domingo, 6 de junho de 2010

Identificação

A minha avó materna sempre achava que mudar de cidade era basicamente mudar de águas. No fundo, a melhor água era a da sua terra – Setúbal – e a estranheza perante a alternativa tinha várias formas de se manifestar. Desde a roupa que não ficava tão branca (por causa do calcário, dizia), até ao metabolismo visceral (que se recusava a trabalhar com água tão férrea). A sopa perdia todas as qualificações se feita com água das Caldas e café nem pensar (mais valia trazer um garrafão de água do local de origem para garantir o cheiro e o sabor desse produto essencial à vida logo pela manhã). A pele da cara e dos braços ficava mais seca e o cabelo mais crespo com a agua caldense. Em contrapartida era frequente ouvir os meus avós paternos tecerem considerações sobre a singularidade da água que brotava de uma mina na Quinta das Laranjeiras, e que a tornava superior a toda e qualquer água que se apresentasse em concorrência.
Há dias em Guimarães ouvi o proprietário de um restaurante, perante o meu elogio da comida ali confeccionada, responsabilizar a água da cidade pela qualidade ímpar dos seus pratos. A sua convicção pareceu-me sincera. Não ousei, evidentemente, pedir mais esclarecimentos sobre as especificidades da sua receita de arroz de pato.

1 comentário:

Isabel X disse...

Ao começar a ler este texto do João, lembrei-me logo da minha avó materna que todos os anos permanecia durante algum tempo em Vidago, a águas, com o meu avô. Julguei que fosse esse tipo de prática que estivesse em causa aqui, mas não. As águas são tomadas num sentido mais abrangente neste engraçadíssimo post.

A minha avó seria, porventura, ainda mais radical que a do João. Para ela só mesmo nas Caldas as coisas (águas ou o que quer que fosse) faziam sentido.

É o que presumo quando recordo que as cartas que de lá escrevia, se iniciavam sistematicamente pela sugestiva frase: "Cá estou eu no fim do mundo!" E seguia pelo registo de lamento que este início prenuncia. Devo confessar que durante muito tempo julguei que o fim do mundo se situava em Vidago. Só não percebia porque é que a minha avó tinha que lá ir todos os anos. Algum castigo, talvez...

Já depois de viúva, ela foi passar uma temporada a casa de uma amiga, em Chaves, durante o Verão. Eis quando nos aparece um dia de Setembro em S. Martinho sem aviso prévio, de taxi, ao qual pagou uma pequena fortuna, como é bom de calcular.

Tinha sabido do acidente e operação de Salazar e vinha intrepidamente juntar-se à família, onde lhe parecia dever encontrar-se quando começassem os tumultos, as revoluções que o afastamento do líder, forçosamente provocaria.

Não se lembrou de que os portugueses são um povo de muito boas águas, que as há, por todo o lado, afinal, e de muito brandos costumes também...

- Isabel X -