segunda-feira, 20 de abril de 2009

Textos de véspera e do dia seguinte. As lebres e o caracol

Eduarda Dionísio (1980)
2. Desenho: alarme (combóio); código: o futuro
Texto A [msc]
No tempo em que os animaizinhos atravessavam as florestas descuidados, reuniu o 1º Congresso das lebres libertárias para resolver do valor e oportunidade de uma expedição revolucionária ao vale das estrelas. Não eram passados cinco segundos quando decidiram por unanimidade, claro está, avançar sim, avançar já e em força.
Por descargo de consciência, a que chamaram solidariedade, propuseram fazer-se acompanhar pelo caracol, indivíduo sério e  muito de sua casa, como se sabe. A resposta ao convite - devidamente escrito, assinado, lacrado e selado - tardou mas chegou: "Sejam prudentes, evitem acidentes". Certo é que as lebres, umas precipitadas, partiram; sabe-se que gozaram imensamente mas diz-se que não regressaram.
Texto B [jbs]
No tempo em que os animaizinhos atravessavam as florestas descuidados, reuniu o 1º Congresso das lebres libertárias para resolver do valor e oportunidade de uma expedição revolucionária ao vale das estrelas. Não eram passados cinco segundos quando decidiram por unanimidade, claro está, avançar sim, avançar já e em força.
Por descargo de solidariedade, a que chamaram consciência, propuseram fazer-se acompanhar pelo caracol, indivíduo sério e muito de sua calma, como se sabe. Era porém evidente que ele não poderia competir com elas em ligeireza. Gozando imensamente com isso, partiram; "lá te esperamos", gritaram já ao longe, algumas, das janelas da carruagem.
Acreditando na promessa, o caracol, tomou o fio do carril. Ao fim do dia, tinha já percorrido metade do caminho, quando as lebres, esquecidas do prometido, voltavam de bolsos cheios. "Já o combóio?" - perguntou desapontado o caracol. E, apercebendo-se claramente do logro e do risco: - "Alguma se lembrará de puxar, a tempo, o sinal de alarme?"

1 comentário:

Vasco Tomás disse...

O Justo ganha sempre a partida

Era uma vez um caracol que vivia num território chamado “jardim à beira mar plantado”. Tinha por profissão percorrer as flores desse jardim, sobre as quais, as que não usasse na sua alimentação, ia depositando como que uma escrita silenciosa e intraduzível, que constituiu mais tarde, quando os homens apareceram na Terra, um quebra-cabeças para os etologistas.
Um dia, começaram a surgir umas lebres, muito ágeis e de aspecto pouco simpático para o caracol. No princípio, reconhecendo a precedência de um ocupante naquele espaço, as lebres delimitaram a sua área de acção. Mas foi Sol de pouca dura. A sua freima constitucional, sem um freio que as peasse, levou-as a correrias estonteantes por todo o espaço, que agora consideravam seu. O caracol, sem instâncias de apelo, saía só quando a calma regressava á terra, de modo a poder sobreviver, com os seus.
Aos poucos, as lebres foram tirando proveito e benefício das suas vantagens. A sua velocidade permitia-lhes ter acesso aos frutos mais desejáveis que a terra oferecia. Que aproveitavam para mercadejar, com ganho, com forasteiros que visitavam a terra, e por vezes aí passavam a residir. O reconhecimento público caiu-lhes súbito no regaço, o gáudio era agora o seu diadema. O caracol olhava o que se passava à sua volta, ia registando tudo na sua ancestral memória e continuava a sua vida de resistente.
Às vezes, impantes de tantos arroubos de veneração que a turba lhes dispensava, tilintava na alma das lebres a sineta da melancolia, geralmente ao entardecer do dia. Essa dor premonitória obrigava-as a regressar ao covil, por vezes a recusar festas dadas em seu nome.
O caracol não era desprovido de certas vantagens com que a Natureza o dotara. Nascendo primeiro do que todas as lebres, tinha uma capacidade e labilidade adaptativa aos mais variados meios, mesmo os mais agrestes. O que lhe permitiu reproduzir-se e espalhar-se por toda a Terra. Não era o único no mundo, podia sempre pensar que noutra parte havia sempre alguém que poderia estar do seu lado.
Rastejando na terra, estava habituado a observar atentamento a geometria pluriversa das formas das coisas. E esses ensinamentos eram retidos nesse alfobre sem fundo da sua memória, porventura impressos na tal escrita indecifrável referida. Recursos suficientes para que dele pudesse surgir qualquer subversão na ordem do mundo.
Mas faltava-lhe ainda evoluir até ter uma orelhas compridas, necessárias para passar a ouvir com muita acuidade o alarido alacre das lebres e o clamor plangente dos outros animais a arrojar a sua submissão.
Quando isso acontecer, e tal é verosímil, as lebres ou fogem com medo, ou abdicam dos seu poderes, ou decidem-se a encontrar um novo “modus vivendi”.
Moral desta história:
Quando emergir aquela situação em que a memória, a inteligência e a sabedoria se encontrarem em presença, abre-se no presente uma possibilidade decisiva de inflectir o curso da história. E sabe-se que, na imanência desta, é sempre o Justo que ganha a partida. Por antecipação.