sexta-feira, 25 de junho de 2010

Es(quinas)

O chamamento, num tom ansioso, chegava-me cada vez mais distintamente. – “João José? Filho? João José?”. Agora percebia que era a voz da minha mãe. Tentei abrir os olhos, mas as pálpebras pesavam-me. Procurei levantar-me, mas o corpo não obedecia. Mexi os lábios, mas não consegui articular qualquer palavra.
Ergui o braço que logo voltou a cair. A minha mãe continuava a pronunciar o meu nome. A sua voz estava agora muito perto. Estremeci, agitado. “Oh, graças a Deus!” – disse ela, num tom que me sossegou. “Não deve ser grave”, pensei, tentando perceber se a aflição em redor podia ter sido ocasionada por mim. No meu quotidiano o síndrome de “suspeito do costume” era tão frequentemente activado que me treinara a descortinar todas as escapatórias. E ali, na solicitude inquieta da minha mãe, eu podia adivinhar uma folga oportuna. Fosse o que fosse que tivesse acontecido, não parecia ter sido culpa minha. De modo que me atrevi a perguntar: - “Que foi, mãe?” - e, desta vez, a minha voz, embora trémula, soou-me clara.
– “Consegues levantar-te?” Só então percebi que estava deitado no chão, meio torcido sobre mim próprio, uma perna e um braço dobrados e a cabeça muito demasiado perto do tamborete que suportava o pote antigo das azeitonas. Fiz um esforço e consegui sentar-me. Não me doía nada, outra conclusão desafiadora, pois era sabido que um extenso cardápio de pequenas dores faz parte das atribulações do dia a dia de um miúdo irrequieto. Confiante, tentei pôr-me de pé, mas sem o auxílio da minha mãe, provavelmente teria voltado ingloriamente ao chão. Sentia-me um pouco zonzo, mas estranhamente feliz, como se tivesse regressado à vida, sentindo pouco a pouco o corpo readquirir equilíbrio e as sensações reconfortantes do espaço e do tempo.
Não me lembrava do que sucedera. A última sensação que retivera era do mundo a rodopiar à minha volta e da queda iminente. – “Perdeste os sentidos, meu filho.“ A expressão era nova para mim, tentei absorver o significado das palavras: - “Perdi os sentidos?” - repeti em voz alta. – “E agora, mãe, já apareceram?” – “Ouvi um grito teu, seguido de um estrondo e vim a correr. Estavas caído no chão e não me ouvias. Que aconteceu? Porque gritaste”?
Parca em novidades, a pequena aldeia fez do acontecimento tema de comentários no dia seguinte.
- “O menino teve um desmaio”, contou a Francelina. - “A mãe não o deixou sair toda a tarde, coitadito”. -“Foi um grande susto”, rematou o Tóino. -“Aquilo passou-se quando ele estava à janela”. – “Muito gosta ele de ir para aquela janela!” – observou o Rosinda. – “Põe-se ali a ver os animais que passam no carreiro, os pássaros que se empoleiram na árvore. Às vezes cola papéis com palavras nos vidros. E desenhos. Fotografias. Bocados de jornais. Outras vezes, abre-a para ouvir melhor”. – “Oh, é para escutar o ruído dos carros e das camionetas que passam além, na estrada de macdam”. – “Põe-se a olhar para os montes e para as nuvens como se dali viessem sinais”. - “Foi o que aconteceu ontem. Ao abrir a janela bateu com o cotovelo na quina”. – “Até me faz impressão só de pensar. Dizem que é uma dor horrível”. – “Quina contra quina – quina do braço contra quina da janela”.

[Colaboração do autor deste blogue para a série "Janelas" do blogue dos Antigos Alunos do Externato Ramalho Ortigão]
Raoul Dufy, Open Window at Saint Jeannet, 1926

4 comentários:

Isabel X disse...

Até parece que sentimos a aflição da mãe, ansiosa por que o filho recobre os sentidos. Até parece que sentimos a estranheza e o alívio do filho quando, aos poucos, se sente voltar a si. Naquele dia o protagonista do acidente foi o centro das atenções, dos cuidados, das conversas de todos.
(eu lembro-me de em criança, quando fazia um disparate, me esconder e desejar ardentemente que me acontecesse qulquer coisa de mal para, em vez do merecido castigo que me aguardava, passar a ser o alvo dos carinhos de todos)

Eis revelado, julgo, o motivo original da paixão do João por janelas! (Entretanto, "emigrada" para o blogue ERO) Curioso do que o rodeava, debruçou-se tanto que caíu da janela abaixo: uma atracção que lhe ia sendo fatal e que lhe deixou sequelas... sentimentais.
Quina contra quina (da janela, do autor), no título subtilmente transformadas em (es)quinas, outra grande afeição do João, também dá que pensar! É que há uma lição de vida a retirar deste caso: quem se apaixona por janelas é porque em algum momento sofreu por elas, ou caíu delas abaixo. Como em tudo na vida, aliás.

Belísima narrativa! Viva, expressiva, cheia de simbolismo! Gostei imenso!

- Isabel X -

Obi-Wan disse...

Gostei muito!

J J disse...

Interrogo-me muitas vezes sobre os motivos que levam a que determinados acontecimentos do nosso passado fiquem tão nítidos na nossa memória, enquanto outros, aparentemente de igual (ou até maior) importância, se esfumam sem rasto...

Este parece ser um episódio marcante na vida do autor, mas porquê? Pela dor, pela perca dos sentidos, pela preocupação materna, pelos comentários dos outros ou porque lho relataram ou referiram posteriormente com frequência?

Não tive aqui resposta para a minha interrogação, confesso, mas é sempre com gosto que vejo um retrato "pintado" desta forma, com lápis fino e economia de traços.

Mais uma excelente contribuição do João para o Blogue dos Antigos Alunos do ERO.

João Ramos Franco disse...

O ler desta narrativa de um episódio, do então menino João Serra, tem uma certa piada.
- Ao dizer “No meu quotidiano o síndrome de “suspeito do costume” (visto pela Mãe) “, ou até como é visto pelos outros, “Põe-se a olhar para os montes e para as nuvens como se dali viessem sinais”. - “Foi o que aconteceu ontem. Ao abrir a janela bateu com o cotovelo na quina”.
- Visto agora e rebuscando todos os relatos que tenho lido, encontro o João Serra que conheço e de quem me tornei amigo.
Um abraço amigo do
João Ramos Franco