segunda-feira, 30 de março de 2009

O vendedor de berbigão

Presença regular nas tardes de sextas-feiras do final do Verão, fazia-se anunciar pelo toque da corneta que precedia o ruído característico da carrocita puxada pelo burro. Vinha da Foz do Arelho, com o berbigão dentro de sacos de serapilheira, um alguidar de água salgada onde os bivalves eram mergulhados para não morrerem na longa viagem que o levava às aldeias do interior das Caldas e Bombarral.
Evoquei esta imagem da minha infância de há quase meio século numa crónica na Gazeta das Caldas, em seguida recolhida no livro Continuação. Crónicas dos anos 50/6o.
Hoje, na escola Grandela da Foz do Arelho, um dos presentes interpelou-me. 
- O Senhor é que é o escritor?
- Não, respondi eu, o escritor é aqui o Dr. Vasco Trancoso.
Mas o homem insistia.
- Não, este sei eu quem é. Não foi o Senhor que escreveu no jornal sobre um homem que vendia berbigão e tocava uma "gaitinha"?
- Sim, admiti, surpreendido, e o Senhor quem é?
- Pois olhe, eu sou o vendedor. E acrescentou: já não tenho a "gaitinha", porque a ofereci para o museu da Junta, mas o Senhor pode vê-la lá atrás.
Chama-se Salomão Quaresma, tem 87 anos. A "gaitinha" lá estava, como me disse, no Museu.

8 comentários:

Isabel X disse...

Engraçado! Durante o almoço que se seguiu ao lançamento do livro, eu garanti a este senhor que a história que ele conta com tanto prazer (e que bonito que ele é!), viria aqui parar ao blogue do João, quase de certeza. Foi uma intuição minha que agora tenho o gosto de confirmar. Sabe que ele me disse que tinha hesitado muito entre doar a "gaitinha" ao Museu Etnográfico da Foz do Arelho ou dá-la a si, João Serra, o "tal" escritor que ele insistia em invocar?
- Isabel X -

J J disse...

Vi o Sr. Salomão interpelar o João Serra e vi este tirar uma fotografia ao simpático personagem. Nada ouvi da conversa qe travaram. Mais tarde assisti, na sala do Museu Etnográfico, à invulgar curiosidade do autor pela "gaitinha" e as voltas que deu para a fotografar com a etiqueta visível. Só agora, ao ler este post, vi reunir à minha frente todos estes "instantâneos" dispersos ao longo da manhã.
Quantas vezes nos acontecerá isto, testemunhar todos os fragmentos de um episódio coerente e não só nunca o conhecermos mas nem sequer desconfiar que o perdemos?

Isabel X disse...

Muito interessante este cogitar de JJ. É caso para nos questionarmos sobre o que deixamos escapar daquilo que nos rodeia ou junto de nós se passa, em cada momento, como ele o faz neste seu profundo escrito. Nada como estar sempre muito atento!
Uma pequena nota, e sem desprimor para o republicanismo presente, não vos parece que o nome de rei - Salomão Quaresma - assenta que nem a uma luva a este senhor? É de um rei que se trata, sem dúvida!
- Isabel X -

Margarida Araújo disse...

Uma maravilha e que lindo retrato.

Anónimo disse...

E o Sr. Salomão ainda me interpelou também referindo ser filho do casal de aldeões fotografados, no seu dia de casamento, por Stella Stuart - e que surgem na figura 34 do livro...
Vasco Trancoso

António J M disse...

Quando era miúdo comi berbigão do Salomão que era amigo do meu Tio.Não muitas vezes porque apesar de mais barato que as ameijoas, era sempre muito dinheiro para a maioria das pessoas.Dizia-se também que com mais perigos de intoxicação-seria verdade?Não fui ao lançamento,agora onde é que compro o livro do Dr.Trancoso-vai estar nas livrarias?

Teresap disse...

Esta bela estória é a prova provada da importância de reter a imagem das pessoas, das coisas, dos hábitos e da nossa afectividade, no jornal, nos livros, nos caderninhos de notas e também nos nossos corações. Estar atento, é fundamental. preservar, também.

Isabel X disse...

O livro está à venda na Loja 107.
- Isabel X -