sábado, 27 de setembro de 2008

A parede vazia e o gorro de pele (II)

O episódio narrado por Kundera na introdução ao conto "Cartas Perdidas" pode ser lido como uma metáfora do património. Não é original este entendimento. Costumo abrir com ele os trabalhos lectivos na cadeira de "Património Cultural".
De facto, o gorro é o elemento de continuidade do passado, o vestígio que sobreviveu à destruição perpetrada neste caso pelos homens (há testemunhos que desaparecem, por acção do tempo ou da natureza). O vestígio chegou até nós, mas não fala por si. Sem a leitura, a crítica de contexto, a descodificação, atribuição de significado, em suma a interpretação, realizadas com recurso à história e às ciências do património, permaneceria mudo e indecifrado.

2 comentários:

J J disse...

Afinal estavam os comentadores preocupados com o desaparecimento do homem e a preocupação do historiador era a conservação do gorro...
Não é tranquilizador, num momento é que o presente e o futuro são incertos, saber que o passado (em que sempre confiámos!) é afinal "produto de leitura, crítica de contexto, descodificação, atribuição de significado, em suma interpretação" e, em resultado disso, também ele menos certo e definitivo do que nós gostaríamos...

João B. Serra disse...

Não tem razão, caro comentador. Não estou preocupado com a conservação do gorro mas em dar-lhe voz. Sem essa operação, o rasto do Clementis desapareceria. Em segundo lugar, se alguem espera que a história lhe ensine a lidar com a incerteza do presente e do futuro, desiluada-se. Peça ajuda às ideologias, às religiões,às doutrinas salvíficas. A história não concorre, nem nunca concorreu, com as explicações globais e reconfortantes a que V. apela.