sábado, 12 de dezembro de 2009

Ofélia


RAINHA
Cresce um mal no encalço de outro,
Tão rápido se sucedem. Afogou-se a vossa irmã, Laertes.
LAERTES
Afogou-se? Como, onde?
RAINHA
Um salgueiro há que cresce atravessado no ribeiro
E as cãs das folhas recorta na corrente espelhada.
Com elas fantasiosas grinaldas teceu ela,
De pães-de-leite, urtigas, margaridas e abelhas-flor,
A que na fala de pastores se dá mais grosseiro nome
E a que as raparigas castas chamam dedo-de-morto.
Aí, nos pendentes ramos, suas coronais de erva
Alçando-se a pendurar, uma haste despeitada se partiu,
E esses troféus de erva e ela mesmo em baixo ruíram
No ribeiro choroso. Em redor se tufaram as roupas
Em que por um momento qual sereia flutuou,
Enquanto entoava esparsas de velhas laudas,
Como alguém inapercebido do seu próprio infortúnio,
Ou como criatura que nativa fora, e adestrada era,
A um tal elemento. Mas não muito tempo passou
Até que os vestidos, com o peso que beberam,
Arrastaram a pobre infeliz desse canto tão melífluo
A uma morte lamacenta
LAERTES
Ah, morreu então afogada.
RAINHA
Afogada, afogada.
LAERTES
Água em demasia possuis tu, pobre Ofélia,
Por isso a mim me nego as lágrimas. Mas
Deste modo somos feitos; a natureza segue o hábito,
Diga o pudor o que disser. (Chora) Quando estas secarem,
Morrerá a mulher então em mim. Adeus, senhor,
Tenho uma fala de fogo que gostaria de acender,
Mas esta minha fraqueza extingue-a.


Shakespeare, Hamlet, 4.7. 
Tradução de António M. Feijó. Lisboa, Edições Cotovia, 2007.

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