sexta-feira, 26 de setembro de 2008

A parede vazia e o gorro de pele (I)

"Em Fevereiro de 1948, o dirigente comunista Klement Gottwald subiu à varanda de um palácio barroco de Praga para falar às centenas de milhar de cidadãos aglomerados na praça da Cidade Velha. Foi uma grande viragem na história da Boémia. Um momento fatídico, como acontece uma ou duas vezes por milénio.
Gottwald fazia-se acompanhar pelos camaradas e, ao lado, muito perto, estava Clementis. Nevava, fazia muito frio, e Gottwald vinha de cabeça descoberta. Clementis, muito solícito, tirou o gorro de pele que trazia e colocou-o na cabeça de Gottwald.
A secção de propaganda fez centenas de milhar de exemplares da fotografia da varanda de onde Gottwald, de gorro de pele e rodeado pelos camaradas, fala ao povo. Nesta varanda começou a história da Boémia comunista. Todas as crianças conheciam a fotografia, porque a tinham visto nos cartazes, nos manuais ou nos museus.
Quatro anos mais tarde, Clementis foi acusado de traição e enforcado. A secção de propaganda fê-lo desaparecer imediatamente da história e, como é evidente, de todas as fotografias. A partir daí, Gottwald está sozinho na varanda. Onde ficava Clementis, há apenas a parede vazia do palácio. De Clementis restou o gorro de pele na cabeça de Gottwald".
Milan Kundera, "As Cartas Perdidas", in O Livro do Riso e do Esquecimento, 1978 [9ª ed. portuguesa, D. Quixote. 2001]

5 comentários:

Anónimo disse...

Ainda bem que estava muito frio!
JJ

J J disse...

O que é notável e diferente é que de Clementis ficou o gorro,alguém disse que, normalmente,"até as pegadas apagavam".
Do lado de lá apagava-se,do lado de cá as homenagens e evocações póstumas, centrando as atenções no acessório, inútil e até inventado, cumprem o mesmo papel, como quem vai pondo camadas de verniz e tinta sobre um quadro antigo até o tornar convenientemente irreconhecível.
Assim se vai fazendo História. Mas o autor do blogue tem certamente melhor e mais abalizada opinião sobre isto.

J J disse...

Subscrevo o primeiro comentário, assinado JJ, sem qualquer problema, todo o episódio seria provavelmente esquecido se não fosse o frio. Deixa-me perplexo é que ele (comentário) apareça antes de eu o escrever!
A menos que se aplique aqui a teoria de Mark Twain, que sustentava que as peças de William Shakespeare não foram escritas por ele mas por um contemporâneo seu que, por coincidência, também se chamava William Shakespeare ...
Será que o mesmo se passa comigo? JJ (não anónimo)

Anónimo disse...

Coisa bela. Obrigado. Abraço do Paulo Prudêncio.

Anónimo disse...

O autor do blogue é o único que não nos deixou nenhum comentário. Mas escreveu no tema "património". Pode explicar?
MT