Eugénio de Andrade, "Com Dario Gonçalves, pelas ruas do Porto", in Os Afluentes do Silêncio, 9ª ed. Porto, 1997. p. 156-157.
domingo, 7 de dezembro de 2008
Com Eugénio de Andrade, pelas ruas do Porto
[...] A cidade, vista de Gaia, é de uma beleza irrecusável; tem uma rua - a das Flores, naturalmente - que merecia ser florentina; tem além disso, árvores desmesuradas que remontam ao tempo do profeta Isaías; e quatro ou cinco corações onde podemos repousar tranquilos - foi por eles que fiquei por cá, o segredo é esse, demorei tempo a dizê-lo. A cidade não é alegre; parece banhada por uma acidulada melancolia barroca, que as águas do rio reflectem, por não conseguirem arrastá-la para o mar, que principia ali adiante, na Cantareira. Os seus nevoeiros são espessos e pesados, com vagares de mulheres de soalheiro pelas escadarias. A humidade nalgumas paredes é quase perpétua, a não ser que sejam lágrimas - há na cidade tanta e tanta razão para chorar! O meu entendimento do Porto não é grande, eu sei. Nasci debaixo de outro céu, lá para o sul, em campos infindavelmente rasos de trigo, onde a luz deflagrava como relâmpago seco, e tendo a nostalgia da cal - não gosto de cidades. Por isso me surpreendo, às vezes, comovido com uma figueira que por cima de muros velhos deixa caír os ramos para a rua; ou com uns girassóis que se avistam em flor no quintal do vizinho; ou, num jardim minúsculo, com alguns jacarandás que nem suspeitava existirem a dois, três passos da minha casa, e de que o Dario me traz a fotografia. - Tem a certeza que estes jacarandás ... - Tenho, venha vê-los. - E na verdade ali estão, no campo 24 de Agosto, eu só conhecia o Largo do Viriato, fomos vê-lo também: a visita era mais do que merecida, vergava de tanto azul hesitante entre violeta e lilás, o azul-jacarandá. Depois das árvores, o Dario trouxe-me uma cidade que eu nunca vira, uma cidade à medida dos seus olhos, muito mais frescos e deslumbrados que os meus. Casas, igrejas, torres, tudo tinha uma aura afectiva que os tornava gloriosos até na sua humildade. - Onde são estas escadas? Onde fica este palácio? De onde se avistam estes telhados? - ia eu perguntando, entre surpreendido e fascinado. Não há dúvida, o Porto que este homem trazia na pele era diferente do meu: a sua atmosfera era mais limpa, a sua luz mais imponderável, se assim me posso exprimir, porque, mais do que fotografá-lo, o que ele fazia era acariciá-lo dessa maneira natural e feliz de quem muito o amava.
Etiquetas:
Andrade (Eugénio de),
Jacarandá
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
2 comentários:
E meu, também!
Foi muito agradável reencontrar parte deste belo texto, onde Eugénio de Andrade, salvo erro, começa por confessar não se sentir "cidadão do Porto", apesar de viver no Porto (na altura) há quase meio século. E também achei engraçado que tivesse descoberto o jacarandá que, julgo eu, o poeta avistava do seu quarto no Hospital de Santo António (corrija-me se estiver errada). Pois bem, é provável que este poeta que não se sentia "cidadão do Porto" tenha compreendido e amado mais aquela cidade do que muitos dos seus naturais. Estou enganada, ou é também o que se passa consigo?
MT
Enviar um comentário