quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Crónicas micaelenses - 1


Na narrativa da viagem do airbus da Sata entre o Porto e Ponta Delgada sobressaem dois incidentes sem história. Uma breve, embora intensa, escaramuça com um dos elos perdidos do Gordon que passara pelas ilhas do grupo Oriental açoriano dois dias antes e as duas tentativas falhadas de aterragem em Ponta Delgada. À segunda, o comandante decidiu rumar a Santa Maria e aí aguardar pelo restabelecimento da visibilidade no aeroporto de destino. Alguns passageiros mais perturbados respiraram de alivio. O comandante manteve a calma na cabine.
Para mim, passageiro com algum “calo” açoriano, foi a primeira experiência do género. Os dias seguintes confirmariam a persistência de neblinas não apenas nas zonas mais outeiradas da ilha mas também na orla marítima. Mas demonstrariam o apropósito do velho ditado micaelense que refere a possibilidade de ter as quatro estações do ano num só dia.
Tinha decidido, desta vez, alugar um carro, o que fiz pela internet (por onde também comprei o bilhete e marquei o hotel) para poder aproveitar os momentos livres e visitar pontos da ilha que vira apenas de helicóptero. E o carro lá esperava por mim.
Não pude deixar de evocar a viagem às "Ilhas Desconhecidas", de que Raul Brandão nos deixou um relato inesquecível. O escritor saiu de Cascais a 8 de Junho de 1924 e regressou da visita aos dois arquipélagos a 29 de Agosto. Embarcado no S. Miguel, um barco moderno, ele próprio evocava então a forma precedente de fazer a travessia do Atlântico. "A vida a bordo dos vapores perdeu todo o interesse da antiga navegação à vela: é a vida a bordo do Hotel Francfort com porteiro e tudo. Foi-se o encanto dos velhos navios com as vergas rangendo ao vento e o gajeiro sobe-que-sobe àquele mastro real. O que vale é a agitação tremenda que não cessa, a água em vagalhões cada vez mais cinzentos e maiores, que as velhas de penantes e plumas, sentadas de bombordo a estibordo, e que se atrevem com o oceano Atlântico, fazem o possível por amesquinhar".
Após rápida passagem pelo hotel, numa ponta da cidade, procuro estacionamento na zona central de Ponta Delgada. Encontro um lugar na zona portuária. 

Percorro devagar os pontões, espreitando as embarcações e ouvindo as conversas das tripulações. Confiro os nomes, tentando interpretar as razões das escolhas, e os aparelhos, procurando adivinhar para que pescado se destinam. Fascinam-me sempre estes ambientes portuários: as cores e os cheiros, os desenhos e as pessoas, os instrumentos e o movimento.




A cidade em fundo, vigiando o seu porto artificial, espera. Brandão, que lhe dedicou poucas palavras, descreveu-a como "uma pequena cidade, irregular e alegre, estendida à beira-mar, com as colinas verdes ao fundo". E pôs em destaque as suas "ruas asseadas, um largo, uma linda igreja e jardins maravilhosos". Com o céu de chumbo envolvendo o mar e seccionando a montanha, adivinho que Ponta Delgada vai soltar hoje os seus fantasmas.
Envolto no capote outrora usado na ilha, imagino ver passar de viola ao ombro, distraído e apressado, Vitorino Nemésio, meu professor nos idos de 1969/70. Vai cantar aos pés de Marga, essa Jácome Correia por quem se enamorou no "limite de idade". Momento pois para recitar de cor o poema que o terceirense irredutível dedicou à sua aristocrática sanmicaelense.


Um Dia é Pouco ao Pé de Margarida

A nossa intimidade a três ou quatro é constrangida.
Tenho medo no ângor e uma urtiga no pé.
Um dia é pouco ao pé de Margarida:
A ausência é menos sozinha,
A muita companhia dá bandos longe. Até
A vida
É
Se tua, já menos minha:
Se própria de meu, repartida,
Por muitos na atenção, nem tua é.
Só nossa solidão dual e penetrada
Evita o perigo do nada
A que, por condição, setas, as nossas pernas
Apontam na cavidade inexorável,
Fim de molécula qualquer.
Mas, entretanto, Margarida amável
Será flor, ou mulher?
A fome desperta, pois não como desde o pequeno almoço. Procuro o Alcides e descubro que, desde a ultima vez que estive em Ponta Delgada, sofreu uma remodelação profunda. É agora um restaurante mais turístico, mas o serviço não melhorou e a cozinha perdeu qualidade. Esta seria a primeira de outras decepções gastronómicas micaelenses.

De uma das praças adjacentes chegam os ecos de musica pop. O primeiro grupo actuava junto ao edifício da Câmara numa iniciativa singularmente intitulada “Noites de prestígio”. Tinha cerca de três dezenas de espectadores. A praça seguinte estava mais composta. Aí, produzida pela empresa de animação municipal, a festa "popular", além do grupo que tocava no coreto, era composta de barracas onde se vendiam bebidas e bancas de jogos de matraquilhos dispersos pelo empedrado central. Pareceu-me tratar-se, o jogo de matraquilos, de um passatempo muito querido dos pontadelgadenses em noites de Verão.





3 comentários:

S. J. disse...

Registamos com agrado:
1. O "calo" etéreo do "experto peito".
2. O gosto pelas actividades portuárias e a atenção prestada à nomenclatura que identifica as embarcações.
3.As decepções gastronómicas.
4. A atitude aguerrida dos matrecos encarnados, perante a tibieza dos verdes.
5. O belíssimo poema do Mestre, que por inteiro desconhecíamos. Não sabemos porquê,veio-nos em mente um popular dito cinematrogáfico português dos anos 40, que tem que ver com a diversidade de exemplares a mesma espécie.
6. Last, but not the least, a presença do Professor. Em atitude pedagógica?

Jacinta disse...

O que nos parece é que o/a comentarista anterior passou ao lado do fundamental desta crónica.

Em nosso entender, há uma clara relação entre os seus pontos 5 e 6, com a qual, curiosamente, não atinou: o autor do blogue está na fotografia não em atitude pedagógica, mas na de quem recita de memória, dedicando-o talvez à personagem que o fotografa, o poema de Vitorino Nemésio.

São disse...

Ricardo Reis glosa Vitorino Nemésio:

As rosas amo dos jardins de Adónis,
Essas vólucres, amo, Lídia, rosas,
Que em o dia em que nascem, em esse dia morrem
(...)
Assim façamos nossa vida um dia,
Inscientes, Lídia, voluntariamente,
Que há noite antes e após o pouco que duramos.