sábado, 27 de junho de 2009

Ao Vasco Trancoso


Parte final do depoimento que ontem fiz na festa de homenagem a Vasco Trancoso organizada por um grupo de amigos e antigos colaboradores.

[...]
Peço desculpa a todos, se num momento de convívio e celebração com um homem que admiramos, trago aqui, em vez de um enunciado de predicados, um repertório de obra feita. Mas compreendam-me: não há muitas oportunidades como esta de, em vez das coisas “serenas em si mesmas, sempre iguais a si próprias”, falar do “amor dos homens”, ou seja do “desespero que as busca”. Estou a usar propositadamente as palavras de um poema de António Gedeão, “Poema das coisas”. Este poema conclui assim:
Põe-se a pedra na mão, e a pedra pesa,
pesa connosco, forma um corpo inteiro.
Fecha-se a mão, e a mão toma-lhe a forma,
conhece a pedra, entende-lhe o feitio,
sente-a macia ou áspera, e sabe em que lugares.
Abre-se a mão, e a mesma pedra avulta.


Se fosse o amor dos homens
Quando se abrisse a mão já lá não estava

O amor dos homens transforma pois, absorve, integra a pedra. É disso que trata o processo criativo.
Há uma longa e sólida tradição de homens da medicina que desenvolveram em simultâneo uma actividade literária e artística de invulgar qualidade. A profissão médica convive pois bem com a forma porventura mais decisiva de “amor dos homens”. Talvez ela seja afinal uma outra forma, não plástica, mas não menos criativa, de “amor dos homens”.
Resta-me falar, para continuar no mesmo registo de palavras, do amor do Vasco Trancoso pelas pedras do nosso Hospital Termal. De facto, aqui tudo conflui: o médico, o artista plástico, o patrimonialista. Viveu intensamente os problemas, sobressaltou-se com os obstáculos institucionais e as dificuldades de equipamento das termas erguidas pela Rainha D. Leonor. Cuidou desse imenso património singular e admirável. Sofreu com as incompreensões humanas face a esse gigante de pedras que assiste sereno ao desfiar dos séculos. Fotografou-o e pintou-o. Cuidou-lhes das feridas e modernizou-o. Estudou-lhe o passado e procurou garantir-lhe o seu destino cumulativo e unitário. Procurou e descobriu o seu espírito, um espírito de lugar.
Volto a Gedeão, e ao princípio do seu poema:
Amo o espaço e o lugar, e as coisas que não falam.
O estar ali, o ser de certo modo,
o saber-se como é, onde é que está, e como,
o aguardar sem pressa, e atender-nos
da forma necessária.

E, permita-me agora o poeta que jogue com as suas palavras, para acertar o poema
Serenas em si mesmas, sempre iguais a si próprias,
esperam as coisas que o AMOR as busque.

Em 1990, Vasco Trancoso representou-se a si próprio sentado a pintar um animal feroz enquanto à sua volta a selva da politica o olhava ameaçadora. Não sei se hoje é esse ainda o destino que ambiciona ou a previsão que tece para si.

Em nome de todos os seus amigos que aqui se reúnem, desejo-te as maiores felicidades.
Podes contar connosco.


2 comentários:

VT disse...

Tem sido uma honra e um privilégio sentir sempre presente a solidez da Amizade do João Serra. A sua intervenção de ontem foi um momento alto de uma noite muito feliz. Estou-lhe muito grato.O João Serra já nos habituou à excelência das suas intervenções, mas desta vez, a generosidade, a acuidade diagnóstica das situações e a criatividade a que já nos habituou, guiadas certamente pela Amizade, conseguiram compor um quadro não só melhor que o original mas também interpretar, com visão especial, o cidadão para além do homem público. A imagem composta, nesta sua evocação, enriquece-me - descobrindo na sua análise um retrato final que nem eu próprio vislumbraria. Mas, mais uma vez tem toda a razão quando (me) revelou que uma linha condutora essencial, em mim, afinal converge no Hospital Termal.
É aí que começo e chego quase sempre.
Abraço muito Amigo
VT

Anónimo disse...

As intervenções e as fotos do jantar de homenagem ao Vasco Trancoso podem ser lidas e vistas em:

http://homenagemvasco.blogspot.com/