sábado, 5 de novembro de 2011

À janela de Mário Dionísio

Ele vai à janela e iça a bandeira todos os anos naquele mesmo dia, os garotos da rua vêm ver, põem-se a rir daquela maluquice, não há bandeiras em mais parte nenhuma, "o que é que o gajo quer"?, iça a sua bandeira, de nenhum país, de nenhuma colectividade, uma bandeira que ele mesmo inventou para que ninguém perceba o que queria que todos percebessem, ano após ano, naquele mesmo dia, por tradição, por respeito, salve-se ao menos o respeito, pela necessidade que ele mesmo desconhece de um solene ritual que vem dos nossos maiores ou qualquer coisa assim, inventamos uma história, precisamos de ter uma história, que não vem nos manuais, com dinastias e reinados próprios, cheia de factos nobres, datas, referências, que talvez os bisnetos venham a ter de aprender na escola, infelizes, revoltados por ser preciso meter aquilo tudo na cabeça, datas, nomes que não lhes dizem nada, é ela que nos liga, que devia ligar-nos, tudo isto em surdina, dito ao ouvido, por casa dos mais velhos, que têm outra história, e dos mais novos que ainda a não conhecem, nós mesmo duvidamos, vamos cedendo, aceitamos que se esqueçam certas datas, é preciso ser justo, a verdade é que então tudo estava ainda muito no princípio, tivemos muitos erros, torna-se urgente compreender a juventude, a juventude ri-se, organiza-se, desorganiza-se, nem quer ouvir falar em toda esta papelada que fomos escrevendo, juntando pelos anos fora, ou vivendo, experimentando, diz que isso já não é com ela, agora a vida é outra, não faltava mais nada senão andar às ordens de pessoas que lhe deixaram em herança este lindo mundo que aí está, estes valores, estou-me nas tintas para os valores, o que eu quero é viver, e quem é que lhes deu o direito de falar em nome da juventude?

Mário Dionísio, Não Há Morte Nem Princípio. Mem-Martins, Europa-América, 1969.

3 comentários:

Isabel X disse...

Todos vamos sendo ex-jovens, não é?

- Isabel X -

Cláudia S. Tomazi disse...

Hastear a bandeira é um ato inocente. É afirmar quer seja esperança ou crença em saudar a chama que mantém viva a mémoria.

Isabel Soares disse...

"Um simples "gosto" fácil e ligeiro" é tantas vezes uma forma, tímida forma, de estar presente, humildemente presente, sem coragem de içar ao vento uma modesta bandeira de palavras.