sábado, 12 de novembro de 2011

À janela de Carlos de Oliveira

Uma cabaça de vinagre despejada, os resíduos ácidos que escorrem com dificuldade pelo interior do bojo até pingarem do gargalo, espessos, vagarosos; a mão na espuma que lhe azedava os lábios; boiar numa onda incerta de enjoo e ter sede de repente como se tivesse de repente uma dor; o orvalho da noite poisava-lhe na nuca; podia erguer a cabeça tombada para fora da janela, virar a cara para o céu e beber daquela frescura suspensa pelo espaço; voltou-se com dificuldade e a moinha da água bateu-lhe ao de leve na fronte, nas pálpebras fechadas, foi- se acumulando gota a gota, deslizou em seguida pela face, encarreirou nas asas do nariz, veio depositar-se-lhe ao canto dos lábios; abriu a boca e sorveu a humidade lentamente; de súbito, qualquer lembrança remota parecida com aquilo, dias de chuva, a cabeça de fora da janela, a boca aberta a aparar as goteiras do telhado, um perfil de criança recortado ao longe; a cinza da morrinha embaciava a distância, o tempo, mas havia por baixo de tudo, ao fundo das coisas, esse fulgor inapagável, o seu próprio perfil de criança, e muito mais, uma ternura dispersa pela casa paterna, por campos e pessoas, por bichos e por estrelas; o coração talhado numa grande pureza já perdida, a alma ainda livre da condenação do fogo, o corpo onde não acordara ainda o medo à morte, porque lhe era fácil então estender-se para fora da janela e beber alegremente das goteiras. Agora não. O vento impelia o marulho da treva, vinha salpicá-lo numa poeira húmida de ruínas; as costas doíam-lhe de encontro ao peitoril; mudou de posição, fez um esforço para se endireitar, fincando as mãos no rebordo da janela, e ficou cambaleante, de olhos abertos para a noite, negra de lado a lado: o luar nunca existiu, as estrelas também não, mas onde diabo terei eu visto já luar e estrelas, se nada vejo agora? O vento arrastava a poeira, apagava os astros, sumia tudo e na escuridão as coisas fermentavam. apodreciam. Sabia-lhe mal a boca, um soluço flatulento e choco agitava-o. Deu-lhe vontade de chorar, chorar apenas, sem saber de quê. Esfregando os olhos, compreendeu confusamente que estava diante da janela aberta, entontecido e indisposto, que tinha a noite pela frente e que a noite fazia bater os dentes devagar, cheio de frio.

Carlos de Oliveira, Uma Abelha na Chuva, 1953

2 comentários:

Isabel Soares disse...

Chuva!
Vai longe o tempo em que gostava de meter os pés nas poças de água dos caminhos e apanhar uma boa chuvada.
Há dias, descendo a Rua Combatentes da Grande Guerra debaixo de uma chuva constante, apeteceu-me fechar o guarda chuva e deixar-me molhar. Fazê-lo significaria lavar a alma do desconforto dos momentos que não me apetecem.
A falta de coragem para executar um simples gesto que a curiosidade alheia puniria, impediu a carícia dos pingos e obrigou-me ao desconforto do pó dos dias que me atormentava.

Cláudia S. Tomazi disse...

Uma descrição póstuma do jardim das oliveiras.

Fulgor inapagável.