quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Homo viator

Viajantes de Deus e do século, abandonavam se necessário fosse a terra e os bens que lhes conferiam identidade e estatuto, para se consagrarem a vicissitudes sistemáticas ou circunstanciais pelas regiões menos ou mais distantes onde havia que terçar amas ou tecer a paz, administrar justiça, fugir ou dar caça, fazer oração, ensinar e aprender, cobrar impostos, vender e comprar, pastorear ou ceifar. Digressão de vivos em ócio ou negócio e cortejo de mortos ou de relíquias, a viagem medieval não deixa nunca de se fazer acompanhar dos ritos da sacralização, num exercício de religiosidade permanentemente renovado pela mimese corporal do conceito segundo o qual todo o cristão é transeunte no mundo. Homo viator, caminhante fugaz da vida à morte, perdido no "vale de lágrimas" que o século XII verbaliza compondo a  Salve Regina, não admira que o homem da Idade Média tenha preenchido a sua existência com deslocações no espaço físico, da mesma forma que o imaginário do tempo integrava a dimensão simbólica da viagem.

Margarida Sérvulo Correia, As Viagens do Infante D. Pedro. Lisboa. Gradiva, 2000. p. 22-23.

2 comentários:

Isabel X disse...

Registo que vem ao encontro do de Bernardo Soares. A vida como viagem. A Fernando Pessoa uma vida não bastou e viajou várias vidas.
Muito interessante este texto sobre a viagem na Idade Média.

Lembro-me de ler num livro de Mário Vargas Llosa (O Falador) sobre uma tribo do Perú, que era nómada, e que acreditava que os passos que os seus membros percorriam assegurava a sucessão dos dias e das noites. Assim, sem mais, em relação direta com o cosmos...

Césariny dizia que a Salvé Rainha era um dos mais belos poemas de sempre!

- Isabel X -

Jacinta disse...

"Colocados, segundo parece, como pacientes perante o tempo e como agentes perante o espaço, vivemos e percepcionamos as duas categorias como se fossem uma só. O movimento, origem da vida, torna-as indissociáveis.
E, na consciência que temos de um e do outro, opõem-se impressões de continuidade e de descontinuidade, de globalidade e de distinção, graças às quais nos pomos à prova e adquirimos o conhecimento das coisas."
Paul Zumthor, A Medida do mundo, Paris, Seuil, 1993, p. 13.