sábado, 18 de agosto de 2012

Poema dedicado a Couros

um dia passámos numa cidade do norte

um dia passámos numa cidade do norte
e alguém nos falou de um sítio que estava a degradar-se
mas digno de se ver: fomos assim às fábricas
de curtumes abandonadas, no coração oculto do lugar

onde um riacho corria, tanto faz, entre pedras,
muros estreitos, gerânios e mau cheiro/ era grande o contraste
com a poética tradicional das praxes pra turistas
e muito bela a geometria dos tanques de granito:

vaziamente inúmeros ou com flores, clausos,
mas sempre a cubicarem o espaço, subpostos
a um outro labirinto: sobrados, grades, frágeis
construções de madeira, de tábuas sobre poços,

lajes escorregadias, condutas de água, calhas.
crescia ali curtida essa memória de vestígios
vazia de instrumentos, a irregularidade desabitada
de uma indústria primitiva de trabalhar as peles. não,

nenhum instrumento, aparência ou cabo de utensílio.
a luz surpreendida aqui e ali nas frestas
do todo apodrecendo, algumas perspectivas
rasando a altura dos olhos, uma certa humildade

de urbanismo e trabalho / comoveu-nos aquela
presença da razão a organizar um espaço
artesanal e antigo. não fazia sentido
falar de relações de propriedade, o risco era

partir assim de espaços melancólicos. tratava-se
de agir sobre aquilo: o amor é agressivo
e tem a ver com tudo quanto toca, nunca há
modelos inocentes.

isso foi muito limpo. observar, medir, tocar as pedras,
recordar m. c. escher, pensar uma grafia cautelosa
e multilateral, coisas difíceis de devassar, afectivas, incrustadas,
no alçado rigoroso que fomos provocar-lhes.

poderia dizer-se que não fizemos nada
a não ser povoar o mundo imaginário
e que isso é fabricar o real, mas de um só lado, triste
como se devesse durar uma invencibilidade das coisas.

todavia a observação tem uma qualidade modulante
que a linguagem poética documenta; então notaste
que a observação é um trabalho político
que toda a observação modifica a realidade (a matéria da música)

todas as outras áreas: a ternura, estranhezas mimeticas
os labirintos do sentimentalismo crítico. etc.) há de facto
um angelismo construtivo, pressuposto versátil
de vários actos que pensamos livres

Vasco Graça Moura, Instrumentos para a melancolia. Porto, Oiro do Dia, 1980


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