O movimento e a iluminação das ruas, com os edifícios fechados, eram escassos. Começáramos a duvidar do acerto da escolha, quando desembocámos numa pequena praça rectangular, aberta de um dos lados. Dispostos ao longo dos passeios, presumivelmente junto das casas onde ficavam recolhidas durante o dia, encontrámos bancas de frutas e bebidas não alcoólicas acamadas em gelo moído. As bancas estavam assentes em apoios com rodas e engalanadas com balões e recortes de papel colorido. Começava ali a animação nocturna da praça. No tabuleiro central, dois quiosques de traça oitocentista, onde se vendiam máscaras, velas, bonecos insufláveis, bruxas de pano e de madeira, um sem número de alfaias do Halloween. - Oh, então é isso? – exclamou o António, que já fizera antes visitas prolongadas aos Estados Unidos, identificando, antes de qualquer um de nós, o significado daquele cenário. – A Festa das Bruxas! Adultos e crianças, vestidas com indumentárias alusivas e transportando velas e abóboras iluminadas circulavam na praça, gritando e pulando em pequenos grupos, provocando-se uns aos outros.
Deixámo-nos envolver por aquele ambiente estranho para nós. Adquirimos máscaras e velas, vassouras e panos e procuramos um banco para fazer a nossa festa de sumos e batidos de frutas exóticas. Naquela praça, todos os bancos tinham um lugar ocupado por uma estátua em bronze de uma personalidade – escritor, cineasta, centista, político – com ligação ao local. Escolhemos para companhia um personagem singular, pois tinha um pé sobre o banco enquanto o outro estava cravado ao chão, em pose de amena conversação com um amigo imaginário que permanecesse sentado.
– Boa noite, és servido? – perguntei eu delicadamente. – Não te queres sentar? – perguntou o Nuno, e todos sorrimos. Mas o nosso interlocutor não se deu por achado. – Preciso de uma máscara – proferiu, num inglês de pronúncia britãnica. – Aqui tens - exclamou o experiente António, no Halloween tudo é possível, até as estátuas falarem. – Fica com a minha – disse eu – usarei a que comprei para oferecer ao meu filho Pedro. Era uma cara de bruxa de cabeleira desgrenhada. O António colocou-lhe na mão uma vassoura e o Nuno atou-lhe à volta da cintura um saiote preto com remendos.
Conversamos animadamente toda a noite. De Boston e Lisboa, com um saltinho até às Caldas, de que o nosso interlocutor (um jornalista que fizera a cobertura da famosa “Revolta do Chá”, como nos confidenciou) lamentavelmente ainda não ouvira falar.
Partimos, com a manhã rondando o horizonte. Não escondemos a emoção da despedida. Ele recusou delicadamente todas os convites que lhe fizemos. – Lamento, mas tenho que ficar, tenho ainda muitas reportagens para fazer. Não posso abandonar, nem por um dia, esta praça. Mas gostaria que levassem convosco uma lembrança deste noite. Eu posso adivinhar o que farão daqui a 20 anos.
Olhámo-lo intrigados e curiosos. Daqui a 20 anos? Caminharemos então para os 60 anos. Estaremos vivos? Continuámos a recolher os adereços. O Nuno retirou o saiote. – Tu serás Ministro da Defesa! – sentenciou a estátua. O António recuperou a vassoura. – Tu serás comentador da Televisão e da Rádio. Eu fui-lhe tirar a máscara. – Tu … não vejo muito nítido o que farás daqui a 20 anos. Vejo-te a andar de um lado para o outro. Que estranho: há um aplauso. – Um aplauso? – Sim, um aplauso, uma seta para cima. Terás uma na Gazeta das Caldas. Eu devo ter franzido a testa, incrédulo. Mudando subitamente do inglês britânico para o castelhano hispânico, acrescentou: – No creo en las brujas, pero que las hay, las hay.