terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Na árvore do Natal (10)

A um (a) comentador (a) - uns (umas), comentadores (as) - que por motivos legítimos não quis (eram) revelar (me) o (s) nome (s), uma lembrança do Natal. Talvez haja uma segunda oportunidade.

Natural da água

A fonte: ninho da água. Dali ela se constitui, emplumando-se ao modo de ser ave. Primeiro se pintainha, levantando o bico faminto à chuva que desce.
A água nasce de ser plantada? Ou de pedra que se converte, lavando o tempo em suas mesmas lágrimas? Ninguém sabe, ninguém nunca viu. O parto da água não tem testemunha: aparecemos sempre depois.
Quem procure a fonte que escute primeiro seu chilreio fresco. Só depois rasteire os olhos entre a pedra e a erva. Deixe aí seu olhar pousado até que a alma, naquela dobrazinha onde ela se distrai de nós, se sinta molhada e mais que alagada: alaguada. Verá então como a água a si mesma se enche, abrindo as margens, soltando as suas asas. Começa a viagem do rio sucessivo.
O rio, caligrafia da água. Do alto, parece um sulco de metal transfluente. Limpo e solene. Mais perto se vê que, nas margens, se empoleira, contagiando-se de terra. O rio ora beija, ora morde a margem.
Entre carícia e rasgão, se fazem seus incertos rumores de amante. Dentro dele se transportam ondulantes gazelas. Nesse tropel, o leito tornava-se savana azul. África liquefazendo sua carne fresca. O continente se oceanifica.
Mas a água só despida será completa. Assim, da terra ela se distingue. A terra exige coberta, requer construção. Enquanto a água em sua própria pele se aconchega. Em tal nidez, nunca nenhum sulco se abriu, nenhuma ruga se desenhou. Os homens magoam o solo, cobrem de golpes o chão. Mas até agora nenhum foi capaz de ferir o rio e deixar cicatriz nele escrita.
O rio da minha infância: sotaque da terra, pronúncia da própria vida. Esse rio transcorre não no mundo mas em mim. Como se eu fora natural da água e não de lugar terreno. Às vezes flui manso, diluindo os amargos recantos, consolando as arestas da minha idade. Outras, fundo e espesso, quase imitando o fogo. Então, em sua corrente me ensombro. E me duvido: afogar é morrer na água ou no fogo?
Afinal, a fúria é breve. O rio simplesmente me lavava da morte, sacudindo destroços de mim que se espreguiçavam na torrente.
A coragem do rio é o seu caminhar suicida para o mar. A bondade da água é o seu incansável retorno ao regaço da vida.

Mia Couto, Cronicando. Crónicas. 7ª edição. Lisboa, Caminho, 2003. p. 77-78

5 comentários:

Anónimo disse...

"A coragem do rio é o seu caminhar suicida para o mar. A bondade da água é o seu incansável retorno ao regaço da vida."

Escolhas óptimas. É um privilégio passar por aqui.

Abraço.

Paulo Prudêncio.

Anónimo disse...

Um sublime Hino à VIDA!

Anónimo disse...

Cuidado!
Há mais vida para além dos blogues, não se esqueçam disso.
MT

J J disse...

Não tenho ido ver, ainda há mesmo vida para além dos blogues?

Aguardo notícias do exterior.

Anónimo disse...

Claro que há,esteja atento!