A escritora Eduarda Dionísio, autora do texto escolhido, foi dirigente do Sindicato dos Professores da Grande Lisboa, em 1978/79.
- Temos que agir dentro das próprias aulas - diz Ivone. Recusar os alunos se forem mais de 25, recusar as partes dos programas que nos repugnam, recusar de facto as horas extraordinárias, recusar as tarefas de secretaria, recusar o que ultrapasse o nosso horário de trabalho.
- Qual é o sindicato que te apoia? - pergunta Carlos. Não é este que temos com certeza. Estes sindicatos que avançam pedindo licença, esperando que os deixem passar, não chegando nunca à primeira fila e assistindo ao espectáculo só pelo som. Aceitam dispor-se num palanque para assistir à parada na ordem hierárquica que sedimentam. Aceitam sentar-se à mesa do banquete segundo as regras da Baronesa X: à direita da dona da casa e à esquerda, à esquerda do dono da casa e à direita, assim por diante, nos topos da mesa, ao meio. Estes sindicatos que pedem licença para incomodar.
- Não tínhamos nenhum antes do 25 de Abril - diz Alberto. E não foram vocês que o fabricaram. Onde estavas tu, Carlos? Que fazias? Rezavas missas, ouvias os pobres pecadores em comunhão, oprimias os pensamentos livres, destruías os sentimentos espontâneos que se formavam nas aldeias, nos campos, que atrofiavas, deitando-lhes vinagres como em estômagos, por funil, regando de fel a serenidade dos camponeses, borrifando-os de soda cáustica. Ah! é verdade, estavas nas colónias.
- A contestação não leva a nada - diz Raquel. O sindicato tem que ter força para negociar. Raquel vê as grandes salas, as grandes mesas, os blocos de apontamentos, os dossiers - dum lado o poder, com gravata; do outro, os sindicatos em mangas de camisa. Falam alternadamente, de acordo com uma ordem que ambos sabem, com uma distância e uma frieza estabelecidas. Terão ou não os resultados pretendidos. À noite, os dirigentes farão o comunicado que talvez transmitam pela rádio à meia-noite.
- Negociar o quê? - diz Carlos. Carlos só sabe as palavras que se trocam entre os sindicatos e o poder e que nunca ninguém conhecerá, as promessas que se fazem sem cumprir, as cedências mal medidas, que se escondem - os comunicados fabricados com demora, monumentos de verdades e mentiras, frases com minutos, horas, ameaças, exclamações. Temos é que ser capazes de impor - diz Carlos.
- Temos que falar com as pessoas - diz Alberto. Há tantas pessoas que exercem o poder e que pensam como nós. Saber tocá-las, lembrar conhecimentos antigos, expor as razões que temos, não assustar. Tu, por exemplo, A., quando chegas, assustas as pessoas que nas secretarias fazem todas as planificações e preparam as ordens, os decretos, os ofícios, as circulares, as portarias. Assusta-las, inunda-las de água fria e então esbracejam, dizem que não, receiam, muram-se. Que falta de tacto, A.!
- Com que pessoas? Não te podes esquecer que são inimigos que tens à tua frente - diz Ivone. Podem ir almoçar a tua casa, podem ir contigo a manifestações a favor da reforma agrária e pela unidade sindical, mas naquele momento, Alberto, naquele momento são teus inimigos, são nossos inimigos, querem pura e simplesmente que o sistema capitalista do ensino que temos continue a funcionar, querem que nós sejamos funcionários duma grande empresa que oprime, que nos oprime, que oprime os trabalhadores, querem impor que não haja política na escola e o regresso ao que tínhamos antigamente que suportar.
- Tens que falar. Mas a maneira conta - diz Marília. Têm que ser agredidos. Temos que ser ferozes. És tu, A., que sabes falar-lhes com essa violência nas sílabas. Porque te calas, A.?
- Saberemos alguma vez conciliar o sindicalismo de negociação com o sindicalismo de contestação - pensa Manuel. Será possível conciliar? Será desejável? Em França é a CGT que negoceia, a CFDT contesta, pelo menos nas escolas. Manuel sente-se mal naquelas sessões morosas onde tem sido obrigado a estar: uma mesa; papéis brancos e escritos à máquina, outros impressos, em cima da mesa, sublinhados de várias cores, números à margem e letras, com círculos que não fecham em redor.
Eduarda Dionísio, Histórias, Memórias, Imagens e Mitos duma Geração Curiosa. Lisboa, Círculo de Leitores, 1981. p. 328-330
1 comentário:
Olá João Serra.
Mas que bela lembrança, muito obrigado. Não imagina o sorriso que tomou conta de mim ao ler está bela peça da nossa história. Não conhecia a obra mas vou à sua procura. Tenho ideia que a autora é filha do escritor Mário Dionísio.
Tem piada: nestas alturas, de mudanças mais drásticas no calendário, faço sempre um espécie de balanço: tenho dado comigo a registar a "obsessão" que tomou conta do meu cérebro no ano que se prepara para acabar: a luta dos professores. Estava certo: até o João deu conta disso :)
E, para continuar a conversa que noutro dia interrompemos, essa peleja está para continuar: é certo que a luta pelo ensino público é infinita, mas a causa dos professores tem uns picos de intensidade: neste momento estou nas tréguas natalícias.
Mas voltando à sua bela e comovente lembrança, há dois aspectos que me atrevo a salientar: ao longo destes últimas duas décadas, várias têm sido as minhas causas: há momentos em que me assusta o facto de me confundir com elas de um modo tal, confesso-o, que as minhas divagações vão sempre ao seu encontro; e isso perturba-me um pouco, dá-me ideia que dali já não consigo sair: passei por uma fase assim nos últimos tempos; sentia-me como que a consumir-me intelectualmente: a experiência já me diz que isso passa para voltar com outra razão do género: já vou aprendendo a viver com este tipo de vicissitudes, assim o espero;
se estivéssemos perante um peça de teatro, escolhia a personagem de nome Manuel; faltaria, claro, a concordância do encenador: sabe-se da importância transcendente do casting no sucesso de uma qualquer representação, mas estou convicto que o persuadiria.
João, muito obrigado.
Aquele abraço, forte e fraterno, e os desejos de as mais felizes festas para si e para os seus (extensivo aos que lerem este comentário, claro).
Paulo Prudêncio.
Enviar um comentário