Descrevi-a, anos mais tarde, num texto publicado na Gazeta das Caldas, numa rubrica semanal denominada "As Pratas da Casa". Intitulava-se este texto "Onde se recorda uma aula sobre a Guernica e se formulam duas ou três perguntas sobre as funções dos Museus". Relatei a aula de forma a evitar o reconhecimento da situação, e, por conseguinte, do autor de "As Pratas da Casa" que deveria permanecer anónimo (de facto, a rubrica era assinada S. e S, como se se tratasse de uma parelha que entre si dividisse a responsabilidade dos textos, mas o certo é que ambas as iniciais constam dos meus apelidos: Sousa e Serra).
Reproduzo aqui esse texto publicado há 24 anos, em 7 de Dezembro de 1984, despojado das pequenas notas que pretendiam mantê-lo afastado do verdadeiro autor.
Quando ele virou o quadro que só tínhamos visto de costas, olhámo-lo surpreendidos, desconhecendo o alcance daquela "provocação". Mas o professor Calvet de Magalhães não se mostrou preocupado. Percebia-se que tinha uma intenção clara.
- Sim, estão a ver uma reprodução da Guernica - começou. Penso que todos já terão conhecimento desta obra e sabem a que acontecimento se reporta. - A Guernica foi pintada em Maio/Junho de 1937, correspondendo a uma encomenda do Governo da República Espanhola, destinando-se ao Pavilhão de Espanha na Exposição Internacional das Artes e das Técnicas da Vida Moderna, em Paris.
- Guernica é o nome de uma das mais antigas cidades do País Basco, com uma população de cerca de 10000 habitantes. A 26 de Abril de 1937, em plena Guerra Civil, foi destruída por bombardeiros alemães, às ordens do general Franco.
- Picasso pintou o quadro a que deu o nome desta cidade como forma de denúncia da brutalidade desse ataque militar a populações civis. Guernica tornou-se o mais famoso símbolo do século contra a violencia da guerra sobre alvos indefesos.
A estas palavras, choveram as perguntas. Nenhum dos elementos tradicionais da representação da guerra, nenhum sinal do bombardeamento surgia no quadro.
O Professor Calvet de Magalhães retorquia às nossas perguntas com outras perguntas. Pedia-nos que o ajudássemos a dar nome às diversas figuras. Entrámos nesse jogo, procurando interpretar os corpos pintados por Picasso. O nosso director ouvia as nossas sugestões, discutindo-as e corrigindo-as, acrescentando as suas próprias, guiando-nos, afinal, por entre imagens que inicialmente nos tinham passado despercebidas ou tinham parecido sem sentido.
E, pouco a pouco, no pequeno auditório, absorvido com o jogo de enigmas-descobertas em que participava, com as revelações construídas e acumuladas, a Guernica surgiu-nos como uma obra que podia ser lida. O fio condutor que tínhamos acabado de encontrar conduzia-nos a uma representação do Presépio.
Lá estavam elementos habituais da representação da cena bíblica do nascimento de Jesus, símbolo por excelência da paz e do amor, o Presépio. Mas um presépio distorcido, um presépio onde os corpos de pessoas e animais reflectem a angústia eo sofrimento, a morte, em suma um presépio brutalmente violentado.
Desconheço se tal interpretação da Guernica foi alguma vez apresentada por especialistas da obra de Picasso. Mas ela será, ao menos, uma interpretação possível.
2 comentários:
Com alguma boa vontade, se a quisermos ver como Giotto di Bondone nos frescos da Capela de Scrovegni.
João Ramos Franco
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SNPC » Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura
"Navidad",mesmo!
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