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domingo, 7 de dezembro de 2008

Com Eugénio de Andrade, pelas ruas do Porto

[...] A cidade, vista de Gaia, é de uma beleza irrecusável; tem uma rua - a das Flores, naturalmente - que merecia ser florentina; tem além disso, árvores desmesuradas que remontam ao tempo do profeta Isaías; e quatro ou cinco corações onde podemos repousar tranquilos - foi por eles que fiquei por cá, o segredo é esse, demorei tempo a dizê-lo. A cidade não é alegre; parece banhada por uma acidulada melancolia barroca, que as águas do rio reflectem, por não conseguirem arrastá-la para o mar, que principia ali adiante, na Cantareira. Os seus nevoeiros são espessos e pesados, com vagares de mulheres de soalheiro pelas escadarias. A humidade nalgumas paredes é quase perpétua, a não ser que sejam lágrimas - há na cidade tanta e tanta razão para chorar! O meu entendimento do Porto não é grande, eu sei. Nasci debaixo de outro céu, lá para o sul, em campos infindavelmente rasos de trigo, onde a luz deflagrava como relâmpago seco, e tendo a nostalgia da cal - não gosto de cidades. Por isso me surpreendo, às vezes, comovido com uma figueira que por cima de muros velhos deixa caír os ramos para a rua; ou com uns girassóis que se avistam em flor no quintal do vizinho; ou, num jardim minúsculo, com alguns jacarandás que nem suspeitava existirem a dois, três passos da minha casa, e de que o Dario me traz a fotografia. - Tem a certeza que estes jacarandás ... - Tenho, venha vê-los. - E na verdade ali estão, no campo 24 de Agosto, eu só conhecia o Largo do Viriato, fomos vê-lo também: a visita era mais do que merecida, vergava de tanto azul hesitante entre violeta e lilás, o azul-jacarandá. Depois das árvores, o Dario trouxe-me uma cidade que eu nunca vira, uma cidade à medida dos seus olhos, muito mais frescos e deslumbrados que os meus. Casas, igrejas, torres, tudo tinha uma aura afectiva que os tornava gloriosos até na sua humildade. - Onde são estas escadas? Onde fica este palácio? De onde se avistam estes telhados? - ia eu perguntando, entre surpreendido e fascinado. Não há dúvida, o Porto que este homem trazia na pele era diferente do meu: a sua atmosfera era mais limpa, a sua luz mais imponderável, se assim me posso exprimir, porque, mais do que fotografá-lo, o que ele fazia era acariciá-lo dessa maneira natural e feliz de quem muito o amava.

Eugénio de Andrade, "Com Dario Gonçalves, pelas ruas do Porto", in Os Afluentes do Silêncio, 9ª ed. Porto, 1997. p. 156-157.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

"Que só aos gatos"

Despedida

Junho chegara ao fim, a magoada
luz dos jacarandás, que me pousava
nos ombros, era agora o que tinha
para repartir contigo,
e um coração desmantelado
que só aos gatos servirá de abrigo.

Eugénio de Andrade, Os Dóceis Animais, Asa, Porto, 2004, p. 21