terça-feira, 30 de junho de 2009

Os pés!

[...] Só ele, o anfitrião e entrevistado, não riu nem sorriu e, em voz alta, repetiu-se a si mesmo a pergunta:
- Qué es lo más importante en un cambatiente?
No inverno úmido, a asma reaparecia e, às vezes, lhe travava a respiração, mas Ernesto Che Guevara não titubeou na resposta:
- As extremidades! A extremidade inferior, os pés - exclamou, e a gargalhada de zombaria foi quase geral.
Outra vez, só ele não riu. E, sem ouvir o riso galhofeiro dos que se riam unicamente por pensarem que ele também ria, tomou um tom ainda mais sério, alongou a explicação e começou a falar da importância das extremidades. Sim, porque os cuidados essenciais são três, e nessa santíssima trindade está o poder de ataque e defesa do combatente, sua condição de céu ou inferno. Primeiro, a cabeça, extremidade superior não só por lá estar em cima no corpo, mas porque conduz tudo. Perder a cabeça é perder-se, seja onde for, não só na guerrilha. Logo, as extremidades laterais, os braços. Ágeis, envolventes e voluptuosos como no amor, ou lentos e inertes como no sono, os braços - e neles as mãos - definem um ritmo, o ritmo do corpo que controla a carabina, movendo-se como uma bailarina na dança ou uma serpente na árvore.
Por fim, as extremidades inferiores, os pés, sustentação do corpo e dos braços. Base da base e base de tudo o que é básico, os pés definem e guiam o passo da coluna guerrilheira. A velocidade de quem avança, quem marca é o pé mais cansado ou menos cansado. A cadência, é ele que dá, até mesmo na correria do recuo, quando nos atacam e retrocedemos. Se o pé aguenta, tudo se aguenta. Aguenta-se.
- A nossa experiência guerrilheira em Cuba mostra algo simples, rudimentar. Pode tratar-se mal de todo o corpo, menos dos pés. Um combatente pode ficar semanas ou meses sem um banho, mas deve lavar os pés cada dia. A roupa pouco importa, mas o calçado é importante! - completou Guevara, pernas cruzadas, tocando com a mão a própria bota, do cano à sola, numa irrefreável caricia.

Flávio Tavares, O Dia em que Getúlio Matou Allende e Outras Novelas do Poder. 5ª edição. Rio de Janeiro, Editora Record, 2004. p. 289-290.

1 comentário:

João Ramos Franco disse...

È uma verdade, preferia não falar com experiencia própria...
"mas deve lavar os pés cada dia. A roupa pouco importa, mas o calçado é importante! - completou Guevara, pernas cruzadas, tocando com a mão a própria bota, do cano à sola, numa irrefreável caricia."
João Ramos Franco