etc.
É natural que um homem dos fins do século XIX siga este modo de pensar, que a historiografia actual de resto confirma, pelo que não vejo como se pode com as "res gestae" da nossa história ser possível construir uma análise diferente daquela que Alberto Sampaio nos apresenta.

Isabel X disse...

Assim sendo, estamos todos condenados a dizer sempre o mesmo, repetindo sem cessar o que foi dito antes de nós.
Assim sendo, mais vale o silêncio do que as mesmas palavras, a mesma análise de uma realidade que, por sua vez, também não muda porque ligada a um discurso sempre igual.
Será que é mesmo assim que as coisas acontecem? Uma "fatalidade", como se pergunta neste post?

- Isabel X -

Isabel X disse...

Subscrevo inteiramente a resposta do Vasco que foi parar à Penélope em vez de estar aqui. É em todos os seus termos o contrário do que havia dito antes. Traça hipóteses alternativas, propõe análises baseadas em diferentes interpretações das realidades portuguesas e das tendências que os portugueses manifestam de atavismo e de euforia.
É a isso que eu chamo pluralismo, sempre desejável em democracia. Presumo que a razão da análise determinista que apresentou antes partiu da ideia de que eu subscreveria as ideias eufóricas e descabidas de uma qualquer superioridade nacional, o que não é verdade.
Curiosamente, e sem querer, o Vasco escolheu para colocar a sua resposta um post que recomenda paciência.

- Isabel X -

Vasco Tomás disse...

A razão da inclusão do post sobre "fatalidades" no post Penélope, foi naturalmente um erro da minha inexperiência digital. Peço desculpa disso.
Não penso, contudo, que haja contradição entre o que disse antes e depois, como afirma a Isabel. Dado que não é oportuno mostrá-lo agora, dou o assunto por encerrado.